14/10/2011

'Quarta via' africana

Gestão de instituições de ensino superior na África do Sul contemporânea

Reflexões apresentadas em mesa redonda sobre ensino superior na Universidade de Rhodes, 27 a 29 de outubro de 2010

Adam Habib
Deputy vice chancellor da Universidade de Johannesburgo (UJ) para pesquisa e inovação; cientista político formado pela Universidade de KwaZulu-Natal e pela Universidade da Cidade de Nova York
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Administrar é compreender o contexto no qual se está inserido, refletir sobre quais opções são viáveis para se alcançar um desejado fim e então galvanizar apoio O sistema de ensino superior da África do Sul tem sido o foco de extensa investigação e reflexão nas últimas duas décadas. O interesse em fazê-lo é tanto global quanto doméstico. No âmbito internacional, as elites políticas dos países desenvolvidos, assim como dos países emergentes, motivadas principalmente pelos desafios e pressupostos que informam os paradigmas conservadores das políticas macroeconômicas, submeteram o sistema universitário a uma análise crítica com o objetivo de melhorar o rendimento das universidades e tornar seus formandos mais relevantes. No âmbito doméstico, a transição democrática que ocorreu na África do Sul trouxe novos interesses e novas elites políticas (que têm suas próprias ambições e necessidades) para o eixo central da sociedade civil, resultando em novos desafios e prioridades para o sistema público de ensino superior. Ambos os contextos tiveram por consequência a revisão, a crítica e a transformação do sistema de ensino superior na África do Sul.
 
A transição política teve várias consequências positivas para o sistema de ensino superior: aumentou a pressão para que as universidades tornem-se mais responsáveis e diversificou e massificou o acesso às instituições Apesar disso, quase toda essa energia intelectual foi direcionada no nível de política pública, e mais recentemente, seus impactos. Iniciado em 2009, o governo Jacob Zuma, cujas prioridades são em parte influenciadas pela conferência do Congresso Nacional Africano (CNA, o partido no poder desde o fim do apartheid) realizada em 2007 em Polokwane, reforçou esse foco em políticas para o ensino superior ao começar a difundir a sua revisão para os diferentes elementos do sistema. Mesmo as críticas acadêmicas feitas a respeito das reformas do sistema de ensino superior têm se concentrado nas políticas públicas, questionando sua orientação e detalhando o impacto negativo que provocam no sistema. As únicas exceções a esse enfoque têm sido a avaliação feita pela mídia a respeito das aptidões das universidades e como figuram nos rankings. Mas, mesmo assim, as reflexões retornam ao enfoque predominante quando políticos da oposição utilizam os resultados relativamente baixos das universidades sul-africanas em rankings globais como pretexto para lançar campanhas contra as diretrizes do governo.
 
A transição econômica também teve impacto significativo no sistema, mas negativo: as universidades estão sendo tratadas como empresas. Lucratividade, em lugar da sustentabilidade, parece ser a força que as impulsiona Não há, em todo esse debate, nenhuma reflexão sobre práticas de gestão no sistema de ensino superior. A única reflexão que existe nesse sentido é a respeito das iniciativas de desenvolvimento de competências dentro do sistema de ensino superior. Mas, mesmo aqui, o foco é principalmente melhorar as habilidades administrativas, como ampliar a compreensão e domínio dos gestores do sistema sobre protocolos financeiros ou de recursos humanos. Apesar de serem importantes, tais conceitos e habilidades não são a essência da gestão universitária. No nível mais básico, gestão é compreender o contexto no qual se está inserido, refletir sobre quais opções são viáveis para se alcançar um desejado fim e então galvanizar o apoio necessário para a implementação daquilo que foi escolhido. A falta de reflexão nesse ponto é trágica, pois dá a impressão de que nenhum progresso é possível enquanto estivermos submetidos ao atual paradigma político e econômico.
 
E isso simplesmente não é verdade. Os variados desempenhos das universidades da África do Sul indicam que há muito a ser aprendido ao se comparar suas práticas de gestão. Além disso, mesmo nas duas últimas décadas foram registrados casos de grandes transformações, com ganhos impressionantes em produtividade e eficiência. Talvez os dois exemplos positivos mais marcantes sejam a Universidade de KwaZulu-Natal e o Conselho de Pesquisa em Ciências Humanas (HSRC). Muito pode ser aprendido com essas e outras experiências, e tais lições devem ser aplicadas por gestores do ensino superior e por outras universidades e instituições de pesquisa.
 
