05/11/2012

Internacionalização

Ciência Sem Fronteiras é elogiado como iniciativa, mas implementação atrai dúvidas

Programa destina R$ 3 bilhões para conceder 101 mil bolsas de estudo no exterior nas áreas de engenharia e ciências exatas

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Lançado pela presidente Dilma Rousseff em meados de 2011 e com os primeiros beneficiados anunciados em dezembro do mesmo ano, o Programa Ciência Sem Fronteiras (CsF) – que tem por objetivo conceder 101 mil bolsas de estudo para levar alunos brasileiros de graduação e pós-graduação nas áreas de engenharia e ciências exatas a estudar no exterior – foi, em geral, bem recebido pela comunidade acadêmica. Isso não impediu, no entanto, que críticas e dúvidas surgissem à medida que o programa era implementado, levantadas tanto por especialistas brasileiros quanto observadores baseados no exterior.
 
A edição de abril/junho deste ano da revista Interesse Nacional, por exemplo, traz longo artigo assinado por Claudio de Moura Castro, Hélio Barros, James Ito-Adler e Simon Schwartzman, intitulado "Cem Mil Bolsistas no Exterior", que afirma que "não são poucas as perplexidades, diante do desafio de multiplicar por quatro o número de bolsistas estudando a cada ano no exterior".
 
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A despeito dos obstáculos e incertezas, o programa, com investimento estimado em mais de R$ 3 bilhões, atraiu atenção das instituições internacionais de ensino superior Já no texto "Brazil’s education challenge", redigido em abril como artigo de opinião para o serviço noticioso britânico BBC, o cientista político Eduardo J. Gomez, da Universidade Rutgers, nos Estados Unidos, levanta a questão da prioridade dada ao programa, tendo em vista os graves desafios enfrentados pelo Brasil para garantir um mínimo de qualidade aos níveis básico e médio da educação, além de pôr em dúvida quais os incentivos que os estudantes terão para retornar ao país, uma vez concluídas suas bolsas.
 
Tanto o texto de Gomez quanto o dos brasileiros veem no programa uma iniciativa essencialmente meritória, mas marcada por incertezas e tensões conceituais, de implementação e quanto às consequências finais. Outros críticos, no entanto, mostraram-se mais duros. Durante mesa-redonda sobre o CsF na reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), realizada em 2012 na cidade de São Luís do Maranhão, a presidente da Associação Nacional de Pós Graduandos (ANPG), Luana Bonone, questionou a capacidade de o Brasil absorver os pesquisadores que retornam do exterior. "Se temos problemas com a absorção de recém-doutores, que têm dificuldade de se inserir no mercado, como vamos receber esses alunos?", disse ela, citada pelo jornal O Estado de S. Paulo.
 
Em nota enviada à Ensino Superior Unicamp, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) responde a essa inquietação afirmando que "nosso mercado já está preparado para receber os futuros profissionais do CsF, pois as áreas prioritárias do Programa são aquelas em que temos mais carência de recursos humanos".
 
O CsF representa uma grande fonte potencial de recursos para escolas de países duramente atingidos pela crise econômica internacional que se prolonga desde 2008 Outro temor levantado na SBPC foi o de que a ênfase do CsF nas áreas científicas e tecnológicas venha a prejudicar o desenvolvimento das Ciências Humanas. Preocupação semelhante aparece no artigo dos pesquisadores brasileiros para a Interesse Nacional. Escrevem os autores: "Devemos nos lembrar de que outras áreas também têm carências (...) existem lacunas importantes nos campos do direito (...), governança, empreendedorismo, política econômica, política urbana, política educacional e política cultural".
 
