27/05/2011

Reforma da Educação Superior

Educar para o ofício ou educar para mudar de ofício?

Claudio de Moura Castro
Assessor especial da presidência do Grupo Positivo, doutor em economia pela Universidade de Vanderbilt; foi diretor-geral da Capes, chefe da divisão de políticas de formação da OIT e economista sênior de Recursos Humanos do Banco Mundial; ensinou nos programas de mestrado da PUC/Rio, FGV, Universidade de Chicago, UnB, Universidade de Genebra e Universidade da Borgonha em Dijon

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Todo ensino superior é uma mescla de formação geral com o aprendizado de um ofício ou profissão. Encontrar a boa combinação tem sido um desafio, já faz pelo menos dois séculos. Naturalmente, não há fórmulas mágicas ou únicas, mas sim respostas específicas a situações concretas. De fato, dada a imensidão das diferenças reais entre carreiras e entre níveis de alunos, não há como ignorar a advertência de que podemos falar de tendências gerais. Mas em cada caso, as soluções apropriadas são muito diferentes.

Como grande fio condutor da discussão, retenhamos três afirmativas:

[1] Quanto mais sólida e longa é a educação recebida nos níveis anteriores, mais o curso superior pode se concentrar nos assuntos da profissão a ser aprendida;

[2] Cada vez mais os empregos se afastam dos diplomas, a variedade de empregos torna-se cada vez maior do que a de diplomas e cresce também o número de diplomados que não encontram emprego correspondente;

[3] Quanto maior a chance de mudanças ocupacionais ao longo da vida, maior a importância de reforçar a formação de base que, é sempre útil, qualquer que seja a ocupação.

Ao contrário do que pensariam almas mais afoitas, o ensino superior não pode ser visto apenas como um aprofundamento cada vez maior em um campo do conhecimento cada vez menor. Na Rússia Soviética, era tamanha a abundância de diplomas que havia um curso de engenharia química de tintas com base sintética e outra engenharia separada para tintas com base natural. Tal exemplo era frequentemente apontado como o cúmulo da especialização.

Mas esse mesmo excesso de especialização tanto revela quanto ilude. Na verdade, a questão relevante seria saber a partir de que momento na carreira do aluno ele começa a tomar uma trilha profissional diferente de todas as outras. Repare-se o seguinte. Os onze ou doze anos de educação básica são “genéricos”, exceto nas formações técnicas oferecidas nesse nível. O foco em alguma ocupação só começa em algum ponto do superior, pois mesmo o engenheiro russo das tintas começa com a mesma matemática, química e outras disciplinas que são oferecidas em praticamente qualquer carreira. Então, podemos verificar que mesmo essse engenheiro só se especializa ao atingir o fim do seu curso. Em outras palavras, ele estudou, pelo menos, mais de 14 anos assuntos genéricos e apenas em um ou dois dedicou-se à sua futura ocupação. Não passa muito de 10% do tempo se especializando. Em outras palavras, nem tão especializado assim é o mais ridiculamente especializado engenheiro das tintas. E é justamente por isso que os engenheiros russos (ou brasileiros) se ajustam rapidamente quando mudam de ocupação. A especialidade é só uma casquinha de última hora na sua formação.

Cada vez mais os empregos se afastam dos diplomas, a variedade de empregos torna-se cada vez maior do que a de diplomas e cresce também o número de diplomados que não encontram emprego correspondente Portanto, jamais poderemos falar de cursos superiores totalmente especializados. Todos são uma mescla de assuntos gerais com assuntos especializados. O desafio será sempre identificar mesclas desequilibradas e de buscar melhores combinações entre o genérico e o especializado.

Esse é o tema do presente ensaio. Para melhor entender a situação do Brasil nos dias de hoje, vale a pena começar examinando dois países que tradicionalmente têm servido de inspiração para o ensino brasileiro: a França e os Estados Unidos.

O MODELO FRANCÊS E SUA EVOLUÇÃO

Para os propósitos do presente ensaio, o sistema de ensino francês pode ser caracterizado pela alta qualidade dos níveis fundamental e médio, bem como pelo profissionalismo dos seus quadros docentes. [1] O alto grau de exigência sobre os alunos é também bem conhecido.

Para compreender o que acontece com o aluno francês nas idades do ensino médio, é preciso chamar a atenção para a existência de várias trajetórias escolares alternativas, a partir de idades tão tenras quanto 14 ou 15 anos. Algumas são claramente profissionalizantes e nem sequer dão acesso aos cursos secundários. Outras oferecem alternativas profissionais, bem como acesso a cursos superiores. Ou seja, vários dos trajetos nem sequer emitem diplomas ou certificados que permitem o acesso à universidade. Alguns admitem acesso a cursos pós-secundários não universitários.

O caminho real para a universidade é o secundário tradicional que culmina em um exame, o baccalaureat. É, sabidamente, uma prova difícil e com uma proporção importante de alunos que não passam. Por muito tempo, a proporção da faixa etária que entrava nesse secundário elitizado permaneceu muito estreita. Ao fim da Segunda Grande Guerra, andava por volta de 10%. E ainda menor eram os que faziam jus ao bac. Dessa forma, sendo um curso voltado para uma elite, mantinha altíssimos padrões de qualidade. É interessante notar que Sartre e Camus eram professores de secundário. Nessas escolas, alguns poucos privilegiados obtinham uma excelente base nas ciências e nas humanidades. Os padrões de matemática e ciência eram elevados e exigia-se uma redação primorosa.

Note-se que os demais países europeus tinham e têm sistemas equivalentes de provas, exigidas para obter um diploma de secundário. Por exemplo, o Abitur na Alemanha, o Maturité na Suíça e o A Class no Reino Unido. Em todos os casos, a proporção da juventude entrando nessas trajetórias era bem pequena. Bem após a Segunda Guerra Mundial, cerca de um quarto ou menos terminava o secundário na Europa. Na Alemanha, ainda hoje a proporção dos que terminam o curso que dá acesso direto à universidade (o Gymnasium) é da ordem de 20%.

Lidando com uma matéria-prima tão bem peneirada e preparada, os cursos superiores podiam entrar imediatamente nos assuntos profissionais. Ainda hoje, somente um quarto da faixa etária francesa vai para a universidade. De fato, a grande reforma universitária feita por Napoleão III centrou o ensino superior francês de elite no modelo das Grandes Écoles – em detrimento das universidades tradicionais. Essas eram escolas para uma pequena elite e totalmente profissionalizantes na sua formação. Não obstante, era uma formação bastante ampla, dentro da profissão. Ali estavam as escolas de medicina, direito, engenharia e de comércio.

Na sua lógica, o sistema fazia todo sentido, o mesmo se dando com os dos outros países da Europa continental. Não obstante, após a Segunda Guerra, começa na Europa um processo de expansão do secundário. Foi uma expansão lenta, não criando muitas turbulências no início. Mas nos últimos vinte anos houve uma política agressiva do governo francês de expandir a matrícula no secundário, mediante a criação de muitas modalidades técnicas de bacs. Diante disso, o inevitável aconteceu. A qualidade do graduado, antes garantida pelo elitismo da clientela, não pôde mais ser mantida. O Bac de hoje não atesta a mesma excelência acadêmica que o do pós-guerra, quando Sartre e Camus eram professores.