Os departamentos tiveram orçamentos dramaticamente cortados; a carga de trabalho administrativa aumentou; há pressão por fontes diversas de renda; indicadores qualitativos de desempenho começaram a proliferar Este é o foco deste artigo. Do ponto de vista metodológico, constitui as reflexões de um burocrata de uma universidade sul-africana que está interessado em avançar uma agenda social. Talvez algumas pessoas interpretem isso meramente como a justificativa de alguém que é só mais uma peça na engrenagem do sistema de ensino superior. Mas este artigo foi escrito na esperança de que ao menos alguns reconheçam o valor de se buscar o engajamento de gestores que estão refletindo criticamente a respeito de suas experiências administrativas no sistema de ensino superior, para aprender lições que ajudem a desenvolver o ensino superior no âmbito social em um mundo aquém da perfeição.
 
Como foi dito anteriormente, universidades são o produto dos sistemas socioeconômicos e políticos em que estão inseridas. O contexto na África do Sul sofreu transformações significativas, resultantes da transição democrática do país. A transição é como uma faca de dois gumes. Por um lado, temos uma transição política que envolveu o acesso da população negra às instituições públicas e de governo. Por outro, temos uma transformação política em que a economia sul-africana tem se integrado cada vez mais à global, com consequências significativas para empresas privadas e públicas.
 
A carreira acadêmica já não é mais promissora ou atraente. Os estudantes que mais se destacam ficam longe das universidades. Temos um grupo envelhecido de acadêmicos e pesquisadores, que não se renova A transição política teve várias consequências positivas para o sistema de ensino superior: aumentou a pressão para que as universidades tornem-se mais responsáveis e diversificou e massificou o acesso às universidades nacionais. Embora a questão racial ainda não tenha sido superada na academia, esta se tornou muito mais diversificada do que era 15 anos atrás. É fato que uma das consequências negativas foi o Estado se tornar muito mais intervencionista no sistema de ensino superior, o que resultou em certa erosão na autonomia das universidades. Mas, quando pesado na balança, o efeito da transição política nas universidades é, creio eu, positivo.
 
A transição econômica também teve um impacto significativo no sistema de ensino superior. Mas, nesse caso, o impacto foi comparativamente negativo. Como resultado do impacto causado por uma pauta macroeconômica muito conservadora, especialmente na primeira década da transição, as instituições estatais e, através delas, outras entidades públicas como as universidades, passaram cada vez mais a seguir os moldes corporativos empresariais. Práticas administrativas e mecanismos de prestação de contas do setor empresarial foram impensadamente importados para instituições públicas e do ensino superior. Universidades e suas instituições estão sendo tratadas como empresas de negócios com frequência cada vez maior, e o poder executivo transferiu-se, decisivamente, de estruturas como o Senado (onde predominam os acadêmicos) para as Finanças e o Conselho (onde administradores e os interesses externos são maioria).
 
O que pode ser feito? Quatro respostas distintas surgem para lidar com a situação atual O impacto geral nas universidades sul-africanas foi dramático. A lucratividade, em lugar da sustentabilidade, parece ser a força que impulsiona as universidades. Os departamentos acadêmicos tiveram seus orçamentos dramaticamente cortados em termos reais. A carga de trabalho administrativa aumentou significativamente. Há uma maior pressão por fontes diversas de renda, e indicadores qualitativos de desempenho começaram a proliferar nas instituições. Algumas dessas transformações têm como consequência o fato de a carreira acadêmica já não ser mais promissora ou atraente. Os estudantes que mais se destacam se mantêm longe das universidades. Temos um grupo envelhecido de acadêmicos e pesquisadores que não se renova, resultando em uma alarmante situação em áreas importantes do sistema de ensino superior.
 
O que pode ser feito? Quatro respostas distintas surgem para lidar com a situação atual. A primeira é apresentada pela direita e os círculos empresariais que celebraram essa aproximação do ambiente do ensino superior com as práticas corporativas. Esses grupos interessados enxergam as mudanças como uma melhora no setor, ignorando convenientemente os efeitos negativos que estão provocando na academia. Existem, é claro, pesquisas suficientes para demonstrar a falácia dos pressupostos dessa resposta, e não há necessidade de reiterar tais argumentos aqui.
 
A primeira é apresentada pela direita e os círculos empresariais que celebraram essa aproximação do ambiente do ensino superior com as práticas corporativas A segunda resposta advém principalmente de setores progressistas, a maioria dos quais são de dentro da academia, sendo alguns de fora, incluindo executivos de universidades e também do Estado. Essa resposta tem sido, em grande parte, apenas um gesto de desespero e reclamação a respeito do atual estado das coisas. Por vezes há uma romantização do passado do sistema de ensino superior, como se fosse outrora definido por um senso de colegialidade. O problema da resposta está no fato de ela se limitar a fazer críticas: não envolve nenhuma tentativa prática de ação para modificar o atual contexto. O passado também é gravemente mal interpretado. O Sistema de Ensino Superior do apartheid não era um ambiente amistoso ou colegial, nem nas Universidades Historicamente Negras (HBUs), nem em suas correspondentes historicamente brancas, especialmente para os jovens acadêmicos negros que nunca fizeram parte dos grupos detentores de poder (tanto de situação quanto de oposição) dentro das universidades.
 
