22/09/2014

revista Ensino Superior nº 14 (julho-setembro)

A construção do conhecimento na modernidade e na pós-modernidade: implicações para a universidade

Por Elisabete Monteiro de Aguiar Pereira
Professora Titular da Faculdade de Educação da Unicamp. Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Educação Superior (GEPES)
Introdução
O desenvolvimento do texto procurou relacionar os parâmetros de construção do conhecimento na Modernidade e a influência que teve na forma de ver e organizar a universidade. Para isso, os marcos teóricos do conhecimento que instrumentaram a ciência e a tecnologia na idade moderna foram analisados, bem como sua relação com a estrutura da universidade moderna originada a partir do modelo da Universidade de Berlim.
 
Em seguida são apresentados questionamentos atuais sobre tais paradigmas, bem como sobre a base em que se assentam esses questionamentos e, a partir deles, discutem-se as novas formas de se entender e produzir conhecimento numa época que estamos denominando pós-modernidade. A parte final aponta questões atuais para a universidade se levarmos em consideração essas mudanças paradigmáticas da construção do conhecimento.
 
Gostaria de deixar claro que o texto não apresenta uma nova verdade, nem pretende estar dizendo que há erros nesta ou naquela forma de se pensar e estruturar a universidade. A intenção é a de estabelecer a relação entre uma forma de entender os paradigmas da construção do conhecimento e sua influência no pensar a universidade, com outra forma de pensar e suas consequências.
 
 
Modernidade, conhecimento e universidade
Nenhuma instituição sobrevive muito tempo,
se não for capaz de reformar-se, adaptar-se
a cada instante às exigências do seu tempo,
mantendo-se fiel ao seu papel histórico.
 
Jacques Verger
 
Das poucas instituições sociais que resistiram às transformações ao longo do tempo, a universidade é uma delas. Para muitos estudiosos, essa longa existência se deve ao fato de a universidade ter sabido responder às mudanças culturais de seu tempo histórico.
 
Em toda a sua história (que já beira um milênio), tem sido uma das instituições que mais sistematicamente têm contribuído para o desenvolvimento da ciência e da cultura.
 
O modelo de universidade que temos hoje começou a constituir-se a partir da Modernidade e de sua base assentada na razão, na racionalidade científica, iniciada pela Revolução Científica do século XVI.
 
A Modernidade tinha como propósito contrapor-se ao mundo medieval. O termo "modernidade" foi usado com uma significação abrangente para caracterizar todas as mudanças intelectuais, sociais, políticas, culturais e religiosas das novas direções do mundo (VERGER, 1990).
 
Algumas categorias sobre o que e como era o mundo vão sendo afirmadas e dão suporte à estruturação da forma de produzir o conhecimento na Modernidade. Essas categorias fundantes vão ao longo dos séculos estabelecer a crença de que há uma e só uma forma de construir conhecimento verdadeiro. A Modernidade apresentou uma nova visão de mundo que se confrontava com a do espírito medieval. Seus princípios, em comparação com os da Idade Média, foram radicalmente novos. Rompeu por completo com o passado medieval obscurantista, assentado na magia, na alquimia, no misticismo e no império da religiosidade. A modernidade começa por negar a legitimidade dessas questões e das relações dos homens daquele tempo com seu mundo, seu cosmo e seu corpo.
 
No lugar de uma verdade revelada pela fé, instituía a razão humana como princípio de construção do conhecimento e como promessa de melhor condução da vida humana. A razão era a segurança de conhecer e interpretar as leis da natureza, e posteriormente, as da sociedade, que dispensavam o uso de recursos externos ao indivíduo como a mediação com os deuses, as explicações mitológicas, as revelações divinas, a magia etc.
 
A natureza começou a ser pensada como composta por leis acessíveis ao homem por meio de métodos racionais. O ponto central de interesse da ciência moderna era a sua crença e ambição na capacidade humana de compreender, construir e manipular o mundo. O domínio científico da natureza prometia ausência de escassez, de necessidades e domínio das calamidades naturais.
 
