30/08/2012

Análise

O verdadeiro gargalo na formação de engenheiros

Mais vagas em cursos de Engenharia não compensam a má qualidade da educação básica

Fernando Paixão e Marcelo Knobel
Paixão e Knobel são físicos e lecionam no Instituto de Física Gleb Wataghin, da Unicamp; Knobel também é pró-reitor de graduação da Unicamp
Entre as questões em debate em educação, destacam-se hoje a motivação dos nossos jovens para cursar o ensino médio e a quantidade de profissionais em áreas de ciência e tecnologia. Muitos encaram o desafio com propostas pensadas no sentido de solucionar o obstáculo para a frente no tempo escolar: reformar o ensino médio para torná-lo atrativo, por exemplo. Ou formar mais engenheiros e mais professores de química e física criando vagas no ensino superior para essas carreiras. Essas propostas são importantes, mas não levam em consideração limitações de perfil dos alunos, resultantes de falhas no ensino fundamental.
 
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O que de fato limita a qualidade e o número de formandos nas áreas de ciências exatas e tecnológicas? Dados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA, em OCDE (2010), PISA 2009 Results: What Students Know and Can Do – Student Performance in Reading, Mathematics and Science (volume 1) http://dx.doi.org/10.1787/9789264091450-en) apontam que a maior restrição está no número de jovens com habilidades mínimas em matemática. Habilidades que os capacitem a seguir, com sucesso, o ensino médio e, depois, uma carreira nas áreas de exatas e tecnológicas. Essa deficiência na formação, que ainda pode ser somada a outras (leitura, por exemplo), impedirá que qualquer eventual reforma produza resultados na escala esperada.
 
Os resultados de avaliações internacionais tendem a repercutir entre nós apenas pela constatação de que estamos nas últimas colocações. Mas o PISA vai muito além de um mero ranking: fornece dados sobre o desempenho dos jovens de 15 anos distribuídos em seis níveis distintos de competência. Explorar mais atentamente esses dados pode ajudar a iluminar o debate.
 
O exame do PISA em 2009 foi feito por aproximadamente 470 mil estudantes com 15 anos de idade em todo o mundo. A amostra representa 26 milhões de alunos de 15 anos dos 65 países participantes. Cada exame avalia três áreas – leitura, matemática e ciências – e estabelece seis níveis de competência, em ordem crescente de desempenho.
 
Para dar uma ideia do que significa um aluno estar em cada um desses níveis (ou abaixo de todos), seguem exemplos de questões na área de matemática. No nível um, ele deve ser capaz de, dada uma quantidade de dinheiro numa moeda, utilizar uma taxa de câmbio para calcular o seu valor em outra. No nível dois, é dada uma altura a ser atingida por uma escada, com um número determinado de degraus, e ele deve calcular qual é a altura de cada degrau. No nível três, é dado um gráfico com duas curvas de onde o aluno deve tirar informações tais como em qual região uma curva é maior que a outra. No nível quatro, volta, com algumas alterações, a questão da taxa de câmbio, com a pergunta: a troca foi favorável? No cinco, é dado um gráfico com a distribuição de notas para duas turmas em que o aluno deve argumentar sobre a comparação entre elas. No nível seis, são dadas diversas figuras planas e pede-se para avaliar as de mesmo perímetro.
 
A distribuição dos alunos brasileiros pelos níveis do PISA está assim: 38,1% estão abaixo do nível um; 31%, no nível um; 19%, no nível dois; 8%, no três; 3%, no nível quatro; 0,7%, no cinco e 0,1%, no seis. Significa que 88,1% dos alunos não sabem tirar informações de gráficos e que 96,1% não conseguem explicar o que ocorre numa troca de moeda se a taxa mudar.
 
Infográfico da Folha de S.Paulo
A distribuição limita o percentual dos nossos jovens em áreas que exijam competências mínimas em matemática (classificados do nível quatro para melhor), um dos requisitos que o aluno deve ter para que exista boa chance de sucesso nas carreiras das áreas de exatas e tecnológicas. Só 3,8% dos participantes brasileiros do PISA alcançaram esse desempenho. Considerando que a população de jovens com 15 anos no Brasil é de aproximadamente 3,2 milhões, teríamos, no máximo, cerca de 122 mil jovens aptos para essas carreiras. Tal número cai, no final do ensino médio, porque evidentemente há estudantes com habilidades mínimas que optam por outras carreiras, entre outros motivos.
 
Em 2011, o Ministério da Educação anunciou que dobraria as vagas nos cursos de engenharia. Mas, em 2009, os 1.500 cursos existentes ofereciam aproximadamente 150 mil vagas por ano, tinham 300 mil alunos matriculados (e não 750 mil, que poderiam distribuir-se nos cinco anos de duração) e formaram apenas 30 mil. Uma alta evasão, para a qual contribui o déficit de habilidade matemática que o PISA evidencia.
 
Reiteramos: 88,1% dos estudantes brasileiros não passam do nível dois do PISA em matemática. Assim, em média, uma turma terá esse percentual de alunos com dificuldades em acompanhar os gráficos das aulas de física, por exemplo. Dificuldades na questão típica do nível quatro podem se manifestar ao trabalhar com concentração de substâncias em química.
 
Certamente há dificuldade de encontrar docentes licenciados para física e química, mas sua existência não resolverá as dificuldades que os alunos terão em acompanhar essas disciplinas, pois o atraso principal ocorre no ensino fundamental. Somente considerando o limitado desenvolvimento em matemática, tais disciplinas se transformam em barreiras para o aprendizado.
 
A Austrália tem 38,1% dos seus alunos no nível quatro ou superior na avaliação de matemática do PISA; o Canadá, 43,3%; a Coreia do Sul, 51,8%; a China, 71,2%. O Brasil tem 3,8%. Esses países têm proporcionalmente pelo menos dez vezes mais alunos aptos para as áreas de exatas e tecnológicas. Mesmo com uma população bem menor, a Coreia pode formar muito mais engenheiros do que nós.
 
A política educacional nos últimos 20 anos tem sido colocar os alunos na escola, uma etapa muito importante. Porém, hoje, os desafios de tornar o país uma sociedade mais justa e qualificada requerem ação que vise melhorar, em muito, a qualidade do ensino fundamental. Neste momento em que se discute um novo Plano Nacional de Educação, deveríamos propor ações concretas para atacar a raiz do problema.