O CNPq nega que as Humanidades em geral tenham ficado desprestigiadas com a chegada do CsF: "Com o advento do Programa CsF, as áreas de humanas e sociais também ganharam, pois os orçamentos iniciais das Agências de Fomento, CNPq e Capes, permanecem para o financiamento de bolsas, ou seja, se antes havia concorrência entre as áreas, hoje existe uma maior facilidade de concessão, uma vez que as áreas tecnológicas, da saúde, agronômicas e exatas serão contempladas pelo CsF e as demais áreas estão sendo favorecidas pelos programas regulares e tradicionais".
 
Quanto ao risco de uma "fuga de cérebros", levantado por Gomez, o CNPq afirma que "O Brasil está crescendo e já é uma potência econômica mundial. As pessoas estão voltando ao país por haver mais oportunidades. Estamos na rota oposta, importando muitos cérebros. É um caminho sem volta." Esse também é um risco minimizado pelo artigo dos pesquisadores brasileiros. "A maioria dos que saem do país com bolsas públicas já têm um vínculo de trabalho, para o qual retornam mais tarde", escrevem os autores, embora mais adiante façam uma ressalva: "Ainda que o Brasil não tenha (...) problemas significativos de ‘bran drain’, as universidades públicas têm dificuldades em contratar com salários e condições de trabalho internacionalmente competitivos".
 
Segundo CNPq, as áreas de humanas também ganharam com a redução da concorrência porque orçamentos dos programas regulares sobram para áreas diversas das tecnológicas Indústria
O Programa Ciência Sem Fronteiras tem como um de seus principais objetivos fomentar a inovação tecnológica e a pesquisa nas indústrias nacionais. Das 101 mil bolsas, 26 mil deverão ser financiadas pela iniciativa privada, sendo que a Confederação Nacional da Indústria (CNI) comprometeu-se a promover 6 mil.
 
Dessas, mil serão usadas na capacitação avançada de pessoal do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) e do Serviço Social da Indústria (Sesi).
 
"O Senai está com um projeto de institutos de inovação, e vamos usar o CsF para capacitar o pessoal desses institutos", disse à Ensino Superior o diretor de Operações do Senai, Gustavo Leal. Para as demais 5 mil bolsas, a CNI pretende estimular as indústrias para que tratem o programa como "estratégia de capacitação avançada em áreas de seu interesse".
 
"Estamos dizendo para as indústrias: existe alguma área em que você precisa formar pessoal, precisa ter uma absorção de conhecimento alinhada à sua estratégia?", explica Leal. "Então, pense em utilizar o programa Ciência Sem Fronteiras. Você pode pegar pessoas recém-formadas, mestrandos, doutorandos, e encaminhar, você custeando a bolsa, em áreas de seu interesse, ou mesmo pegar seu pessoal, seu pesquisador a quem você queira dar uma capacitação específica".
 
Ainda segundo Leal, a CNI tem interesse em trabalhar as áreas de pós-doutorado no exterior, "porque temos muitos doutores trabalhando no setor industrial, menos do que seria necessário, mas temos"; também o doutorado-sanduíche, "porque tem muita gente fazendo doutorado nas empresas, então acreditamos que há espaço para isso"; e as bolsas de treinamento no exterior para um período máximo de nove meses, "o que seria muito focado para engenheiros e pesquisadores das empresas, em áreas bem específicas"; também a possibilidade de se trazer ao Brasil pesquisadores-professores visitantes, "para que venham para a empresa por um período". O CNPq, por sua vez, afirma, sem informar números, que "a cada dia mais empresas nos procuram para firmar acordos de cooperação".
 
Bolsa-sanduíche de doutorado preocupa alguns especialistas: seria preciso evitar que o doutorando fique solto no exterior, sem orientação que mantenha seu foco no tema da tese Sanduíches
Existe ainda algum ceticismo no meio acadêmico quanto a um dos formatos adotados pelo CsF, o da graduação-sanduíche – no qual estudantes de cursos regulares de graduação podem passar de seis meses a um ano estudando disciplinas fora do país, retornando em seguida para completar o curso no Brasil.
 