Progressivamente, a França se dá conta de que, com a inflação de matrícula, já não era mais possível assegurar uma formação tão sólida para todos os que chegam ao superior. Como resposta, foi criada uma nova estrutura ao início do superior: o DEUG, um ciclo de estudos gerais de dois a três anos, precedendo a profissionalização. Ou seja, quando fraquejou um pouquinho a qualidade do secundário, foi necessário adiar o término da formação geral ou de base. Dito de outra forma, o superior passa a compartilhar com o secundário a tarefa de oferecer uma sólida formação de base. Há discussões na França sobre os méritos e falhas do DEUG, mas não está em jogo a ideia de um período mais alongado de estudos gerais. Em termos ideais, não haveria por que mudar o superior quando o problema está nos níveis mais baixos. Mas na prática, há enorme inércia e grandes dificuldades em mudar um sistema básico mastodôntico. Mas não foi só por isso que se criou o DEUG. Cada vez mais, os empregos se afastam dos diplomas. Portanto, é preciso dar aos graduados uma base mais ampla que permita um rápido ajuste às novas ocupações para as quais os graduados vão progressivamente se mudando. Em outras palavras, a permanência nos empregos e ocupações dura cada vez menos. E quanto àqueles que não mudam, em geral, estão em ocupações estagnadas e sem horizontes.

O grande problema é com as Humanidades, a começar pelo próprio entendimento do que venham a ser. são disciplinas que ventilam a mente, que abrem portas intelectuais, que provocam a ebulição de ideias O chamado Processo de Bolonha retoma ideias na mesma direção, propondo que toda a Europa caminhe para uma mesma base comum de estudos gerais, substituindo a profissionalização imediata que predominava e permitindo adiar a escolha profissional (na verdade o Processo de Bolonha é muito mais do que isso, mas esse é o aspecto que nos interessa aqui). Como bem sabemos, as negociações na Comunidade Europeia são lentas e custam a chegar ao seu termo. Mas a tendência é clara. As economias modernas requerem uma formação de base mais forte do que antes e a massificação do secundário impede que isso continue a ser feito naquele nível.

ESTADOS UNIDOS: DE ESCOLAS DE TEOLOGIA A ESCOLAS DE OFÍCIOS

A trajetória do ensino americano é muito diferente daquela observada nos países continentais. É bem mais parecida com a do Reino Unido, mas não nos deteremos aqui nessa particularidade. A matriz cultural e educativa dos Estados Unidos origina-se na Nova Inglaterra. E lá, a influência protestante sempre foi muito forte, pois a colonização original trouxe grupos que se sentiam perseguidos ou desconfortáveis na Europa. Mais ainda, eram grupos muito preocupados com assuntos de educação – entre outras coisas, a leitura da Bíblia sempre fez parte da tradição protestante. Não é, pois, surpresa que a Universidade de Harvard seja criada em 1636. Pensilvânia, Yale, Princeton e Columbia são da mesma época. Porém, é importante saber que eram todas escolas de teologia (Divinity Schools), pois havia que criar o exército de pregadores e pastores que o fervor protestante exigia. A conversão dessas universidades a assuntos mais seculares dá-se lentamente e o seu papel de ensinar profissões também vem depois, ao longo do século XIX.

Quando, finalmente, as universidades e colleges se veem confrontadas com o seu papel profissionalizante, busca-se uma solução de compromisso, a partir de currículos com fortes componentes de humanidades. Ao longo do tempo, vão sendo forjadas mesclas entre a preparação para a carreira e a base humanística que já vinha de longa data, plasmada na tradição de ensinar filosofia, religião e retórica. Curioso notar como tal fórmula nega o mito, arraigado no Brasil, de que a educação americana é excessivamente especializada.

 

É interessante registrar outra dimensão do problema. A palavra collège denomina, na França, o secundário, momento em que se aprendem as ciências e humanidades. É a fase mais avançada da aquisição de uma cultura ampla e geral. Em inglês, a palavra college também se refere a um momento da carreira do aluno em que ele adquire uma formação geral. A diferença é que, na França o collège é o secundário e nos Estados Unidos, o college é um curso de nível superior. Ou seja, em ambos os casos, a palavra “colégio”, em suas variantes inglesas e francesas, denomina a fase de formação científica e humanista. A diferença é que, nos Estados Unidos, essa formação localiza-se no nível superior.

Quanto mais sólida e longa é a educação recebida nos níveis anteriores, mais o curso superior pode se concentrar nos assuntos da profissão a ser aprendida Seja como for, tal insistência americana em manter uma base de educação geral nas duas primeiras séries do superior veio muito a calhar nos anos que se seguiram. De fato, foram anos muito movimentados, pela aprovação do chamado Morrill Act, em 1862, criando uma série de universidades voltadas para a tecnologia e a agronomia (Illinois, Ohio, Kansas, Iowa). A criação dos Land Grant Colleges, recebendo filhos de pequenos agricultores, foi uma grande revolução, pois ensinar coisas práticas era anátema em uma universidade de orientação filosófica e que não se sentia confortável com assuntos tão pedestres e terrenos. Mas encontrou-se um meio termo e as humanidades convivem até hoje com carreiras práticas.

A partir do fim do século XIX, houve uma grande discussão acerca do rumo que deveria tomar o que hoje chamamos de secundário ou médio. Muitos pregavam uma solução ao estilo europeu, com um sistema que vai se bifurcando. Alguns vão para cursos profissionalizantes e outros para trajetórias mais acadêmicas. Venceu uma ideia que jamais passaria pela cabeça dos europeus: criar um sistema escolar único, em que toda a faixa etária estudaria e onde seriam oferecidos tanto cursos acadêmicos quanto vocacionais. Mais ainda, a meta extraordinariamente ambiciosa era chegar algum dia à universalização da High School – igualmente, era uma solução passando longe do pensamento europeu.

Somente depois da Segunda Guerra a meta de universalização do secundário começa a ser tomada literalmente. Mas mesmo antes, a proporção da “coorte” frequentando as High Schools era muito maior do que em qualquer outra nação. Após a guerra foi aprovada uma lei (G.I. Bill) que financiava generosamente os estudos dos veteranos de guerra. Em dez anos, dez milhões de veteranos voltaram à escola. Inevitavelmente, o custo de crescer tanto foi a opção de não criar qualquer exame de entrada ou saída das High Schools. De fato, não há hoje de forma generalizada e não houve antes qualquer controle sobre nível de conhecimento mínimo para se graduar de uma High School (nisso não divergimos dos americanos). Para entrar em cursos superiores de certa qualidade há exames voluntários, como o SAT, mas não são requisitos para se formar e para ser aceito em instituições menos competitivas. Aqui também, não nos distanciamos muito dos americanos, se considerarmos que o Enem e os vestibulares cumprem papel semelhante. É inevitável que, sem controles como o Bac e o Abitur, a variação de desempenho entre alunos seja muito grande. Portanto, ao contrário da Europa de outrora, o alunado americano sempre teve uma enorme dispersão no nível de desempenho acadêmico no secundário – e por via de consequência, no superior.