As raízes dessa nova forma de pensar o mundo e de construir o conhecimento sobre ele consolidou-se no método experimental que, tomado como o método científico, foi sendo construído com a contribuição de importantes pensadores:
 
Nicolau Copérnico (1473-1543) questionou enfaticamente os argumentos de Ptolomeu (astrônomo grego) que defendia ser a terra imóvel e o centro do universo. Copérnico defendeu que a terra era apenas um planeta, como outros, girando ao redor do Sol e não o centro do universo. Ele fez com suas ideias uma grande revolução a ponto de ser conhecido o termo "revolução copernicana" quando queremos nos referir a uma mudança radical.
 
Galileu Galilei (1564-1624) estabeleceu os fundamentos da mecânica clássica e lançou as bases da astronomia física. Alicerçou-se no racionalismo matemático e ajudou a comprovar as hipóteses heliocêntricas de Copérnico com a construção do seu telescópio. Em seus estudos, apresentava um grande ceticismo em relação aos princípios da ciência escolástica[1] que estava se desmoronando.
 
Francis Bacon (1521-1626) queria libertar as ciências do aprisionamento da escolástica e lançá-la no caminho das luzes. Contra a escolástica declara que a ciência não é um conhecimento especulativo, mas um trabalho a ser feito. Dizia que para dominar a natureza era preciso antes conhecer suas leis por métodos comprovados. Foi quem propriamente abriu caminho para essa moderna ciência da natureza. Através do método experimental provava que o homem podia obter o conhecimento e exercer domínio sobre a natureza, fazendo uso utilitário desta. Para ele, o único método confiável e válido era o indutivo, o qual procede da observação, do experimento, da comprovação, resultando daí um conhecimento seguro, ou seja, uma verdade científica.
 
Embora estes novos teóricos estivessem influenciando a cultura do seu tempo, é Descartes (1596-1651) o considerado fundador do método racional. Acreditava na soberania da razão e desenvolveu uma concepção racionalista de mundo na qual é a razão humana o elemento capaz de desvendar o mecanismo deste mundo e de utilizar esse conhecimento para dominá-lo e transformá-lo. Pare ele, a razão era o poder humano que podia revelar as características do mundo que foram tidas como universais, eternas e imutáveis.
 
Isaac Newton (1624-1727) reforça a interpretação causal, mecanicista e matemática da natureza. Ele elabora um sistema matemático capaz de equacionar tanto órbitas planetárias quanto a queda de uma maçã. Reconhecidamente, sua elaboração científica sustentou a ciência na Modernidade. Formulou as três leis do movimento e a lei geral da gravidade. Sustentou que o mundo é regido por leis simples, matemáticas e determináveis, que desvendam uma lei geral, uma verdade imutável, uma teoria.
 
A partir de então, pode-se falar de um modelo global de racionalidade científica para compreender e modificar o mundo e, que, pela força de seus argumentos, pela abrangência de seu domínio, torna-se a única forma de conhecer e construir o mundo. Daí para frente, só se admitiu o uso da racionalidade e do método científico como formas de se atingir conhecimentos válidos, ou seja, aqueles alcançados por seus princípios e por suas regras metodológicas. Todo conhecimento alcançado fora desse padrão foi tido como não científico e, portanto, não válido no mundo científico.
 
Esses e outros aspectos da nova construção do mundo iam influir na forma de pensar e organizar a universidade. No domínio político, a modernidade foi regida pela ideia de igualdade, liberdade e fraternidade que estavam assentadas nas ideias iluministas de fé na inteligência humana, as quais foram a base da Revolução Francesa.
 
Esse conhecimento está baseado na ideia de que: o universo é estável e harmônico; o mundo é mecânico e quantificável; há regularidade e previsibilidade na natureza; a realidade é uniforme e linear; as explicações são gerais e unificadoras; a ciência é neutra; o método confiável é o experimental. Algumas categorias[2] sobre o que e o como era o mundo vão sendo afirmadas e dão suporte à estruturação da forma de produzir o conhecimento na Modernidade. Essas categorias, que chamamos fundantes, vão ao longo dos séculos estabelecer a crença de que há uma, e só uma forma de construir conhecimento verdadeiro. Esse conhecimento está baseado na ideia de que: o universo é estável e harmônico; o mundo é mecânico, quantificável e objetivo; há uma regularidade e previsibilidade na natureza; a realidade é simples, ordenada, uniforme e linear; as regras são claras e distintas; as explicações são gerais e, portanto, unificadoras; a ciência é neutra; o método confiável é o experimental; a observação dos fatos deve ser objetiva; o conhecimento do objeto se dá pela separação entre o objeto e o sujeito que conhece.
 