Além de questões sobre a utilidade de bolsas de tão curta duração nessa etapa da vida acadêmica, existem dúvidas, por exemplo, quanto ao aproveitamento dos créditos obtidos no exterior pelos alunos, e da equivalência entre as disciplinas cursadas lá fora e as que o estudante deveria ter cumprido no Brasil.
 
Essa questão do reconhecimento dos créditos acadêmicos também foi levantada na reunião da SBPC. O representante no Brasil da agência alemã de fomento à ciência, DGF, Helmut Galle, disse durante mesa sobre o programa brasileiro que ainda não está claro que tipo de reconhecimento os estudantes terão ao voltar ao Brasil.
 
Das 1.233 bolsas concedidas pelo governo dentro do CsF, contabilizadas em janeiro deste ano segundo tabela publicada no site do CNPq, um total de 724, ou quase 59%, eram de graduação-sanduíche.
 
Em nota, o CNPq afirma que "o principal objetivo da bolsa é permitir ao aluno de graduação conhecer o ambiente inovador e competitivo dos países de destino, que têm tradição e excelência nas áreas tecnológicas e científicas na fronteira do conhecimento". Além disso, de acordo com o Conselho, "alunos terão oportunidade de estagiar em grandes empresas parceiras nos períodos de férias, portanto o foco na profissionalização será bastante intenso".
 
O CNPq diz ainda que as instituições brasileiras de ensino superior são "grandes parceiras" e "estão se mobilizando para buscar a internacionalização e o aproveitamento global dos créditos dos bolsistas".
 
Outra modalidade de bolsa-sanduíche, a de doutorado, também causa preocupação em alguns especialistas. Como escrevem os autores do artigo "Cem Mil Bolsistas no Exterior", "existem razões para duvidar da eficácia de bolsas tipo 'sanduíche', em que o aluno de doutoramento no Brasil vai passar um ano em uma universidade no exterior e volta para completar sua tese no país".
 
Outra limitação é o mau preparo dos estudantes brasileiros em línguas estrangeiras; o problema é reconhecido pelo próprio governo A principal dificuldade estaria em evitar que o doutorando fique "solto" no exterior, sem orientação que mantenha seu foco no tema da tese. O CNPq acredita, no entanto, que não haverá dificuldade em manter uma colaboração estreita entre o orientador original no Brasil e o do país de destino, mesmo na grande escala prevista pelo programa. "Os parceiros do CsF oferecem centenas de vagas a cada dia aos nossos bolsistas, sendo que grandes centros de pesquisa no exterior já buscam colaborações com times de laboratórios brasileiros", afirma. "O programa não só ajudará na mobilidade internacional dos estudantes, mas aproxima os pesquisadores renomados do exterior dos grupos nacionais".
 
De acordo com os dados publicados pelo CNPq na internet, das 1.233 bolsas concedidas até o início de 2012, 244, ou quase 20%, são desse tipo.
 
Problemas práticos
Além das questões de fundo conceitual, o CsF também enfrentou em seu primeiro ano uma série de entraves de ordem prática e burocrática. Ainda em março, o jornal O Estado de S. Paulo informava que os pagamentos aos bolsistas encontravam-se em atraso. "O programa Ciência Sem Fronteiras, aposta da presidente Dilma Rousseff para a formação de pesquisadores, tem atrasado o repasse do dinheiro para bolsistas no exterior", informava o diário paulista, dando como exemplo o caso de um estudante de Engenharia com bolsa no Canadá que teria ficado sem dinheiro para cobrir dois meses de despesas. Em carta ao jornal, o CNPq negou que houvesse atrasos.
 
Já em junho, a imprensa noticiou que alguns estudantes do CsF não estavam conseguindo renovar suas bolsas no exterior. O Estado informava que o programa decidira "não renovar as bolsas de pelo menos 25 estudantes que estão no exterior, forçando-os a abandonar estudos e pesquisas". A notícia fez com que a presidente Dilma Rousseff cobrasse explicações do CNPq antes de partir para Londres a fim de acompanhar a abertura dos Jogos Olímpicos. Ouvido pelo jornal, o diretor de Cooperação Institucional do Conselho, Manoel Barral Neto, disse que a situação dos estudantes seria reavaliada.
 