O grande paradoxo do ‘saber fazer’ é que as sociedades modernas se distanciam cada vez mais do perfil clássico de alguém que aprende um ofício e o pratica até o dia da sua aposentadoria Some-se a isso uma política muito mais generosa de expansão de vagas no superior. Quando 67% da faixa etária entra em cursos superiores, é inevitável que o aluno do superior americano oscilará entre o semianalfabeto e o quase-gênio. Nesse quadro, a tradição de oferecer um período de dois anos de educação geral ou ciclo básico faz todo o sentido. Para os mais fracos, é a chance de melhorar o desempenho em leitura, redação e matemática. [2]

Em suma, é preciso entender que todo o ensino superior americano inclui uma boa dose de estudos gerais. Isso vale desde as universidades mais elitizadas como Harvard e Yale até o mais modesto Community College dos grotões de Arkansas. De fato, mesmo os cursos de dois anos, levando ao diploma de “Associate Degree”, têm um terço de disciplinas gerais que nada têm a ver com a profissão. Mas é óbvio, entre um community college e uma universidade de elite varia muito o que passa por humanidades e ciências.

O MODELO BRASILEIRO SE DESCALIBRA

O Brasil tem sido um tradicional caudatário das tradições culturais francesas. Seu sistema educacional sempre foi muito calcado no francês.

Tínhamos um secundário pesado e ambicioso, como o francês, e que era frequentado por uma pequena elite. De fato, a matrícula no nosso médio, até muito recentemente, não excedia 10% da faixa etária. Sendo tão pequeno, nossas poucas escolas davam conta de oferecer um ensino com razoável qualidade. Os mais velhos ainda se lembram de que, em Belo Horizonte, falava-se do Colégio Estadual, no singular, pois era o único na capital.

Importávamos também a escola profissional superior napoleônica. Até os nomes eram os mesmos: Faculdade de Direito, de Medicina e a Escola Politécnica. Os currículos eram igualmente importados da França. Tal como lá, eram estritamente profissionalizantes. Como lá, isso não chegava a criar problemas, pois as faculdades recebiam alunos de escolas de qualidade e de origem social bastante alta.

Quanto maior a chance de mudanças ocupacionais ao longo da vida, maior a importância de reforçar a formação de base que é sempre útil, qualquer que seja a ocupação Mas a partir da segunda metade do século XX, começa lentamente a expansão da matrícula, em todos os níveis. O fundamental cresce sem cessar. Mas como cai a sua qualidade, uma boa proporção dos alunos fica travada no meio do caminho, bloqueando o crescimento correspondente das graduações. Assim sendo, a expansão do médio se atrofia. Levou tempo para que voltasse a crescer. Ao que tudo indica, a expansão da matrícula deu-se com uma considerável perda de qualidade. Ainda assim, o médio cresceu muito pouco, pois o fundamental represava grande parte dos alunos e estes desistiam antes de se formar. Levou tempo para que começasse a crescer o médio de forma acelerada. De fato, isso só acontece na segunda metade dos anos 90. Mas tanto antes como depois, a qualidade se mantém muito insuficiente. Pior, até muito recentemente, tínhamos um ciclo básico de 11 anos enquanto praticamente o mundo inteiro tinha 12 (e a Alemanha 13).

Importamos currículos de cursos superiores que faziam sentido, na época, tanto para a França como para nós. Não obstante, na França, a queda de qualidade do secundário levou à mudança no superior. No Brasil, caiu a qualidade do secundário, de forma ainda mais dramática do que lá e continuamos com o mesmo superior importado da França, rigorosamente profissionalizante.

Em suma, temos um ensino superior profissionalizante, ao estilo francês de outrora. E temos um médio fraquíssimo, muito mais fraco até do que o francês de hoje. Note-se que, apesar de haver perdido algo do seu brilho, o ensino francês continua difícil e pesado. Ou seja, diante de uma queda modesta de qualidade, a França mudou o superior, adiando a sua profissionalização. O Brasil, com um médio de lastimável qualidade, mantém a solução francesa de meio século atrás.

Obviamente, estamos descalibrados. A importação francesa já não nos serve. E como dito, o que importamos nem sequer serve na França de hoje e já foi abandonado.

Não é surpresa que comecem as discussões. No fundo, refletem uma percepção de que estamos descalibrados. A Academia Brasileira de Ciências propôs um ciclo de educação geral de três anos, levando a um diploma e precedendo a profissionalização. As ideias não são inteiramente diferentes daquelas que levaram a França a criar o ciclo DEUG, ao início da graduação. A Universidade Federal da Bahia propõe uma estrutura curricular semelhante.

Os novos parâmetros curriculares do ensino superior, cuja preparação começou na gestão anterior do Ministério da Educação (MEC), caminham na mesma direção. Há uma clara orientação de reduzir a carga profissional obrigatória e de introduzir algumas disciplinas de ciências e humanidades. Não chega a ser uma mudança radical, mas é uma orientação muito clara e que leva a mudanças substanciais nas grades curriculares. Embora a aprovação desses currículos venha sendo lenta e penosa, não há como negar que alguma coisa já está acontecendo.

Na Rússia Soviética, era tamanha a abundância de diplomas que havia um curso de engenharia química de tintas com base sintética e outra engenharia separada para tintas com base natural Recentemente, o MEC propôs no bojo de sua reforma universitária a criação de um ciclo básico de dois anos. Na verdade, é como se fosse a exumação do ciclo básico que foi imposto às universidades federais nos anos setenta. O grande óbice dessa proposta não é a natureza do que está sendo proposto. De fato, como ficou claro da discussão anterior, essa é uma tendência inevitável. O problema é que, na vez anterior, a proposta “não colou” e foi progressivamente marginalizada. A dinâmica interna das universidades federais rejeitou o modelo. A lógica departamental e a estrutura de poder dos grupos ligados à profissionalização boicotaram o bom funcionamento do ciclo básico. Será que desta vez será diferente?

Discutir a delicada negociação de um ciclo básico em um sistema próximo do ingovernável excede de muito os objetivos do presente ensaio. Nos limitamos apenas a perguntar se isso faz sentido. Mas é óbvio que não haverá ciclo básico, ou o que quer que o chamemos, se a sua viabilidade política e legal não for negociada com extrema habilidade e pragmatismo. As primeiras reações que se podem ver aqui e acolá na imprensa mostram pouca receptividade para a proposta.

A BUSCA DE UM NOVO EQUILÍBRIO ENTRE A EDUCAÇÃO E O OFÍCIO

Apresentamos uma série de argumentos baseados na experiência de outros países. Por trás deles está a hipótese de que devemos levá-los a sério, por serem países eminentemente bem-sucedidos na educação e na economia. Ademais, não vemos outros países com alternativas mais promissoras.

Entremos agora mais fundo no mérito da questão. Em última análise, temos a necessidade de oferecer duas linhas de conhecimentos no ensino superior. É preciso transmitir o “saber fazer”, que é a profissionalização. Mas é preciso também dar o peso devido ao “saber pensar”. É dar o ofício e dar a educação que emoldura o aprendizado do ofício e, no dizer de Arnold Mathews, que permite conhecer melhor a si próprio e o mundo. É a bússola para a viagem da vida.

Com a multiplicação das ocupações e com a especificidade crescente das tarefas, fica cada vez mais difícil o casamento do ‘saber fazer’ de cada um com o ‘fazer’ que cada emprego requer É interessante verificar que esse assunto polarizou as melhores cabeças, por vasto tempo. Vejamos o que diz Whitehead, um dos cérebros mais privilegiados do século XX:

“A antítese entre a educação técnica e a educação humanística é ilusória. Não pode haver educação técnica adequada que não seja também humanística, assim como não pode haver educação humanística que não seja técnica. A educação deve incutir no aluno algo que ele saiba bem e algo que ele possa fazer bem”

Diante de uma transformação radical em sua missão, no século XIX, as grandes universidades americanas debateram amplamente a convivência entre as humanidades e a carreira, entre o ensino geral e o especializado. Veja-se a atualidade do seguinte trecho do relatório da Universidade Yale, na iminência de profissionalizar seus cursos.