Algumas consequências para a produção do conhecimento decorreram daí e também para a estruturação da universidade. Com esse procedimento, a universidade desenvolve o conhecimento pela via da racionalidade e reproduz a separação sujeito-objeto.
 
1- O sujeito e objeto tornam-se pólos opostos da relação de conhecimento. Para que a objetividade seja alcançada, o sujeito do conhecimento teve que ser reprimido e superado, principalmente nas qualidades de sentimento e imaginação. O conhecimento torna-se algo alcançável somente pelo uso da razão.
 
2- O método científico tem como fundamento a redução da complexidade. Impera que o complexo seja dividido, separado e classificado para que possa ser explicado, compreendido, trabalhado. Acredita-se que a mente humana não dá conta de explicar o mundo na sua complexidade. A simplificação do complexo constitui uma arbitrariedade consentida e é necessária para que se conheça a causa do fenômeno.
 
3- A organização do conhecimento vai ser feita de forma dicotômica, onde uma possibilidade exclui a outra. O pensamento é dualista – mente e corpo; razão e sentimento; explicações físicas e explicações culturais. Caso predomine um dos aspectos, o outro está excluído. As áreas do conhecimento vão sendo separadas para que ele seja produzido na sua especificidade. Isso vai influenciar a formação na universidade.
 
4- A ciência toma como base o conceito de ordem uniforme como princípio organizador dominante na realidade. Isso levou à adoção de alguns postulados tais como: a mudança é uniforme e linear; o universo é estável e mecânico, a realidade é simples e quantificável, o progresso é linear.
 
5- O método científico elimina a possibilidade de sentimentos, intuição e experiências pessoais poderem ser consideradas fontes de conhecimento, por não serem exatos e objetivos.
 
A ciência moderna que se constituiu na convicção de que há regularidade e previsibilidade no mundo físico e biológico vai passar essa convicção para alguns teóricos dos fenômenos sociais. Para estes, como para aqueles, descoberta a regularidade do fenômeno, tornava-se possível a predição e o controle destes, fossem naturais ou humanos. É assim que se inicia a psicologia e a sociologia como "ciências". É um direcionamento que levou ao entendimento de que o progresso e a perfeição eram possíveis e, até, inevitáveis.
 
O método científico tem como fundamento a redução da complexidade. Impera que o complexo seja dividido, separado e classificado para que possa ser explicado, compreendido, trabalhado. A simplificação do complexo constitui uma arbitrariedade consentida. Caminhos da universidade na modernidade
A universidade moderna, que tem início marcado pela fundação da Universidade de Berlim, em 1809, por W. Humboldt, incorpora os valores do desenvolvimento da racionalidade e da ciência, como finalidade da formação universitária. A universidade moderna vai se basear nos parâmetros da modernidade de construir e entender conhecimento e vai se estruturar sobre as regras do pensamento racional. Essa forma de ver e fazer ciência vai influenciar profundamente a organização curricular e estrutural das universidades nos séculos XIX e XX.
 
Foi a Universidade de Berlim que introduziu o princípio da pesquisa na universidade e também o princípio da indissociabilidade entre ensino e pesquisa que, pelo menos no discurso, tem sido adotado pela maioria das universidades nos países ocidentais. A Universidade de Berlim previa a articulação entre os conhecimentos e a interação entre os pesquisadores de todas as ciências básicas. Na estruturação da Universidade de Berlim, estas ciências foram alocadas em uma única faculdade, a de Filosofia. No entanto, o que vai ocorrer com as ciências é justamente o contrário, tanto no campo científico como no da organização das universidades. Incrementadas pelo método científico, as ciências vão se multiplicando e se fragmentando em áreas cada vez mais restritas, que vão se tornando mais especializadas.
 