A segunda advém principalmente de setores progressistas. Tem sido, em grande parte, apenas um gesto de desespero, limitado a tecer críticas. Por vezes há uma romantização do passado A terceira resposta é mais ativa, uma versão mais nuançada da segunda. Essencialmente, também se queixa da conjuntura atual, mas tenta lutar contra as piores consequências dessa dinâmica corporativa e amenizá-las. É a resposta manifestada na maior parte das universidades do país, mas é talvez mais bem-sucedida em pequenas cidades, onde a dinâmica corporativa é menos intensa. A terceira resposta aparenta ser a típica resposta progressista. No entanto, está falhando, e é improvável que tenha sucesso no longo prazo. Por um momento pode parecer que seja uma estratégia de sucesso, principalmente em cidades pequenas, mas será impossível criar ilhas de colegialidade em um sistema de ensino orientado pelo mercado. Isso é especialmente verdadeiro já que a própria fórmula orçamentária por meio da qual o Estado financia as universidades é voltada para o mercado.
 
A quarta resposta, na qual, creio eu, me incluo, é um engajamento pró-ativo dentro do contexto no qual se está inserido, com o objetivo de subvertê-lo no longo prazo. É semelhante à estratégia sugerida por John Saul no início dos anos 90, intitulada “reforma estrutural”. Trata-se de uma resposta que envolve um compromisso com uma visão que busca iniciar reformas que tenham o efeito de possibilitar ainda outras reformas, as quais, no longo prazo, criam um novo equilíbrio estrutural de poder que permite a transformação do próprio sistema como um todo. Esta é uma resposta que tenta avançar uma pauta progressista dentro do contexto vigente. É uma resposta que reconhece a existência de consequências negativas no engajamento, mas acredita que, apesar delas, é melhor avançar uma pauta progressista com alguns efeitos negativos do que não fazer nada.
 
Atualmente, muita importância está sendo dada àquilo que Brasil, Chile e Paquistão fizeram neste sentido. No Brasil, a Capes compra o acesso às plataformas de revistas internacionais para a maioria das universidades públicas com programas fortes de pós É uma resposta que reconhece a existência de uma diferença entre uma cultura corporativa e uma pauta administrativa; de uma diferença entre lucratividade e sustentabilidade; de uma diferença entre o comportamento corporativo e liderança empresarial. É uma resposta que procura agir de forma a pluralizar o poder no sistema de ensino superior, pois desde que o poder esteja bem distribuído, equilíbrio e fiscalização podem emergir em um sistema que contenha tendências autoritárias, assim possibilitando mudanças progressistas. Mas também é uma resposta que reconhece que haverá custos e, embora procure mitigá-los, não os utiliza como desculpa para o não engajamento.
 
Quais são, portanto, os exemplos da quarta resposta? Os exemplos detalhados abaixo não são iniciativas minhas. São, em vez disso, parte de experiências coletivas em diversas organizações das quais participo ou participei, ao longo da última década.  É também digno de nota que essas organizações podem ter iniciado outras experiências, passíveis de serem consideradas mais negativas e que não se encaixam adequadamente dentro do que a resposta propõe. Tais instituições não devem ser imaginadas como entidades homogêneas, cujas experiências demonstram coerentemente uma ou outra resposta.
 
A quarta resposta, na qual me incluo, é um engajamento pró-ativo dentro do contexto no qual se está inserido, com o objetivo de subvertê-lo no longo prazo Em todo caso, uma característica significativa da quarta resposta é o reconhecimento de que uma reestruturação mais séria de uma instituição acadêmica vai precisar de grandes acadêmicos que tenham relativa autonomia para se concentrar nesse trabalho, sejam providos de um ambiente favorável e recompensados por suas iniciativas. Uma reestruturação também requer recursos. Se não estiverem imediatamente disponíveis, o trabalho será por vezes mobilizado em escolhas difíceis sobre aquilo que deve ser sacrificado para que os objetivos cruciais sejam adequadamente financiados. Portanto, em instituições que lograram a reestruturação e o melhoramento de sua eficiência acadêmica e de pesquisa – a Universidade de KwaZulu-Natal (UKZN) e o Conselho de Pesquisas em Ciências Humanas (HSRC) sendo dois exemplos na última década – houve uma busca por pessoas com excepcional talento acadêmico, e que podem ser pagas além dos parâmetros normais da academia.
 