“O objetivo do ensino superior não é ensinar as coisas próprias de uma ou outra profissão, mas sim de fixar as bases comuns de todas elas” (Yale University, 1828).

Uma das percepções, capturada por Whitehead, era que o profissionalismo prepara para alguma coisa. Já a educação ajuda a compreender a importância dessa coisa. Igualmente, percebia-se que o profissionalismo é transitório, a educação é permanente.

É preciso que fique claro, não se trata de subestimar o “saber fazer”. De fato, o trato com as coisas práticas durante o ensino superior traz muitas vantagens. Do lado puramente pedagógico, sabemos que a teoria se aprende pela prática. Portanto, ao aprender e aplicar técnicas, se bem conduzido o processo, não estamos aprendendo menos teoria. Pelo contrário, podemos estar verdadeiramente aprendendo a teoria, em vez de fingir que aprendemos, apenas por tomar conhecimento de sua formulação. De fato, nos cursos que têm uma espinha dorsal analítica mais densa (Física, Engenharia, Economia, Direito etc.) o próprio “saber fazer” desenvolve a capacidade para “saber pensar”.

Além disso, na hora da verdade, isto é, no mundo real, não há tarefas “genéricas” (embora as pré-condições para o aprendizado do específico tendam a ser genéricas, como tentamos demonstrar ao longo do presente ensaio). Grande parte do trabalho de um graduado do ensino superior requer o domínio de técnicas, portanto, de um “saber fazer”. Consequentemente, um ensino que apenas fique em grandes teorias sobre assuntos filosóficos ou abstratos priva o aluno do processo de fazer, fundamental em toda a educação. E o domínio de técnicas é o melhor passaporte para o primeiro emprego. Portanto, novamente insistimos, a busca é por um equilíbrio e não por soluções em algum extremo do espectro ofício-educação.

O grande paradoxo do “saber fazer” é que as sociedades modernas se distanciam cada vez mais do perfil clássico de alguém que aprende um ofício e o pratica até o dia da sua aposentadoria. Foi-se o tempo do boticário que aprendia suas fórmulas e métodos laboratoriais e os aplicava ao longo de toda a sua vida. E ainda mais longe estão os ofícios transmitidos de pai para filho.

Com a multiplicação das ocupações e com a especificidade crescente das tarefas, fica cada vez mais difícil o casamento do “saber fazer” de cada um com o “fazer” que cada emprego requer. Os mercados são imperfeitos e não são capazes de encontrar quem aprendeu a fazer. Portanto, vivemos em uma cacofonia de desencontros entre o que aprendemos na escola e o que nosso patrão de carne e osso precisa que seja feito.

Obviamente, não há outra solução que não seja aprender rapidamente a nova tarefa. Daí a ideia consagrada da educação permanente. Como não podemos aprender tudo, como tudo muda a cada dia e como não conseguimos encontrar quem use o que aprendemos, é preciso voltar à escola para aprender o novo, o que nos faz falta. E como bem sabemos, quanto mais sólida a educação de base, mais rápido aprendemos na volta à escola.

A base comum do ensino superior é saber ler e entender o que está escrito, saber escrever com precisão e fluência, saber usar números para resolver problemas do mundo real, ter conhecimento de línguas e ciências Repetem-se os depoimentos, em jornais ou conferências, em que há alguém dizendo que metade do aprendido por um engenheiro que hoje se forma estará obsoleto em cinco anos, ou qualquer outro intervalo parecido. Tal afirmativa esconde mais do que revela. É verdade que as técnicas, os aparelhos, os processos mudam a uma velocidade cada vez mais vertiginosa. Mas um profissional bem formado não tem qualquer dificuldade em atualizar-se em curtíssimo tempo. Em contraste, um profissional improvisado e que não dominou as bases de sua profissão e da compreensão do mundo em que vive terá muito mais dificuldades de se atualizar. Em outras palavras, a formação de base não fica obsoleta, somente as suas aplicações.

Bem mais frequente do que voltar à escola é aprender por conta própria. Ao longo da vida profissional, vamos encontrando novos desafios e novos problemas. Não é possível voltar à escola para aprender as soluções específicas requeridas de cada uma dessas situações. Portanto, viramos professores de nós mesmos. Não sabemos mudar o “template” do PowerPoint? Vejamos o que diz o manual.

Aliás, é interessante ver a mesma questão sob o prisma das nossas remunerações no mercado de trabalho. Quando temos mais educação, o mercado reconhece isso no primeiro emprego, pagando um extra pela nossa contratação. Faz todo sentido pensar que nos paga mais porque sabemos fazer mais coisas ou sabemos fazê-las melhor.

A lógica diria que, com o passar do tempo, se não voltamos à escola, não aprenderemos a fazer mais tarefas. Pior, nos esqueceremos progressivamente das que havíamos aprendido na escola. Não seria então também lógico que nosso salário caísse, pois seríamos menos produtivos? Mas, na verdade, nosso salário aumenta com o tempo e aumenta mais, quanto mais educados somos. E se somos realmente bem educados, torna-se várias vezes maior que o salário inicial.

A expressão ‘desvio ocupacional’ denuncia uma visão passada, na qual desviar-se da ocupação original era visto como uma catástrofe ou uma falha do aluno, do ensino ou da economia Só há uma interpretação para tal conclusão. Ganhamos mais porque fomos capazes de aprender continuamente com a experiência. Ou seja, a vida é um constante aprender, mas somente para aqueles que têm mais educação. Logo, em nossas carreiras profissionais a educação é, antes de tudo, uma ferramenta para aprender. O uso imediato do que aprendemos na escola existe e é valorizado no primeiro emprego. Mas todos os aumentos subsequentes de rendimentos que temos ao longo da vida não se devem à “educação-saber-fazer”, mas à “educação-ferramenta-para aprender”.

Esse é um resultado de grande importância para entender e orientar o nosso esforço. O objetivo não pode ser aprender tudo que precisamos para trabalhar. Já vimos que isso é só o empurrão inicial. O objetivo é aprender tudo que nos ajude a ser melhores “aprendedores” ao longo da vida.

E é com essa conclusão que voltamos à busca, já mencionada, da melhor combinação possível entre uma educação que ensina a pensar e uma educação que ensina a fazer. Não podemos aprender a pensar sem ter um assunto concreto para exercitar o pensamento. Por isso, parte do aprender a pensar dá-se no processo de aprender a fazer. Mas não iremos longe ao aprender a fazer sem dominar uma visão mais ampla e melhores ferramentas intelectuais.

A DESPROFISSIONALIZAÇÃO DOS DIPLOMAS PROFISSIONAIS

Nos sonhos de antanho dos diplomados do ensino superior, para cada profissional graduado havia um emprego esperando e com o mesmo nome. Contudo, esse sonho se desfez.

Já se vai pelo menos meio século que uma expansão acelerada na matrícula nas carreiras clássicas não encontra correspondência no crescimento dos empregos que correspondem a esses diplomas. Crescem os diplomados a uma velocidade maior do que os empregos para o seu diploma.