A fragmentação do conhecimento e o surgimento de uma multiplicidade de disciplinas levaram a universidade a se estruturar em departamentos para acomodar o ensino e a pesquisa dessas áreas (PEREIRA, 1999). A consequência da fragmentação é a perda da visão de conjunto e de inter-relação das disciplinas, fazendo com que nem o pesquisador nem o professor nem o aluno percebam o conhecimento no seu todo e nas suas articulações. A forma de fragmentação hoje é tão grande que além da falta de integração entre áreas, não há integração entre os campos da mesma área e, pior ainda, entre as disciplinas dos mesmos campos.
 
Nessa construção do conhecimento, o seu avanço se dá pela pesquisa especializada. Ele é tanto mais rigoroso quanto mais restrito for o seu objeto. A própria estrutura organizacional da universidade em departamentos (PEREIRA, 1999) suporta a fragmentação do conhecimento e a construção dos currículos por meio de disciplinas estanques.
 
A ciência moderna que se constituiu na convicção de que há regularidade e previsibilidade no mundo físico e biológico vai passar essa convicção a alguns teóricos dos fenômenos sociais. Para estes, como para aqueles, descoberta a regularidade do fenômeno, tornava-se possível sua predição e controle. De forma geral, toda a análise que fazemos sobre os currículos universitários em qualquer curso em universidades brasileiras não nos mostra um princípio articulador entre as disciplinas, mas apresenta uma gama de disciplinas fragmentadas que disputam a sua primazia no currículo. Essa forma de organizar os currículos concretiza o entendimento que se tem de conhecimento, isto é, para se adquirir o conhecimento é preciso que ele seja apresentado nas suas divisões e nas suas partes para que haja uma melhor condição de apreensão pelo aluno. A formação, assim, procede por partes fragmentadas. A formação por meio desse currículo é alcançada quando se "cumpriu" todo o rol de disciplinas escolhidas para aquela formação. Em um currículo com esse formato, não há nenhuma preocupação para a integração dos conteúdos que formam o conhecimento da área. Essa forma de ver a universidade vai ser a adotada principalmente pelo modelo francês de universidade (DRÉZE e DEBELLE, 1983), que se espalha para outros países da Europa, como Portugal e Espanha. É a influência desse modelo a que nos chega quando iniciamos a história do ensino superior no Brasil (CUNHA, 1980)
 
Para os currículos dos cursos de graduação, a falta de diálogo e comunicação entre as disciplinas faz com que os alunos tenham visões parcializadas de sua área de formação, e, em consequência, sua atuação profissional se dá da mesma forma.
 
Essa perspectiva de transmitir e construir conhecimentos está, pela sua própria tradição, bastante enraizada na atitude dos professores frente a sua função na universidade. Reforçados pelas inegáveis descobertas e conquistas a que nos levou o conhecimento científico, todos nós, professores, julgamos estar trabalhando em nome da verdade, do progresso, da construção do futuro da sociedade e da humanidade, quanto atuamos de forma especializada e quase fechada em nossas áreas.
 
De forma geral, o papel do ensino e da pesquisa na universidade é visto como o de assegurar a reprodução dessa verdade e de formar as competências dos profissionais requeridos pelos quadros médios e superiores do sistema social, político e econômico, respondendo, ainda, aos desafios para antever as necessidades desta sociedade.
 
A universidade ao longo do tempo vai deixar de responder somente à necessidade de fazer ciência e vai assumir um espírito pragmático, olhando a ação de formar o estudante como um produto. É uma nova dimensão que vai permear o conceito de ciência na modernidade, a dimensão pragmatista, ou seja, a visão utilitária do conhecimento, a visão aplicada e útil da ciência. O conhecimento precisa ser útil, resolver os problemas imediatos da sociedade, respondendo às suas necessidades, sendo essas necessidades, principalmente, as do mercado de trabalho ou do desenvolvimento industrial.
 