Uma característica significativa da 4ª resposta é o reconhecimento de que uma reestruturação institucional mais séria vai precisar de grandes acadêmicos que tenham autonomia e sejam recompensados por suas iniciativas Na instituição em que trabalho – a Universidade de Johannesburgo – criamos um ambiente de incentivos no qual os pesquisadores produtivos são recompensados. Há um pequeno núcleo de excelentes professores e pesquisadores que são recompensados em sua remuneração além dos parâmetros normais, através de um subsídio especial. Além disso, temos o prêmio anual que paga 500 mil rands (cerca de R$ 115 mil) ao pesquisador mais bem avaliado, e metade disso ao melhor jovem pesquisador. Os três melhores professores também ganham anualmente uma prêmio de 150 mil rands (cerca de R$ 35 mil). A instituição também estabeleceu um sistema de incentivo à pesquisa em que 22 mil a 33 mil rands (R$ 5 mil a R$ 7,5 mil) do subsídio da pesquisa é investido nas contas individuais dos pesquisadores, para auxiliá-los em seu trabalho. Finalmente, a universidade mais do que quadruplicou seu investimento interno em atividades de pesquisa.
 
Em instituições que lograram a reestruturação e o melhoramento de sua eficiência acadêmica houve uma busca por pessoas com excepcional talento acadêmico, e que podem ser pagas além dos parâmetros normais da academia O lado negativo desse desenvolvimento é a criação de um ambiente acadêmico muito mais desigual. Mas a mudança também trouxe muitos benefícios. Primeiro, a mensagem sistêmica transmitida aos jovens acadêmicos sugere não ser necessário deixar a academia e tornar-se um burocrata para alcançar altos salários. É essa, afinal, a mensagem que se tornou prevalente no sistema de ensino superior na era pós-apartheid, quando os gestores tinham remuneração cada vez maior em relação aos acadêmicos que de fato realizavam o trabalho e as atividades nas universidades. Agora, a equipe mais jovem pode ter uma identificação com os mais velhos da academia – pesquisadores com avaliação A e B, por exemplo – que podem também receber generosos pacotes de remuneração. Segundo, e talvez ainda mais importante, é a pluralização do poder dentro da academia, efeito desse ambiente acadêmico de incentivos. Houve a criação de um novo grupo de interesses, poderoso e privilegiado, como o grupo dos pesquisadores de ponta. Subitamente, o vice chanceler e os principais dirigentes dentro da instituição não são os únicos detentores de poder na universidade. Pesquisadores de ponta, com avaliação A e B, também se tornaram detentores de poder institucional por mérito próprio.
 
Um efeito desse ambiente de incentivos é a pluralização do poder dentro da academia, a criação de um novo grupo de interesses, o dos pesquisadores de ponta Um segundo exemplo dessa quarta resposta é o Programa de Estudiosos da Nova Geração, adotado pela instituição. Atualmente, um dos maiores desafios no sistema de ensino superior da África do Sul é a existência de um corpo docente cada vez mais antigo que tem uma necessidade urgente de renovar-se. O problema é que os estudantes sul-africanos não estão mais interessados em estudos de pós-graduação. As bolsas para tais estudos não são atraentes porque estão estruturadas na suposição de que os estudantes pertencem à classe média. No entanto, a maior parte dos estudantes sul-africanos no sistema de ensino superior faz parte da primeira geração da classe trabalhadora, e estão sob uma enorme pressão para ganhar um salário decente. A partir daí, a Universidade de Johannesburgo desenvolveu o Programa de Estudiosos da Nova Geração – numa parceria com Petro South Africa, Nedbank, Fundação Ford e Murray & Roberts – que oferece aos mestrandos uma bolsa de 80 mil rands anuais (cerca de R$ 18 mil) por um período de dois anos. Ao completar seus mestrados, é ofertada uma bolsa de doutorado no valor de 150 mil rands (aproximadamente R$ 34,5 mil) anuais por um período de três anos à metade dos graduados que receber a melhor avaliação, estudantes que automaticamente recebem uma oferta de emprego ao se graduarem. Este elemento final é absolutamente essencial, caso contrário não haveria incentivo para continuar estudando. O programa é fundado na compreensão de que os sul-africanos devem se responsabilizar diretamente pelo treinamento da nova geração e não podem depender de uma fundação americana ou europeia ou internacional para tais fins.
 