A oferta de vagas no superior é movida pela pressão política de uma classe média ascendente que vê na educação o canal privilegiado de mobilidade social. Isso ocorre tanto no Brasil quanto em outras sociedades. Somente os regimes mais ditatoriais conseguiram resistir a tal pressão política.

Já a demanda por graduados é determinada pelo ritmo de crescimento da economia, um nú- mero mal-comportado e que teima em ficar próximo de zero por largos períodos. Assim sendo, o crescimento explosivo dos graduados gera uma grande sobra deles. Esse “exército de reserva” acaba desembocando em centenas de outras ocupações mal definidas e vagas – se é que podem ser chamadas de ocupações. Mas como nos mostram as estatísticas, nem por isso são menos reais ou piores suas remunerações.

Na prática, isso significa que os diplomas profissionais servem para preparar também para ocupações que nenhuma afinidade têm com o assunto dos cursos. Ou seja, o ensino é profissional, mas o mercado desprofissionaliza o diploma. Isso significa que o graduado é contratado pelo fato de ter quatro anos adicionais de escolaridade superiores e que isso é bom. Significa, inversamente, que não importa muito em que campo do saber está o seu diploma.

As estatísticas brasileiras mostram que apenas cerca de um quarto dos graduados em Adminis- tração de Empresa exerce a profissão. Bem menos da metade dos engenheiros trabalha como enge- nheiros. Menos de 20% dos advogados passam no Exame da Ordem. E o número é ainda menor se descontarmos os advogados praticantes que deixam de sê-lo mais adiante. No todo, menos da metade dos que têm ensino superior está em ocupações correspondendo ao diploma. Na área social, menos de um quarto está em ocupações próximas do diploma.

É preciso não subestimar tais conhecimentos, simples só na aparência. Alunos de doutorado nem sempre entendem o que está escrito e alguns não sabem redigir corretamente Essas estatísticas de “desvio ocupacional” são sistêmicas. Isso é confirmado pela observação sistemática de que as grandes empresas, ao contratar os profissionais que têm chance de subir na sua hierarquia, selecionam sem considerar seriamente qual o nome do diploma. Assim, os trainees das multinacionais são selecionados entre economistas, advogados, engenheiros e administradores. E são eles que serão mais adiante recrutados como executivos juniores.

Interessante notar que a expressão “desvio ocupacional” denuncia uma visão passada, na qual desviar-se da ocupação original era visto como uma catástrofe ou uma falha do aluno, do ensino ou da economia. Mas hoje sabemos que as sociedades modernas buscam gente bem forma- da, qualquer que seja o diploma, para usá-las em uma sequência desconexa de ocupações e tare- fas. É pura tolice insistir em chamar de “desvio” o que virou a nova norma.

Portanto, o que estas pessoas precisam é justamente a capacidade para ajustar-se rapidamente, após cada mudança de ocupação. E como já foi mencionado, é a educação de qualidade que pro- porciona tal competência para aprender rapidamente os conteúdos das tarefas que se sucedem.

Mas se fosse só isso, qualquer educação seriamente conduzida seria igualmente boa para pro- porcionar tal ajuste. Como não deve ser surpresa para ninguém, esse não é o caso.

Qualquer ocupação contém elementos que são próprios a ela e que não reaparecem em outras. Assim, um engenheiro de estruturas aprende a calcular vigas e outros elementos construtivos. Esse conhecimento é estritamente necessário para o seu ofício e não tem qualquer utilidade direta em outros.

Mas há também conhecimentos que reaparecem em mais de uma ocupação. O próprio engenheiro precisa redigir relatórios, ler manuais em inglês e fazer apresentações orais para os seus colegas. Ora, em quase todas as ocupações, essas habilidades são também usadas.

Portanto, em uma sociedade onde a volatilidade dos empregos e ocupações é grande, há sérias vantagens em reforçar o ensino daquelas habilidades que são comuns. Ao mudar de ocupação, abandona-se o conhecimento próprio apenas dela. Em troca, é preciso aprender a fazer as tarefas da seguinte. Mas com as habilidades comuns a todas, não há perda, pois são rapidamente recicladas para a próxima ocupação.

Portanto, faz todo o sentido aumentar a base comum do ensino superior, pois é ela que serve sempre, qualquer que seja a nova ocupação. Ou seja, chegamos de volta ao argumento das seções anteriores, em que falávamos da busca de um equilíbrio entre o aprendizado do ofício e a formação de base.

A BUSCA DA BASE COMUM DO ENSINO SUPERIOR

A demanda por graduados é determinada pelo ritmo de crescimento da economia, um número mal- comportado e que teima em ficar próximo de zero por largos períodos Começamos em território relativamente sólido. Sabemos razoavelmente bem qual é a base comum do ensino superior. Na verdade, é a mesma base comum de todos os níveis de ensino. O que muda é o grau de exigência em cada nível. Trata-se de saber ler e entender o que está escrito, de saber escrever com precisão e fluência, de saber usar números para resolver problemas do mundo real (o que não é o mesmo que saber matemática). Os conhecimentos de línguas e ciências são igualmente essenciais. Enfim, estamos falando de saber pensar e resolver problemas.

É preciso não subestimar tais conhecimentos, simples só na aparência. Alunos de doutorado nem sempre entendem o que está escrito e alguns não sabem redigir corretamente.

Às vezes, é preciso lembrar que pensamos com palavras e que, se não sabemos usá-las corretamente, isso significa que não sabemos pensar. Como dizia Wittgenstein, “os limites da minha linguagem são também os limites do meu pensamento”.

E na verdade, quando nos voltamos para os resultados de testes internacionais aplicados a alunos brasileiros, fica mais do que clara a nossa deficiência em compreensão de leitura. O teste Pisa, patrocinado pela OCDE, mostrou resultados catastróficos para o Brasil. Mas ainda pior foi verificar que os nossos alunos de escolas de elite entendiam menos o que estava escrito do que os filhos de operários europeus e americanos.

Portanto, talvez a necessidade mais universal do ensino superior brasileiro seja reforçar essas habilidades básicas. De fato, é interessante notar que as grandes multinacionais testam os candidatos a trainees com perguntas muito simples, mas que exigem sólido domínio de habilidades de raciocinar e de resolver problemas. Não é por outras razões que o ciclo básico americano e francês tem uma forte dose de línguas e ciências.

A cada época de vestibular, os bites da internet ocupam-se de retransmitir as besteiras que os candidatos escreveram em suas redações. Os mais elitistas veem aí o cataclismo desabando sobre a qualidade do ensino superior. Para eles, a única alternativa é botar o ferrolho na entrada, para que cretinos não tenham chances de sentarem-se nos bancos universitários. Mas podemos também perguntar se essa não seria uma grande chance de usar o ensino superior para ensinar-lhes a dizer menos asneiras e organizar melhor seus pensamentos. Nesse particular, a experiência america- na é exemplar, pois o seu ensino superior recebe uma farta proporção de alunos que mal sabem ler e são fraquíssimos em matemática. Pragmaticamente, os colleges e universidades ensinam a ler, a escrever e a fazer contas. Por que teríamos de ser mais puristas?