A universidade não deixou de se ver como o lugar da racionalidade científica, do desenvolvimento do saber, mas a ideia de conhecimento útil e pragmático tem dominado os currículos dos cursos, principalmente os de graduação. O ensino tem tomado como princípio preparar para o mercado e não transmitir a cultura, desenvolver o todo do indivíduo ou preparar o cidadão (LYOTARD, 1983). As produções materiais prevalecem às produções culturais. Isto é, a universidade é solicitada a formar competências e não a desenvolver ideias, como foi o seu objetivo no início da universidade moderna.
 
Algumas reflexões críticas sobre as direções da modernidade
Rousseau, nos anos 1750, já dizia que "viver a Modernidade é como estar à beira do abismo" e apontava que a ciência e a cultura não haviam produzido os resultados esperados de superação da corrupção dos costumes ou diminuído a diferença social entre os indivíduos (ROUSSEAU, 1973).
 
Max Weber (1989), no fim do século XIX, definiu a Modernidade como o período de desencantamento com o mundo. Também Nietzche, Heidegger, Adorno, Horkheimer (apud GOERGEN, 2001) tratam, cada um à sua maneira, do desencantamento da Modernidade.
 
Nietzche e Heidegger, em seus escritos, procuram resgatar a humanidade do reducionismo e do aprisionamento a que foi relegada no império da ciência e da tecnologia vigentes, notadamente, no século XX.
 
A fragmentação do conhecimento e o surgimento de uma multiplicidade de disciplinas levaram a universidade a se estruturar em departamentos. A consequência da fragmentação é a perda da visão de conjunto e de inter-relação das disciplinas. Lyotard (1993) argumenta que o projeto da Modernidade foi "primeiramente esquecido, depois abandonado e agora totalmente destruído pela tecnociência capitalista que se coloca como a finalidade última, global e universal" (p.32). Habermas (1990) vai dizer que, se o projeto da Modernidade falhou, foi justamente ao deixar a totalidade da vida fragmentar-se em especialidades independentes, abandonadas à competência estreita dos especialistas. Para ele, o projeto da Modernidade deve ser retomado, pois é um projeto inacabado. Muitos outros pensadores dedicaram-se (Adorno, Horkheimer), a despertar novamente o sonho da Modernidade, mas trazendo a essência humana como parte da construção do conhecimento.
 
O conhecimento e a necessidade de novos caminhos
O novo momento histórico que parece iniciar-se para a humanidade coloca para a universidade questões que nos desafiam e desafiam a tradição acadêmica da universidade, sua identidade e sua função na sociedade atual. A fim de continuar colaborando para o desenvolvimento social, político, científico e cultural, a universidade deve procurar e tentar entender quais são suas formas de responder a essas questões.
 
Como a universidade trata especialmente das questões de produção de conhecimento (epistemológicas), a polêmica trazida pelos questionamentos e pelas reflexões críticas feitas por vários estudiosos sobre os parâmetros do conhecimento na Modernidade podem ter significantes e relevantes implicações teóricas e práticas para a universidade (PEREIRA, 2002). É isto que passaremos a analisar.
 
O atual momento histórico deve ser visto como uma lenta transformação cultural, como uma mutação nas formulações e práticas da Modernidade. São muitos os pensadores que escrevem sobre a insuficiência do paradigma da racionalidade científica (SANTOS, 1985; FERNANDES, 2000; MORIN, 1999; SMITH e WEXLER, 1995). Para alguns há em processo uma revolução científica que começou com Einstein e a mecânica quântica e não mais parou.
 
A forma de fragmentação hoje é tão grande que além da falta de integração entre áreas, não há integração entre os campos da mesma área e, pior ainda, entre as disciplinas do mesmo campo. A insuficiência do paradigma científico vem sendo demonstrada há muito tempo e por diferentes áreas. Para estudiosos como Doll (1997) e Prigogine (1996), dois físicos famosos, Heisenberg e Bohr, demonstraram que não é possível observar ou medir um objeto sem interferir nele, sem o alterar e a tal ponto que um objeto que sai de um processo de medição não é o mesmo que lá entrou. Para Santos (1985), Heisenberg expressa o princípio da incerteza. É dele a ideia de que não conhecemos do real senão o que nele introduzimos, ou seja, não conhecemos do real senão a nossa intervenção nele.
 