Um dos maiores desafios no sistema de ensino superior da África do Sul é a existência de um corpo docente cada vez mais antigo que tem uma necessidade urgente de renovar-se Um terceiro exemplo da quarta resposta está relacionado às fontes alternativas de receita. Isso tem sido uma grande questão nas universidades sul-africanas, tanto por causa da necessidade de rejeitar subsídios públicos, quanto da percepção dos dirigentes universitários de que isso representaria uma prática administrativa moderna e globalizada. A maior parte das universidades de todo o mundo volta-se para as instituições americanas buscando liderança nesse sentido. Mas há muita confusão a respeito do funcionamento do sistema nos Estados Unidos. Muitos crêem que as universidades americanas são impulsionadas por dinheiro privado. Mas isso simplesmente não é verdade. Sua plataforma de pesquisa e inovação é completamente dependente de investimento público, e não dos recursos privados. Tomemos por exemplo os Institutos Nacionais de Saúde (NHI). Seu orçamento anual está na casa dos US$ 38 bilhões, dos quais pelo menos US$ 30 bilhões são direcionados às universidades nacionais. Compare essa única instituição com orçamento da África do Sul para todo o sistema de pesquisa por meio da NRF. Esta última tem um orçamento em torno de 1 bilhão de rands, o que equivale a US$ 130 milhões. Será mesmo surpreendente o fato de haver tamanha disparidade entre os resultados de pesquisa e inovação das duas sociedades?
 
O problema é que os estudantes sul-africanos não estão mais interessados em pós-graduação. As bolsas não são atraentes porque estão estruturadas na suposição de que os estudantes pertencem à classe média É verdade que as taxas pagas pelos estudantes constituem uma porção substancial do orçamento das universidades americanas, mas isso ocorre principalmente nas particulares. A África do Sul está tentando fazer o mesmo no seu sistema universitário público, com uma base estudantil que é muito mais empobrecida. Em circunstâncias similares, as sociedades europeias estabeleceram um modelo de ensino superior que era inteiramente gratuito. Uma advertência deve ser feita para que a África do Sul evite o caminho africano nesse aspecto, que seguiu o precedente europeu e reconheceu a importância do ensino superior, mas recusou-se a fazer qualquer investimento adicional no setor. O efeito resultante disto foi o total colapso do ensino superior substancial na África.
 
A maior parte dos estudantes sul-africanos faz parte da primeira geração da classe trabalhadora no ensino superior, e estão sob uma enorme pressão para ganhar um salário decente Mas nem tudo é tristeza e perdição. Na África do Sul, temos uma possibilidade de financiamento oriundo de uma fonte externa – o Black Economic Empowerment (BEE) – que não existe em nenhum outro lugar. O BEE é um importante fator de dinamização da política econômica da África do Sul pós-apartheid, e cada vez mais tem se tornado obrigatório que cada acordo do BEE tenha componentes de desenvolvimento e inclusão. Mas por que os gestores das universidades não se mobilizaram em nome disso? Afinal, nada geraria mais desenvolvimento e inclusão do que investir nas universidades e na educação das futuras gerações da África do Sul. Se as universidades mobilizassem apenas 10% dos acordos do BEE, estimados em 500 bilhões de rands na última década, elas teriam uma base independente de ativos no valor de 50 bilhões de rands em 2010. A uma taxa de retorno de 10%, essas instituições poderiam ter tido 5 bilhões de rands adicionais para investir em bolsas de estudos, programas e infraestrutura – o dobro do orçamento anual do Estado destinado à infraestrutura nos últimos anos.
 
A Academia de Ciências propôs o desenvolvimento de uma plataforma de publicações acadêmicas com boa relação custo-benefício, a SciELO South Africa, incrustada no crescente sistema SciELO multinacional, criado no Brasil Um quarto exemplo desse tipo de resposta seria a aquisição de revistas sobre pesquisa ou periódicos acadêmicos para as bibliotecas universitárias. O dilema essencial aqui é que há lucros gigantescos a serem obtidos na indústria internacional de publicações de revistas acadêmicas. O grupo Reed Elsevier, uma empresa internacional sediada na Grã-Bretanha, lucrou 1,4 bilhão de libras com publicações acadêmicas, enquanto seus competidores, Informa (dona do grupo Taylor & Francis) e Springer, obtiveram ganhos menores, mas similarmente obscenos, chegando a 305,8 milhões de libras e 285 milhões de euros, respectivamente. Existem, é claro, enormes custos sociais para tais lucros. A maioria das bibliotecas acadêmicas não dispõe de recursos para adquirir todos esses periódicos, e por isso escolhas difíceis têm de ser feitas. As universidades que possuem mais dinheiro acabam conseguindo comprar as melhores publicações, mas não as universidades pobres. Isso significa que, efetivamente, as universidades menos favorecidas, aquelas que servem à parcela mais pobre da população, não têm acesso a uma base de publicações acadêmicas de qualidade, o que é absolutamente necessário para um ensino superior de alta qualidade. As melhores universidades também sofrem um impacto: cada rand que é pago às multinacionais é um rand tirado das bolsas de estudos de algum sul-africano pobre que teria o potencial de se tornar bem-sucedido.
 