Finalmente, quando falamos de habilidades básicas, não podemos nos esquecer das habilidades sociais, isto é, da nossa capacidade para lidar com gente, para trabalhar em grupo, para comunicar e liderar. Tudo isso tem um componente que pode ser desenvolvido. De fato, desenvolver tais habilidades nos alunos é parte de uma boa educação.

E PARA QUE SERVEM AS HUMANIDADES?

É relativamente fácil convencer, mesmo os mais céticos, da necessidade de ensinar a ler ou escrever a alunos do superior. A evidência está aí: deveriam saber ler, mas não sabem. Deveriam saber escrever, mas não sabem.

A oferta de vagas no superior é movida pela pressão política de uma classe média ascendente que vê na educação o canal privilegiado de mobilidade social. isso ocorre tanto no Brasil quanto em outras sociedades Todavia, uma boa educação não se resume a aprender a ler e fazer contas. Há bem mais do que isso. Há uma moldura intelectual sob a qual tudo acontece – ou deixa de acontecer. Tomando o exemplo da Faculdade Pitágoras, que implantou o seu ciclo básico, falamos de disciplinas de Ética, Cultura e Identidade Brasileira, História Contemporânea, Literatura e ciências sociais, como Sociologia e Antropologia. Naturalmente, esses são apenas exemplos, pois a lista possível é ilimitada. Por que não Apreciação Musical?

Esse conjunto de conhecimentos e atitudes é frequentemente chamado de Humanidades. Explicar de que se trata não é tarefa fácil, pois geram anticorpos por parte dos alunos e até dos professores que se aborreceram, por anos a fio, diante de um ensino das humanidades enfadonho e bolorento. Mas vale o esforço de tentar novamente.

Novamente, é preciso ter cuidado para não confundir uma direção com um cardápio fixo. Defendemos a ideia de que qualquer curso superior se beneficia grandemente de um reforço nas habilidades básicas (ler, escrever, resolver problemas) e de alguma coisa na direção das humanidades. Não obstante, dependendo do tipo de curso e do nível dos alunos, a carga de humanidades não poderá ser a mesma. Um curso recebendo alunos mais bem preparados e voltados para áreas mais acadêmicas justifica uma dose mais robusta de humanidades do que um tecnólogo.

Exploremos um pouco mais o assunto. As humanidades contrastam com a educação profissional que está voltada para ensinar a resolver problemas concretos. Como dito, o profissionalismo prepara para alguma coisa. A educação e as humanidades ajudam a entender a importância dessa coisa. Tais disciplinas são o pano de fundo do pensamento produtivo, são os quadros de referência que mantêm nos trilhos nossos pensamentos sobre outros assuntos.

Como já se disse o objetivo não é “desbravar florestas, mas irrigar desertos”. Decifrar esta frase tão importante já é uma tarefa onde a nossa vivência com as humanidades faz diferença.

A lógica departamental e a estrutura de poder dos grupos ligados à profissionalização boicotam o bom funcionamento do ciclo básico. será que desta vez será diferente? Não se trata, neste caso, de aprender a ler, mas de aprender uma maneira mais refinada de ler o mundo. As humanidades nos ajudam a entender nosso lugar na sociedade. Inclusive, permitem forjar a nossa identidade. Por exemplo, o que é ser brasileiro? Essa não é uma tarefa menor, descendentes que somos de uma sociedade multicultural, com raízes confusas e contraditórias. Somos filhos de escravos e filhos de senhores de escravos, de orientais e ocidentais, de judeus e árabes.

As humanidades são a ponte entre o mundo real e a nossa herança de cultura, arte e filosofia. São a porta para os grandes avanços e perplexidades da nossa civilização. Tudo o que nos mostram está vestido nas suas roupagens mais elegantes. Oferecem a chance de conhecer o que de melhor se pensou e se escreveu. Por conseguinte, há nas humanidades também um lado de deleite intelectual. A estética de um texto bem lapidado se impõe tanto quanto um quadro de Boticelli.

Além disso, como nos dizia Whitehead de forma irretocável, educação tem a ver com a descoberta da beleza das ideias e do poder das ideias. Pelo estudo das humanidades, somos levados à descoberta, por nós próprios, dos prazeres de pensar por conta própria, através de leituras e conversas.

Na pior das hipóteses, nos permitem saber que não sabemos quase nada. Apreciarmos o tamanho da nossa ignorância é um sofrimento, mas é também um privilégio.

Nisso tudo há uma nuvem sombria. É muito difícil ensinar as humanidades. Muitos fracassaram e poucos tiveram êxito. Há um enorme risco de nos perdermos em um academicismo obscuro. A área atrai professores e pseudointelectuais pedantes e mais interessados em floreios intelectuais do que em ideias universais e poderosas. Ser aluno de um desses é uma sentença de morte na nossa educação.

Igualmente, muitos professores e praticantes tendem a refugiar-se no tecnicismo das discus- sões entre pares e nos escritos feitos apenas para publicar em revistas eruditas. Quem não vai ser um profissional na área (filosofia, literatura ou o que seja), não tem qualquer razão ou interesse pelas pendengas e microcontrovérsias entre coleguinhas dentro de um pequeno círculo. O que interessa não são as controvérsias técnicas, mas os grandes temas.

Em seu livro Six Great Ideas, Mortimer Adler nota que todas as grandes ideias da filosofia são identificadas por palavras de uso cotidiano. Ou seja, são ideias de vida dupla. De um lado, têm um significado que todos entendem e com o qual todos convivem. De outro, têm o seu sentido mais rigoroso e refinado na filosofia, necessário para uma discussão séria e produtiva. Mas é o seu sentido plebeu que indica o poder da ideia por trás da palavra. Sua importância filosófica deriva do fato de tratar-se de um tratamento mais profundo e sistemático de temas que sempre nos interessaram. Para que o estudo da filosofia e das humanidades se justifique para muitos, não podemos perder de vista o seu sentido plebeu e nos escondermos nos floreios que ocupam o tempo dos profissionais da área.

Contudo, há uma alternativa de vulgarização excessiva das ideias, tirando delas toda a força e impacto. Exagerando, é o que fazem os livros infantis, traduzindo os clássicos em versões sem pujança e sem sabor. Ou então, os resumos para que os alunos possam passar na prova sem haver lido os livros indicados no curso. Neles não há vida.

Mergulhar na literatura é como fazer uma viagem a um país desconhecido e diferente. Cada um verá aspectos diferentes e fará leituras algo diferentes do que viu. Mas se os olhos e a mente estiverem abertos, o viajante voltará intelectualmente mais rico.

O exército de reserva acaba desembocando em centenas de outras ocupações mal definidas e vagas. Mas nem por isso são menos reais ou piores suas remunerações Enfim, o desafio não é pouco. Mas achamos que vale a pena. Precisamos de pessoas cultas, capazes de uma leitura mais complexa e sofisticada do mundo em que vivemos. Na verdade, dormi- mos oito horas e trabalhamos oito horas. Ora, ainda sobram oito cujo desfrute tem um componente estético (filmes, livros, pintura, teatro, música, conferências etc.) profundamente influenciado pela nossa formação intelectual. De fato, grande parte dos prazeres culturais não é intuitiva, pois requer uma preparação prévia, tipicamente oferecida por uma boa educação. Quem aprendeu um mínimo sobre composição e equilíbrio na pintura terá uma visão muito mais rica de uma foto de Cartier-Bresson, capturando o “momento eloquente”.