A demonstração da interferência estrutural do sujeito no objeto observado tem implicações de vulto para o entendimento da construção do conhecimento e como consequência, para o ensino na universidade. Com a demonstração da interferência do sujeito no objeto, a hipótese do determinismo mecanicista é discutível. Por outro lado, fica comprometido o rigor do método objetivo, alterando a forma de expressar os resultados. Nesse entendimento, os resultados só poderão ser expressos em termos probabilísticos e não mais de certezas absolutas. Também fica sem efeito a separação sujeito-objeto.
 
Na matemática, Gödel estabeleceu de forma efetiva a existência no sistema aritmético de uma proposição que não é nem demonstrável nem refutável no sistema existente, o que implica que o sistema aritmético não satisfaz a condição de completude. Essas questões vieram mostrar que mesmo seguindo à risca as regras da lógica matemática é possível formular proposições indecidíveis, proposições que não se podem demonstrar nem refutar. Isso nos traz outra lógica de raciocínio diferente daquela lógica dicotômica que temos como parâmetro.
 
A universidade ao longo do tempo vai deixar de responder somente à necessidade de fazer ciência e vai assumir um espírito pragmático, olhando a ação de formar o estudante como um produto. O conhecimento precisa ser útil, resolver os problemas imediatos da sociedade. Ilya Prigogine (1996), prêmio Nobel de Química em 1977, apresenta em seu livro O fim das certezas o que ele chama de "um novo capítulo na fecunda história das relações entre física e matemática" (p.15) e diz que nas últimas décadas nasceu uma nova ciência – "a física dos processos de não-equilíbrio". Essa ciência, segundo ele, levou a conceitos novos como o da auto-organização e o das "estruturas dissipativas" que são hoje amplamente utilizados em áreas que vão da cosmologia às ciências sociais, passando pela ecologia, química e biologia. A física de não-equilíbrio estuda os processos dissipativos e o papel das flutuações e das instabilidades. A física tradicional une conhecimento completo e certeza, mas desde que a instabilidade foi incorporada, a significação das leis da natureza ganhou um novo sentido – o de possibilidades e não mais de certezas.
 
Prigogine diz que noções como a de caos, tornaram-se populares e invadem todos os campos da ciência e, como consequência, ele preconiza um novo diálogo entre o homem e a natureza. Diz que "nossa visão de natureza está passando por uma mudança radical em direção ao múltiplo, ao temporal e ao complexo" (PRIGOGINE, 1984).
 
A emergência do sujeito é uma das características fundamentais dessa nova etapa. Essa emergência do sujeito não significa que seja rejeitada a visão racionalista, mas significa a crítica ao seu totalitarismo. O interesse dessa nova perspectiva é uma possível, necessária e crescente interação entre o sujeito e a razão e, neste sentido, é uma superação desse antagonismo posto pela Modernidade. A nova fase de entendimento não exclui, mas inclui, as várias formas metodológicas de alcançar o conhecimento, permitindo o diálogo entre elas.
 
Esta atual fase tem como postura:
 
-          questionamento da hegemonia do método racional como único método para a construção de conhecimento válido.
 
-          desconfiança das reduções da complexidade.
 
-          um questionamento dos princípios e pressupostos do pensamento ocidental estabelecidos e desenvolvidos a partir do iluminismo.
 
-          desconfiança das explicações únicas, totalizantes, fechadas e excludentes.
 
-          desconfiança do poder da razão para sozinha realizar o projeto de emancipação proposto pela Modernidade.
 
-          possibilitar o surgimento de múltiplos enfoques sobre o fenômeno
 
Habermas vai dizer que, se o projeto da Modernidade falhou, foi justamente ao deixar a totalidade da vida fragmentar-se em especialidades independentes, abandonadas à competência estreita dos especialistas. A universidade e os novos paradigmas do conhecimento
Tendo essas considerações teóricas em perspectiva, nos questionamos na universidade a nossa condição de trabalhar um ensino que tome como referência a emergência de novas posturas paradigmáticas do conhecimento e que se questione quanto a estruturação imposta pelo método científico. Essas novas perspectivas levam a universidade a pensar sua função de ensinar, formar e pesquisar, baseadas somente nas certezas científicas, no método experimental e na objetividade, rejeitando qualquer nova contribuição que não seja parametrada dentro dessa relação.
 