O principal problema que impede o verdadeiro avanço do desempenho dos nossos pesquisadores, no entanto, é o acesso à 'literatura internacional' de alto impacto O ensino superior na África do Sul está diante de três grandes prioridades: produzir uma base altamente qualificada de recursos humanos, que é necessária para o desenvolvimento; formar uma geração de acadêmicos para sustentar o nosso sistema de ensino superior; e produzir pesquisas e inovações de alta qualidade que possam aumentar nossa competitividade global. Todas as três prioridades dependem do acesso a publicações amplamente utilizadas – revistas e livros acadêmicos – que possibilitem a disseminação dos resultados das pesquisas, mas também é igualmente importante que tornem viável o acesso aos artigos publicados por outros estudiosos nas revistas mais relevantes. No entanto, é exatamente isso o que não temos, pois permitimos que uma indústria internacional de comércio de publicações acadêmicas se sobreponha ao bem comum e debilite o ensino superior, para a obtenção de imensos lucros.
 
Já existe certa movimentação por parte do Estado para lidar com tais problemas. O Departamento de Ciência e Tecnologia incumbiu a Academia de Ciências da África do Sul (ASSAf) da tarefa de buscar soluções. A Academia recentemente propôs um conjunto de medidas para encorajar e facilitar a publicação de livros acadêmicos feitos na África do Sul e para o público do país. Também propôs o desenvolvimento de uma plataforma de publicações acadêmicas sul-africanas de alta qualidade e com boa relação custo-benefício, servindo de meio para a disseminação gratuita e global de resultados de pesquisas. A plataforma é conhecida como SciELO South Africa, e está incrustada no crescente sistema SciELO multinacional, originalmente criado no Brasil.
 
O principal problema que impede o verdadeiro avanço do desempenho dos nossos pesquisadores, no entanto, é o acesso à “literatura internacional” de alto impacto que emana da América do Norte e da Europa. Essa literatura é publicada por companhias multinacionais em plataformas comerciais altamente lucrativas, e representa a maior parte das mais relevantes publicações científicas do planeta. O acesso a essas publicações é necessário se os nossos estudantes pós-graduados, pesquisadores e acadêmicos pretendem alcançar a vanguarda do conhecimento global em seus respectivos campos. Para acessar estas revistas a um baixo custo, o Departamento requisitou à ASSAf uma investigação a respeito de como outros países conseguiram fazê-lo, com recomendações para uma abordagem local adequada. Atualmente, muita importância está sendo dada àquilo que o Brasil, o Chile e o Paquistão fizeram neste sentido. No Brasil, uma das instituições científicas, a Capes, é incumbida da responsabilidade de comprar o acesso às plataformas de revistas internacionais para a maioria das universidades públicas com programas fortes de pós-graduação. O Chile e o Paquistão possuem uma variação muito mais barata desse modelo, que garante às universidades públicas o acesso a uma variedade menor de publicações. A implementação de um desses modelos beneficiaria as universidades sul-africanas, pois não somente teria uma boa relação custo-benefício em comparação com o sistema atual de “orçamento individual para cada biblioteca”, como também criaria um acesso muito mais igualitário, permitindo aos estudantes acessarem a mesma variedade de publicações científicas.
 
Apesar do progresso, no entanto, não estará a ASSAf sendo demasiadamente tímida nas reformas que propôs? Não deveria direcionar o apoio público para apenas uma ou duas editoras bem consolidadas na África do Sul? Em lugar de propor que publicações feitas no país sejam sustentadas por taxas autorais pagas pelas instituições acadêmicas, como se houvesse em circulação recursos suficientes para pesquisas dentro de tais instituições, não deveria  ela estar recomendando o subsídio de tal plataforma diretamente pelo Departamento de Ciência e Tecnologia?
 