E para aqueles preocupados com o lado material dessas opções, é sempre bom lembrar que vão para os empregos mais cobiçados aqueles que têm uma educação mais sólida e redonda e não os que apenas dominam técnicas.

O QUE É SER CULTO?

A palavra “cultura” é difícil definir, pois começamos na contramão, dada uma tendência a associar cultura com imagens pedantes e afetadas. Portanto, o mais importante é não confundir cultura com erudição ou com saber muitas coisas.

De fato, a falsa cultura é conhecer fatos, datas e nomes, bem como citar teorias e autores. É isso que passa por cultura.

Em contraste, a verdadeira cultura é saber usar todos esses conhecimentos na hora certa, na situação certa e nos assuntos importantes. Parafraseando Einstein, cultura é o que fica, depois que esquecemos o que a escola ensinou. Cultura tem a ver com uma visão mais abrangente do mundo e dos assuntos que nos cercam. Tem a ver com a nossa capacidade para fazer conexões entre os fatos isolados que observamos e uma enorme teia de ideias e conhecimentos aos quais eles podem ser associados.

O profissionalismo prepara para alguma coisa. Já a educação ajuda a compreender a importância dessa coisa. O profissionalismo é transitório, a educação é permanente Tomemos um exemplo: um acidente de avião. Por que teria acontecido? Uma pessoa menos culta encontrará um ou dois culpados e nisso termina seu mapeamento conceitual do acidente. Uma pessoa mais culta, sem ignorar tal atribuição de culpas, verá um quadro muito mais amplo, intrincado, onde se mesclam razões técnicas, comportamentos humanos, condicionantes sociológicos, configurações culturais e políticas e muitas outras dimensões. É uma análise muito mais rica, com maior probabilidade de conduzir a soluções efetivas, em contraste com invectivas e curas parciais.

Há os que veem as árvores e não entendem a floresta. Esses são os especialistas que tomam como sua província um assunto estreito – e transformam-se em provincianos por toda a vida. São uns pobres cretinos.

Há os que veem a floresta, mas não entendem de árvores. Esses são os generalistas que não sabem fazer nada de concreto. Falam bonito, mas não entram nos detalhes do concreto, sem o que nada se diz de útil e nada se consegue fazer.

O homem culto entende a floresta e conhece as árvores. É sempre o generalista-especialista. É o que sabe fazer e sabe pensar. É o que vê o quadro maior, mas não ignora o menor. É o que entende a ínfima parte e sabe como se encaixa no todo. Citando William Blake:

"To see a world in a grain of sand
And a heaven in a wild flower,
Hold infinity in the palm of your hand,
And eternity in an hour."


O LIVRO, A PORTA DE ENTRADA PARA A CULTURA E AS HUMANIDADES

Podemos ir ao teatro, assistir conferências, ir a aulas ou frequentar concertos e galerias de arte. Tudo isso faz parte da nossa formação humanística e cultural. Mas no fundo, é pelos livros que transita a maior parte do que aprendemos. Portanto, é neles que estará o nosso foco aqui. E obviamente, os livros estão aí para serem lidos.

Há entre 40 mil e 50 mil títulos publicados por ano no Brasil. Nesse particular, o país está bem servido. Infelizmente, as tiragens são ínfimas. Mas isso é outro assunto, ilustra por que somos uma nação de gente inculta.

O nosso assunto é outro. Por que livros escritos há décadas ou séculos continuam sendo lidos? Não há direitos autorais, não há campanhas de marketing. Não há multinacionais vendendo ou promovendo Cervantes, Camões ou Shakespeare. Aristóteles e Platão são publicados e republicados nos países mais avançados, mostrando que estão sendo lidos, século após século. Os árabes liam Aristóteles e outros gregos. É óbvio que algo haverá neles que os tornam mais resistentes à morte.

Por que as peças de um dramaturgo do século XVII, que nasceu e passou grande parte de sua vida em um vilarejo inglês chamado Stratford on Avon, continuam a ser encenadas? Por que, quando traduzidas e encenadas em tribos africanas, distanciadas de nossa civilização ocidental, fazem tanto sucesso quanto na Inglaterra? Por que, quando lidas por alunos de escolas da periferia de São Paulo, essas peças são entendidas e apreciadas?

Em suma, é preciso ler para entrar no espírito e no intelecto da nossa civilização. Mas por que ler porcaria, em vez daqueles livros que se recusam a morrer? Alguns cínicos definem os clássicos como os livros que as pessoas dizem que leram, mas não leram. Mas fiquemos com uma definição mais séria: um “clássico” é um livro que teima em não morrer.

E se vamos ler e se aceitamos a ideia de ler os clássicos, como selecionar dentre os milhões de livros escritos em um intervalo de tempo de três mil anos? Nesse assunto, Mortimer Adler tem claríssimas suas ideias. Segundo ele, alguns livros são mais importantes que outros. Fiquemos com eles. Mas também, algumas ideias nesses livros são mais importantes que outras. É com elas que devemos lidar.

Portanto, a receita é simples e linear. Devemos nos concentrar nas melhores ideias dos maio- res autores de todos os tempos. Não há que ler muito, há que ler pouco e entender muito. Obviamente, podemos debater até a morte quem vai escolher tais livros e que livros serão – ninguém pode argumentar que essa seja uma questão de detalhes. Mas esse não é o tema do presente ensaio.

Voltando ao tema, por que será que alguns livros se recusam a morrer? Há várias razões. Uma delas é que lidam com temas universais, que serão sempre importantes, seja porque se repetem, seja porque mostram características recorrentes do comportamento humano. Vejamos alguns exemplos de obras imperecíveis:

Ao escrever Os Sertões, Euclides descreve a sociedade brasileira na entrada do século XX. Mostra a onipotência, a arrogância e a ingenuidade do Estado brasileiro, ao lidar com uma rebelião que nem entendia e cuja força nem podia avaliar. O Brasil mudou desde então. Mas muito do que descreve Euclides ainda está vivo na nossa sociedade.

Em uma peça de Shakespeare, o Rei tem um amigo querido, chamado Falstaff. Mas o amigo aproveita a sua amizade para vender favores, em seu próprio benefício, colocando o Rei em posição politicamente difícil. Diante de sua amizade com Falstaff, o Rei vive um dilema moral. O que fazer com o amigo que o prejudicava? Os jornais recentes têm anunciado dilemas morais muito parecidos, vividos pelos nossos dirigentes.

Maquiavel é sempre atual em seus conselhos. É conhecida a sua sugestão de que o governante precisa ser respeitado e não amado. Quantos políticos tentam ser amados e acabam nem amados e nem respeitados? Ainda mais conhecido é o seu conselho para que as coisas boas sejam dadas em pequenas doses, mas as ruins, que venham todas de uma só vez.

O professor Renato Janine cita o livro Vidas Secas como exemplo de uma obra literária que teve grande influência na compreensão da pobreza do Nordeste. Por muito tempo, achava-se que o problema do Nordeste era um assunto moral. No reinado do imperador D. Pedro II, chegou-se a falar em vender as joias da coroa para erradicar a pobreza. Graciliano Ramos mostra que o problema do Nordeste é social e político e não moral. Não se resolve jogando dinheiro nele.