Para Morin (1999) os saberes deverão escapar do pensamento mutilado e mutilador da simplificação para aceder à complexidade. A complexidade é reconhecer o entrelaçamento e a contínua interação de todos os sistemas que compõem o mundo natural e humano. Trabalhar com a complexidade é reconhecer que só arbitrariamente conseguimos reduzir a multidimensionalidade dos fenômenos a explicações simplistas e a regras rígidas. A complexidade só pode ser apreendida por um sistema aberto, abrangente e flexível que não negue a multiplicidade, a aleatoriedade e a incerteza. Podemos dizer que para Morin, na perspectiva da complexidade:
 
-          tudo está ligado a tudo
-          as ações são circulares e não lineares
-          não há causa única do fenômeno
-          há interdependência entre todos os fenômenos
-          o fenômeno não pode ser isolado do seu conjunto
-          há rejeição do dogmatismo e da unidirecionalidade
-          o sistema está dentro do seu contexto
-          os opostos são ao mesmo tempo antagônicos e complementares
 
As novas dimensões permitem que sejam encontradas formas de se estabelecer a integração dos conhecimentos, ultrapassando o atual estágio de fragmentação. Nesse sentido, a construção do conhecimento passa a incluir aspectos antes rejeitados. Ao invés de tomarmos em consideração os determinismos, passa-se a tomar em consideração também o acidente; ao invés de nos referenciarmos pelo mecanismo, tomamos em consideração a interpretação pluralista da realidade; ao invés do desvelamento do fenômeno, nos colocamos diante da possibilidade de sua criação; ao invés da ciência como um sistema fechado, a ciência como um sistema aberto; ao invés dos fatos, as ideias.
 
Tomar em consideração esses novos parâmetros para a construção do conhecimento assinala para a universidade:
 
-          limitação dos campos disciplinares
-          compreender os problemas no contexto
-          compreender os problemas nas suas implicações – visão de conjunto
-          analisar, interpretar e reinterpretar situações
-          utilizar múltiplos métodos de abordagem
-          trabalhar probabilidades
-          trabalhar a problematização das respostas
-          provocar reflexões e não constatações
-          adotar flexibilidade curricular
 
Derrida (1999) vai dizer que para trabalhar em uma nova perspectiva é preciso desconstruir a forma arraigada de ver, investigar, compreender, julgar e avaliar as coisas. A tradição de ensinar na universidade é a de formar profissionais para um mercado. Desconstruir a imagem de preparar para o mercado é ampliar a visão de formação que deve se desenvolver na universidade para além de instrumentar os indivíduos com técnicas pragmáticas de aplicação do conhecimento científico. Requer uma maior abertura de análise e reflexão sobre qual é a função social da universidade, qual é a finalidade da formação dos jovens universitários e qual é o perfil de profissional que queremos formar. A direção certamente será dada pela resposta que dermos a essa pergunta e a resposta será diferente se ela levar em conta os valores éticos, além dos científicos. À universidade é solicitada uma responsabilidade ética associada ao conhecimento científico.
 
Considerações finais
O texto visou apontar que mudanças significativas estão ocorrendo na forma como o conhecimento está sendo produzido e que a universidade não pode continuar fechada sem fazer o diálogo com esta nova forma de fazer ciência.
 
Isso traz grandes consequências para o ensino na universidade quanto a continuar a baseá-lo somente numa perspectiva de quadro teórico, que é fechado e excludente. Os processos de produção de novos conhecimentos, tanto nas ciências exatas, como nas sociais e humanas, têm demonstrado, com uma força cada vez maior, que os limites impostos pela modernidade às disciplinas e áreas do conhecimento são arbitrários e não dão conta de toda a explicação.
 
Com as mudanças ocorridas e as em processo, e com os novos questionamentos trazidos aos princípios fundantes da forma de produzir ciência, podemos afirmar com G. Casper (1997), que o ensino e a pesquisa na universidade devem deixar de ser o aprendizado de pensar a partir de princípios rígidos, mas incorporar novas e mais abrangentes dimensões. É preciso ver o ensino articulado com a pesquisa e ver a pesquisa primordialmente vinculada a seus impactos no mundo, além da sua vinculação com a ciência e a tecnologia.
 
