10/02/2014

revista Ensino Superior nº 12 (janeiro-março)

Ensino superior de curta duração – A experiência norte-americana dos Community Colleges

Essa invenção institucional é muito mal conhecida no Brasil, mesmo sendo tão importante no maior sistema de educação superior do mundo

Reginaldo C. Moraes
Professor do Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU) e pesquisador-produtividade do CNPq. A pesquisa aqui mencionada teve o apoio da Fapesp, como projeto regular individual – www.reginaldomoraes.wordpress.com
O community college, a faculdade norte-americana de curta duração, é um objeto pouco conhecido no Brasil, um país em que se fala muito da educação americana, ora para mitificar suas virtudes, ora para expor seus vícios, mas poucas vezes para expor suas reais características. E, no entanto, esse objeto pouco conhecido, a rede de Community Colleges, representa uma parte significativa do ensino superior naquele país. Hoje, os CCs acolhem quase a metade dos calouros e esse percentual já chegou a ser maior. Recebem um grande número de estudantes de famílias de baixa renda e de minorias étnicas. Porém, diante da elevação sistemática das anuidades nas escolas tradicionais, eles atraem, cada vez mais, os filhos da chamada "classe média branca", tornando usual a estratégia de fazer os dois primeiros anos em um CC e, depois, completar o bacharelado em uma escola de quatro anos, mais prestigiosa e... bem mais cara.
 
Como surgiram essas escolas e que papel desempenharam na modelagem do sistema de educação superior americano?
 
O papel dos community colleges na democratização do acesso não está apenas no seu baixo custo e na sua política de aceitar todo estudante que tenha concluído o ensino médio. Também é relevante a capilarização do sistema. Os CCs nasceram no começo do século XX, com outro nome: junior colleges. Essa denominação refletia, também, a motivação que os originava. As lideranças acadêmicas da época estavam preocupadas com a pressão por mais vagas. E também com o fato de que, mesmo sem expandir,  já recebiam um contingente muito grande de estudantes imaturos e pouco preparados para a true university, a casa com que sonhavam para as profissões de prestígio, a erudição e a pesquisa. Frequentemente, esses líderes comparavam os dois primeiros anos de suas escolas – fase inicial da graduação, que alguns chamavam de junior college – com o liceu francês ou o ginásio alemão, a escola média exigente daqueles países. Assim nasceu a ideia.
 
Os JCs se propagaram e logo produziram sua própria liderança, seus profetas e paladinos. Os criadores da Associação Americana dos Junior Colleges (1920) tinham um outro projeto para a nova instituição – um perfil profissionalizante, um ensino mais "terminal" e menos "acadêmico". Essa dupla face marcou a segunda etapa da instituição, que já representava algo significativo por ocasião da Segunda Guerra. Mas o conflito militar marcou um ponto de inflexão em muitos aspectos da sociedade americana. No ensino superior, inclusive. Feita a paz, o governo federal mergulhou de cabeça na expansão desse sistema e nele viu um papel crescente para a escola de dois anos, já rebatizada como Community College. Não era apenas uma mudança de nome – era uma mudança de perfil. A instituição se tornava mais "compreensiva", indo além da preparação para o bacharelado. Voltava-se para responder a demandas da "comunidade" – ensino profissional, educação de adultos, difusão cultural.
 
Faz algum tempo que as famílias de classe média estão optando por uma estratégia de redução de custos – começar pelo CC e transferir-se depois para a universidade. O pós-guerra desenhou um quadro muito novo para todo o ensino superior americano, até então marcado pela hegemonia das instituições privadas sem fins lucrativos e pelas fundações filantrópicas (Ford, Carnegie). O governo federal tomou a dianteira, com um programa revolucionário, o GI Bill, a lei de reinserção dos veteranos. Essa lei fornecia aos desmobilizados uma porção de ajudas, entre elas a provisão de bolsas para educação superior e educação técnica.  Muitos eram céticos, principalmente os dirigentes de escolas de prestígio, que vaticinavam a queda da qualidade. O efeito foi tão grande que no final dos anos 1940 quase a metade dos estudantes do nível superior era composta de beneficiários desse programa.
 
James Conant, reitor de Harvard, um dos céticos, confessou que a geração dos veteranos era a melhor "safra" de estudantes que sua universidade tivera. O GI Bill massificou, de fato, o ensino superior. E o setor público passou a ser cada vez maior, até se tornar majoritário. Hoje responde por uns 70% do total de estudantes (e se consideramos apenas a graduação, esse percentual é maior).
 
O CC, em especial, teve uma outra vaga de crescimento nos anos 1960, com os programas de inclusão social e direitos civis. A partir daí, o andar de baixo da sociedade americana passou a ver o college como uma possibilidade, quase um direito. E o segmento de curta duração foi o que mais cresceu. E se diversificou, assumindo um conjunto de papéis na comunidade.
 
O papel dos CC na democratização do acesso não está apenas no seu baixo custo e na sua política de open door, de aceitar todo estudante que tenha concluído o ensino médio. Também é relevante a capilarização do sistema. A Associação de CCs registra 1.166 dessas escolas – quando são contados os campi auxiliares, há 1.600 pontos de ensino. Juntados aos campi auxiliares das universidades estaduais, pode-se dizer que um estudante americano tem um ponto de acesso ao ensino superior a uns 40 km de sua casa. Pode estudar e morar com a família. Pode estudar e ter um emprego na sua cidade.
 