OS PROBLEMAS DE IMPLEMENTAÇÃO

Os mercados são imperfeitos e não são capazes de encontrar quem aprendeu a fazer. Portanto, vivemos em uma cacofonia de desencontros entre o que aprendemos na escola e o que nosso patrão de carne e osso precisa que seja feito Como em quase tudo, é mais fácil encontrar soluções boas do que implementá-las. No caso, podemos pensar em duas etapas do processo de implementação de um conteúdo maior de educação geral e humanidades.

A primeira é a decisão de aumentar o peso das ciências e das humanidades no ensino superior. Há óbvias resistências dos núcleos duros das profissões. Os advogados dizem que são necessárias três disciplinas de Direito Penal. Segundo os matemáticos, quem não sabe derivadas e integrais não completa a sua maioridade intelectual. Um professor de cálculo, filho de outro professor de cálculo, afirmou com certeza absoluta que Humanidades é coisa de maricas. Ouvi uma aluna de Direito recentemente perguntar, com arrogância: por que um advogado precisa estudar inglês? Os administradores querem mais disciplinas dessa ou daquela especialidade. Há óbvios problemas de identidade e afirmação desse ciclo básico, diante de um ambiente indiferente ou hostil dos departamentos profissionais.

O Conselho Nacional de Educação (CNE) tem ajudado no processo, pois as novas orientações curriculares já reforçam bastante uma formação básica eclética. A proposta do MEC de reforma do ensino superior cria um ciclo básico de dois anos. Mas não serão poucas as resistências.

O outro problema é propriamente do ensino das disciplinas do ciclo de educação geral. Ferramentas básicas como Português ou Inglês não apresentam tantos problemas. Igualmente, há ciências sociais, como Economia ou Ciência Política, que têm uma forte tradição de bom ensino. Vencido o problema de convivência com as áreas profissionais, não há por que vislumbrar problemas excessivamente sérios com elas.

O grande problema é com as Humanidades, a começar pelo próprio entendimento do que venham a ser. A sua utilidade não consiste em conhecimentos específicos, tais como os que são necessários para fazer uma petição ao juiz ou desenhar um plano de manutenção preventiva de máquinas. Pelo contrário, são disciplinas que ventilam a mente, que abrem portas intelectuais, que provocam a ebulição de ideias e que sacodem preconceitos. Não correspondem à ideia de um cardápio de coisas ou ideias que precisam ser aprendidos para passar em alguma prova ou para realizar alguma tarefa.

Os diplomas profissionais servem para preparar também para ocupações que nenhuma afinidade têm com o assunto dos cursos. O ensino é profissional, mas o mercado desprofissionaliza o diploma O risco é grande de que virem rituais vazios, sem vida, sem desafios e sem ressonância no intelecto do aluno. Como dito, é difícil encontrar professores. A área atrai pedantes e exibicionistas intelectuais – resultado da nossa própria pobreza cultural. Atrai também os deslumbrados com os tecnicismos que pouco ou nada adicionam ao aluno.

Mas não podemos nos permitir desânimos diante de tais dificuldades, pois não estamos lidando com acabamentos de um produto (no caso, a educação), mas com os fundamentos do processo. A experiência demonstra que não bastam boas intenções. Os programas e ementas devem ser pensados e burilados, já que temos pouca experiência no assunto. É preciso mobilizar as nossas melhores cabeças para gerar as orientações requeridas para o sucesso da empreitada. A experiência passada do Pitágoras mostrou resultados positivos. Nem todos os professores testados deram conta do recado – antes de tudo por não haver bons modelos. Mas a maioria conseguiu cumprir os objetivos das suas disciplinas. Interessante notar que as humanidades foram introduzidas em cursos que matriculam alunos de nível intelectual bem modesto. Não são cursos de elite.

FECHANDO A EQUAÇÃO

Todo ensino superior tem componentes de aprendizado de uma profissão, combinados com uma formação de base. Há um lado de “aprender a fazer” e outro de “aprender a pensar”. Dizendo de outra forma, há uma parte de “educação-saber-fazer”, mas há também a “educação-ferramenta-para aprender”.

A grande questão é saber se o equilíbrio entre essas duas partes está mais ou menos correto ou está descalibrado. Um dos principais temas do presente ensaio é que a massificação do ensino médio rompeu o equilíbrio que tínhamos. Começamos com um secundário elitizado e um superior estritamente profissional, como a França, de onde copiamos o modelo. Mas acontece que o nosso ensino básico se degradou como resultado da sua rápida expansão. Assim sendo, o superior não mais recebe alunos bem formados nas ciências e nas humanidades. Portanto, os alunos nem recebem uma base sólida no médio e nem no superior. Entram na profissionalização despreparados para ela.

Hoje sabemos que as sociedades modernas buscam gente bem formada, qualquer que seja o diploma, para usá-las em uma sequência desconexa de ocupações e tarefas. É tolice chamar de ‘desvio’ o que virou a norma Segue, portanto, a necessidade de recuperar o equilíbrio, reforçando o superior com alguma coisa que pode receber vários nomes (ciclo básico, educação geral), mas que é estritamente necessária. Reforçando esta necessidade, a volatilidade dos mercados aumenta e há uma proporção majoritária de graduados que estão em ocupações distanciadas dos seus diplomas. Diante disso, é muito grande a sua necessidade de terem um considerável reforço naquela formação de base que tem muito a ver com a capacidade de ajustamento do graduado a uma sequência de novas ocupações e tarefas que se sucedem.

Há uma parte dessa formação de base que é mais fácil de entender e de justificar. Trata-se das chamadas habilidades básicas que têm a ver com capacidade de leitura, escrita, ciências, uso de números e resolução de problemas.

Mas há também as Humanidades, muito mais fugidias e muito mais maltratadas por um ensino deficiente. Tomamos uma posição claramente favorável às humanidades, mesmo entendendo as dificuldades de implementação. Defendemos a ideia de que as humanidades são igualmente úteis, mas são úteis de uma maneira diferente.

Não ignoramos as resistências ativas e passivas às humanidades. Afinal, se falamos de leituras imperecíveis, o livrinho de C. P. Snow sobre as duas culturas já vai para meio século e não dá sinais de morte iminente. Nele, o autor fala da enorme dificuldade de aproximar a cultura técnica da humanista.

O que nos dá uma grande esperança é o experimento que foi conduzido no início dos anos 2000 na Faculdade Pitágoras (cursos de Administração, Direito e Engenharia de Produção), onde foram implantados ciclos básicos de dois anos, com uma forte carga de Humanidades. Por precaução, os cursos foram cuidadosamente planejados, com auxílio de audiovisuais e os professores foram preparados para ministrá-los. Obviamente, houve resmungos ocasionais e alguma resistência. Mas no todo a aceitação foi boa e houve consciência do seu valor educativo. O abandono subsequente desse currículo nada teve a ver com o seu êxito ou fracasso, mas a mudanças gerenciais.

Voltemos à advertência inicial. A proposta só faz sentido se partimos da hipótese de que não há uma mesma fórmula boa para todos. Voltar às habilidades básicas e às Humanidades é uma direção que defendemos. Mas a cada um cabe achar a medida do que dá para fazer e do que é apropriado fazer.

*O AUTOR AGRADECE AS SUGESTÕES DE SIMON SCHWARTZMAN, FRED LITTO E ANA MARIA REZENDE. NO ENTANTO, ADVERTE QUE SOMENTE ELE É RESPONSÁVEL PELO QUE ESTÁ DITO NO TEXTO

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