Pensar a universidade numa nova concepção é muito mais que o rearranjo do conhecimento disciplinar, gerador da especialização, da fragmentação. Nesta visão, a ideia de agir responsavelmente é a forma de unir reflexão teórica, reflexão prática e ação social. Essas marcas configuram compreensões de conhecimento, ciência e mundo, num paradigma diferente daquele da modernidade.
 
Essa postura pedagógica inverte a lógica universitária de primeiro desenvolver a teoria e depois a prática. O que se procura nesse novo paradigma, é retirar o conhecimento de seu isolamento, de sua forma cristalizada e linear, para colocá-lo no contexto complexo do mundo vivido.
 
Podemos dizer que desafios culturais, teóricos, metodológicos e éticos colocados pelo atual momento histórico esperam da universidade uma resposta corajosa e urgente. Não querer discuti-los, embora possa ser uma opção, não vai fazer da universidade um lugar abrigado e isento.
 
Esses aspectos provocam, implícita ou explicitamente, de forma clara ou velada, reflexões sobre o ensino, a pesquisa e a extensão.
 
Embora pertubadores e desestruturantes das nossas mais convictas suposições, são problemas que precisam ser trazidos para a discussão e reflexão crítica. Reflexões que permitirão sínteses superadoras de muitas formas de ver e atuar na universidade.
 
A universidade, nesse novo paradigma, se vê como uma instituição preocupada com o sentido social da formação que está dando e não prioritariamente com o sentido pragmatista ou utilitarista..
 
Morin (1999) argumenta que é a postura sobre o conhecimento do mundo que muda a postura da universidade frente ao conhecimento. Assim, apresento a seguir afirmações sobre a ciência que falam coisas diferentes para épocas diferentes, para pessoas diferentes, para professores diferentes, que irão embasar suas ações naquilo que é a sua crença.
 
"Como físico, aprendi que a ciência é a força da racionalidade e que as leis físicas são imutáveis. O mesmo vale para certos valores nossos como liberdade e respeito pela dignidade individual . Essas são leis também imutáveis e universais como as da física."
Andrei Dmitrievitck Sakharov
 
"Eu acredito que a beleza da ciência não deve conhecer limites. Não temos de nos preocupar com política, dinheiro ou mesmo questões éticas. Nosso dever é descobrir sempre mais. Mas reconheço que o saber sem moral é incompleto, assim como moral sem ciência de pouco vale."
Edward Telle, dir. Lawrence Livermore Laboratory – Califórnia
 
"Creio que estamos apenas no começo do surgimento de uma ciência que não mais se limita a situações simplificadas, idealizadas, mas nos põe diante da complexidade do mundo real, uma ciência que permite que se viva a criatividade humana como a expressão singular de um traço fundamental comum a todos os níveis da natureza."
Ilya Prigogine
 
"A ciência pode certamente ajudar alguém a descobrir quais são as consequências de suas ações, mas não pode dizer a ninguém quais são as consequências desejáveis."
Steven Weiber
 
Referências
 
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ROUSEAU, J. J. Discurso sobre as Ciências e as Artes. In: Os Pensadores v. XXIV. Porto Alegre, Ed. Victor Civita, Abril Cultural,1973.
 
SANTOS, B. S. Um Discurso sobre as Ciências. Porto, Edições Afrontamento, 1985
 
SMITH, R & WEXLER, P. After Postmodernism. London, The Falmer Press, 1995.
 

WEBER, M. Sobre a Universidade: o poder do Estado e a dignidade da profissão acadêmica. São Paulo, Cortez. – coleção Pensamento e Ação, v.1-1989.



[1] Escolástica foi o método  dominante no ensino nas universidades medievais europeias até ao fim da Idade Média.
 
[2] Aristóteles é o primeiro a usar o termo categoria e o usou para denominar as diferentes maneiras de se afirmar algo de alguma coisa, seja um ser ou um fenômeno. (Dicionário Básico de Filosofia- Japiassu, Hilton. Ed Zahar, 1990).