Outra limitação amplamente reconhecida é o mau preparo dos estudantes brasileiros em línguas estrangeiras, principalmente o inglês. O problema é citado no artigo publicado na Interesse Nacional, foi mencionado diversas vezes durante a reunião da SBPC e é reconhecido pelo próprio governo.
 
Em outubro do ano passado, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) anunciava que pretendia oferecer cursos gratuitos online, de inglês, para os bolsistas. Em abril deste ano, o governo brasileiro anunciou que a Embaixada dos Estados Unidos iria oferecer pelo menos 125 bolsas de estudo em língua inglesa e cultura americana para estudantes do CsF.
 
A Capes anunciou que pretendia oferecer cursos gratuitos online de inglês para os bolsistas; embaixada dos EUA ofereceria bolsas de estudo em língua inglesa e cultura americana para estudantes do CsF Sucesso internacional
A despeito dos obstáculos e incertezas, o programa atraiu atenção das instituições internacionais de ensino superior. Representando um investimento estimado em mais de R$ 3 bilhões, ou cerca de US$ 1,5 bilhão, o CsF representa uma grande fonte potencial de recursos para escolas de países duramente atingidos pela crise econômica internacional que se prolonga desde 2008.
 
"Governos e universidades estão se lançando à oportunidade de ensinar estudantes brasileiros", escreveu a revista britânica The Economist em março deste ano. "Os Estados Unidos já se comprometeram a receber 20 mil; Reino Unido, França, Alemanha e Itália ficarão com 6 mil a 10 mil cada. Retardatários estão se virando para atrair o resto" dos 101 mil.
 
No fim de agosto, o CNPq anunciou uma ampliação da cooperação entre o CsF e Oxford, no Reino Unido. De acordo com nota divulgada pelo Conselho, a universidade britânica já era receptora de 15 bolsas concedidas pelo programa. No mesmo mês, a BBC noticiava uma "ofensiva de universidades americanas" no Brasil, em busca de bolsistas do CsF.
 
"O Brasil receberá no fim deste mês a maior missão de universidades americanas de todos os tempos, o mais expressivo cortejo dessas instituições para atrair alunos brasileiros para seus corpos discentes", escrevera o noticioso britânico. "Entre 30 de agosto e 5 de setembro, 66 universidades dos Estados Unidos participarão de feiras estudantis em Brasília, São Paulo e Rio, dez a mais que o grupo que viajou recentemente para a Indonésia e o Vietnã, até então a missão mais numerosa."
 
Tanto críticos quanto proponentes do Ciência Sem Fronteiras parecem concordar que o Brasil precisa qualificar melhor sua mão-de-obra com vistas à pesquisa e à inovação, e aprofundar a experiência e a vivência internacionais de seus cientistas e pesquisadores.
 
"Diante de nossa crônica escassez de capital humano, o programa é mais que bem-vindo", diz o artigo "Cem Mil Bolsistas no Exterior". "O esforço da presidente Rousseff para investir na educação da juventude por meio do Ciência Sem Fronteiras é tão necessário quanto bem-vindo", afirma o artigo escrito para a BBC por Eduardo J. Gomez (que também chama a atenção para a necessidade de investimentos em ensino médio e básico).
 
A CNI, por sua vez, reconhece que o programa não pode ser só do governo, e que a indústria tem um papel essencial a desempenhar para que o CsF atinja seus objetivos. "Estamos querendo inserir a indústria no programa, para que haja a possibilidade de começar de fato uma formação mais avançada de seu pessoal. Porque, aí, passaremos para os projetos de inovação de que tanto precisamos", diz o diretor do Senai, Gustavo Leal.