O ingresso de novos acadêmicos e a maior autonomia aumentaram a produtividade das pesquisas na Universidade de Johannesburgo: em 2009 sua produção foi 40% maior que três anos antes Mais importante, porém, é a seguinte questão: por que motivo, 16 anos após a transição democrática na África do Sul, nós ainda não implantamos um sistema abrangente de aquisição de revistas acadêmicas e de pesquisa a um baixo custo e de modo a garantir acesso igualitário a todos os estudantes do sistema público de ensino superior no país? Não será por causa da lógica competitiva que emergiu entre as universidades sul-africanas? Não será esse um exemplo da autonomia das instituições agindo de maneira totalmente descontrolada? E tudo isso não estará apontando para a falta de imaginação empresarial dos dirigentes e gestores das universidades, que se tornaram tão imersos e preocupados com exercícios de referência internacional e com a tarefa de proteger seus domínios da influência do Estado, que não puderam unir-se como uma coletividade para desenvolver soluções específicas para os desafios contextuais que confrontam o sistema de ensino superior deste país? Será necessário contemplar a ideia de que, caso os dirigentes universitários falhem em seu dever singular de gerar ensino de alta qualidade ao garantir a seus estudantes o acesso aos mais recentes conhecimentos e pesquisas, não caberá aos Ministros do Ensino Superior e Treinamento e/ou Ciência e Tecnologia a tarefa de aprovar uma legislação que torne obrigatório para as universidades sul-africanas a publicação dos artigos científicos gerados pelos seus acadêmicos de forma gratuita na internet, dentro de 6 meses a um ano após aparecerem em revistas internacionais? Afinal, é o dinheiro dos contribuintes sul-africanos que paga as pesquisas e a redação de tais artigos.
 
Esses são apenas alguns exemplos de quais seriam as implicações de uma prática administrativa progressista no sistema de ensino superior. Obviamente isso não cobre toda a lista de reformas ou práticas. Muitas práticas devem ser determinadas individualmente a partir do contexto de cada instituição. Instituições grandes em cenários urbanos podem usar mudanças nos gastos para impulsionar reformas que aumentem sua eficiência. Universidades em locais geograficamente atraentes podem usar essa característica para atrair uma equipe de alta qualidade. Universidades em pequenas cidades rurais podem apostar numa atmosfera segura e colegial para atrair outro pessoal. Universidades Historicamente Negras (HBUs) em contextos rurais precisariam constituir-se como elementos-chave em uma pauta mais ampla de desenvolvimento regional, sem a qual a melhor das fórmulas de financiamento do mundo não levaria ao seu desenvolvimento. A principal lição a ser aprendida é que o foco deve ser no local, e os executivos das universidades precisam desenvolver uma estratégia única para cada instituição e para as condições específicas em que cada uma delas se encontra.
 
Mas o que torna essas reformas transformadoras ou estruturais? O que sugere que não sejam apenas acomodações dentro dos parâmetros da política econômica vigente?                                     
 
Os exemplos das reformas e práticas detalhados acima, apesar de suas consequências negativas, como o aumento da desigualdade na remuneração da academia, tiveram alguns resultados positivos tanto para o sistema de ensino superior quanto para a Universidade de Johannesburgo. A busca por talento acadêmico pela Universidade quebrou a lógica étnica do recrutamento acadêmico na região de Gauteng. Até recentemente, os acadêmicos que utilizam o idioma inglês, e alguns acadêmicos africanos dissidentes, gravitavam em torno da Universidade de Witwatersrand. Acadêmicos dissidentes que utilizam o idioma africâner, e apenas arranham o inglês, se irritaram com o ambiente acadêmico em Wits, tendendo a mudar-se para as universidades de Johannesburgo e Pretória. O recrutamento ativo da Universidade de Johannesburgo foi além da barreira étnica, e criou um mercado acadêmico aberto que ampliou o poder e a influência dos acadêmicos vis-à-vis suas respectivas estruturas administrativas.
 
A infusão de novos acadêmicos e a ativação e a concessão de mais autonomia à equipe existente aumentou significativamente a produtividade das pesquisas na UJ. Em 2009 sua produção foi 40% maior do que a de três anos antes. No entanto, tudo isso está acontecendo numa instituição que é racialmente e etnicamente integradora, e que continua a servir principalmente uma base estudantil de classe trabalhadora e de classe média. As mensalidades e taxas estudantis da Universidade de Johannesburgo são significativamente mais baixas que as de suas equivalentes regionais e nacionais, e a UJ age conscientemente para assegurar que nenhum de seus campi torne-se, na prática, um enclave racial.
 
Resultados progressivos similares definem as outras três reformas e/ou práticas recomendadas acima. O Programa Estudiosos da Nova Geração possibilitaria o desenvolvimento de uma nova geração de acadêmicos. Os recursos do BEE permitiriam aos estudantes mais pobres frequentar as universidades e criariam nessas instituições condições melhores de infraestrutura, ensino e recursos humanos. A compra sistêmica de fontes de informação em bibliotecas permitiria um custo mais baixo e um acesso mais igualitário aos periódicos acadêmicos. Mas não são esses fins positivos – embora muito importantes – que definem as reformas e práticas como estruturais ou transformadoras. O que as torna estruturais ou transformadoras é o fato de terem começado, embora timidamente, a pluralizar o poder e mudar o equilíbrio entre os interesses para criar mais reformas no futuro. Se o estado atual do ensino superior é um produto do equilíbrio de poder existente, então qualquer pauta que promova mudanças há de levar em conta o contexto imediato e dirigir-se à mudança do equilíbrio de forças no médio e no longo prazo.
 
As quatro reformas e práticas sugeridas acima têm a intenção de atingir tais objetivos. As novas práticas de remuneração e mobilização que visam incentivar a eficiência e a produtividade, embora enfraquecendo o caráter relativamente igualitário da academia, mudam o equilíbrio de poder entre acadêmicos e gestores institucionais. Acadêmicos mais jovens não precisam mais olhar somente para os altos cargos administrativos como um modelo de comportamento a ser seguido com o intuito de obter melhor remuneração, e os estudiosos com melhor avaliação e remuneração constituem uma configuração alternativa de poder dentro do contexto institucional. O Programa Estudiosos da Nova Geração, ao criar uma nova geração mais diversificada de acadêmicos, aumentaria a legitimidade do ensino superior junto à sociedade no longo prazo. Isso, juntamente com os recursos independentes do BEE, aumentaria em grande medida o poder dos interesses internos da instituição, incluindo acadêmicos e dirigentes, em contrapartida aos interesses externos de elementos como burocratas do governo e executivos de corporações. Recursos para a compra sistêmica de informações também aumentariam, de forma semelhante, o poder de influência tanto dos burocratas do governo quanto dos executivos institucionais junto à indústria de publicações acadêmicas. Essas mudanças na estrutura do equilíbrio de poder dentro das instituições e do sistema de ensino superior criarão condições para futuras reformas.
 
Há alguns, dentro do ensino superior, que argumentam que as reformas não podem ser transformadoras porque envolvem o mercado e permitem maior desigualdade na remuneração. Para esses críticos, as universidades devem ser instituições idealizadas representando um futuro mais progressista e igualitário. Mas não somente esses críticos não falam às realidades do momento, considerando ser possível a criação de ilhas de igualdade em um mundo desigual, como também confundem meios e fins. Para eles, transformação significa um resultado que esteja de acordo com sua visão progressista de futuro. Como resultado, estão permanentemente tentando livrar-se de pressões do sistema, que não são bem-vindas, e correndo o risco de uma lenta e incremental capitulação diante desses mesmos efeitos do sistema.
 
Levando-se isso em consideração, não faria mais sentido, do ponto de vista estratégico, concentrar-se apenas nos fins? Fins são importantes, e resultados progressivos devem ser almejados pelos gestores do ensino superior, como demonstram as reformas e práticas detalhadas acima. Mas, talvez, mais importantes que os fins sejam os meios para a mudança. Os executivos do ensino superior precisam reconhecer que a mudança progressista e sustentável é produto de um engajamento direcionado a mudar a estrutura do equilíbrio de poder existente. É necessário aderir explicitamente às reformas e práticas, pois essas deliberadamente alteram as relações de poder entre as partes interessadas dentro das universidades e o sistema de ensino superior. De certo modo, a pauta deve ter como objetivo criar condições estruturais, ou seja, um equilíbrio de poderes, que permita novas batalhas no futuro.
 
No presente momento, os administradores do ensino superior na África do Sul, como em outros lugares, encaixam-se em duas categorias. Há os conservadores, que explicitamente ou implicitamente vêem as universidades como entidades de negócios, tratando-as desse modo. Outros administradores do ensino superior são hostis a essa ideia, reconhecendo que as universidades nunca poderão ser tratadas simplesmente como organizações corporativas, com os estudantes no papel de clientes e os acadêmicos no papel de operários. Eles sabem que, caso isso ocorra, a nobreza de todo o projeto do ensino superior será comprometida. Eu me incluo nesse grupo progressista de administradores. Mas, até agora, a corrente dominante desse grupo progressista manteve-se na defensiva durante a batalha para segurar as pressões corporativas do sistema que tanto pesam sobre as universidades. A recomendação aqui é buscar o envolvimento do sistema com a visão de fazer avançar as reformas focadas em metodologias de mudança, que transformem o equilíbrio de poderes entre os interesses internos das universidades e do sistema de ensino superior como um todo. Somente assim conseguiremos virar o jogo a favor de fins socialmente e educacionalmente progressistas.
 
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