Pode-se dizer que um estudante americano tem um ponto de acesso ao ensino superior a uns 40 km de sua casa. Pode estudar e morar com a família. Pode estudar e ter um emprego na sua cidade. É bom notar que o gerenciamento dos sistemas educativos americanos não é federal. Não há universidade federal – apenas as academias militares têm esse estatuto. Até o governo Carter, praticamente não havia sequer um "ministério" (Departamento) da Educação – havia um escritório de assuntos da área, vinculado à Presidência. E mesmo hoje o papel do Departamento de Educação é limitado. Mas as politicas federais – financiamento, sobretudo – são decisivas. Bolsas de vários tipos, empréstimos subsidiados, montanhas de dinheiro para pesquisa. Não é nenhum exagero dizer que essa formidável máquina de pesquisa e ensino foi uma criação do Estado americano, e em grande medida de seu governo federal.
 
Mas uma grande parte da regulação e do gerenciamento segue sendo subnacional, estadual, a rigor. A certificação é feita por agências regionais não estatais. E o gerenciamento dos sistemas de educação superior é, fundamentalmente, estadual. Os estados têm, também, um papel relevante na manutenção das escolas, através de dotações regulares. Isso tem importância para os CCs. Vários estados dispõem de planos diretores e sistemas de articulação entre a rede de CCs e as universidades estaduais, viabilizando as transferências e complementações de estudos – a política do transfer. O CC emite diplomas de curta duração – os associate degrees – mas o estudante pode tentar um bacharelado na universidade estadual (ou numa escola privada).
 
Vale lembrar que nos Estados Unidos as escolas superiores públicas também são pagas, embora haja elevado número de bolsistas. Nas últimas décadas, as bolsas diminuíram significativamente, bem como as dotações estaduais. As anuidades subiram e os empréstimos subiram com elas. Hoje, os recém-formados já ingressam no mercado de trabalho com grandes dívidas resultantes do custeio de seus estudos. É um sistema contraditório, que, por um lado, resolveu de modo satisfatório o problema da descentralização geográfica, elemento fundamental de democratização. De outro lado, possui distorções preocupantes. É um sistema não apenas diversificado, mas muito hierarquizado e elitizado – e não necessariamente elitizado pelo mérito. Um conjunto de fatores tem criado dificuldades nas últimas décadas – encarecimento das anuidades, bem além da renda média das famílias, redução das bolsas e das dotações dos estados. O endividamento estudantil tem crescido de modo preocupante – estima-se que seja a segunda dívida de pessoas físicas no país (depois das famosas hipotecas imobiliárias), na frente do cartão de crédito.
 
Somando tudo isso, faz algum tempo que as famílias de classe média estão optando por uma estratégia de redução de custos – começar pelo CC e transferir-se para a universidade. Uma economia não tão pequena – com uma vantagem adicional, para os mais puristas: o diploma de bacharelado não menciona onde o estudante fez os dois primeiros anos! Aliás, alguns dirigentes de CCs relataram-me esse fato com certo dissabor.
 
A construção do sistema americano de educação superior foi (e segue sendo) um processo contínuo de inovações, algumas incrementais, outras mais revolucionárias, mas todas bastante pragmáticas, constituindo um conjunto de dispositivos para enfrentar desafios mutantes: formar as elites, incorporar os imigrantes e americanizá-los, fornecer força de trabalho qualificada, inventar e inovar, gerar uma cultura hegemônica para uma nação com inclinação imperial.
 
Como disse, hoje os CCs recebem mais de 40% dos calouros. Sua importância para o ensino de graduação é, portanto, enorme. Mas não é apenas isso. Um enorme contingente ingressa nos community colleges como estudantes non-degree, que se matriculam para obter um certificate, um grau ainda menor do que o diploma de dois anos (associate degree). Esses alunos são em geral classificados no que se chama de workforce development ou educação de adultos, não como estudantes de ensino superior. A City University de New York (CUNY) tem sete CCs. Um deles, no sul de Manhattan, tem perto de 20 mil alunos regularmente matriculados. A universidade orgulha-se dos seus duzentos e tantos mil alunos degree – e também de mais ou menos igual numero de non degree! E eles estão predominantemente no seu sistema próprio de community colleges. Existe ainda um certo contingente aceito para programas prévios, preparatórios, de inglês, matemática, ciência, programas que são chamados de remedial education ou developmental education.
 
Somando todos esses fatores, parece correto dizer que perto da metade dos estudantes americanos começa sua educação superior pela open door do community college.
 
Coloquemos tudo isso em perspectiva, voltando ao começo deste artigo. Levemos em conta o fato de essa invenção institucional ser tão mal conhecida no Brasil e, ao mesmo tempo ser tão importante no maior e mais importante sistema de educação superior do mundo. Acrescentemos um terceiro fato, o de que ainda hoje procuramos soluções para nossos problemas de democratização do acesso na educação superior – e de que, também por isso, devemos tentar aprender com experiências dos outros países, não para copiá-las, mas para perceber o movimento de procura que levou esses países a tais invenções.
 
Essas são algumas das razões que me levaram a desenhar a pesquisa que acabo de realizar, com patrocínio da Fapesp – o papel dos community colleges no sistema de educação superior americano e o papel dessa educação no processo de desenvolvimento daquele país. Este artigo é apenas uma notícia desta investigação – e por isso economizei bastante nos nomes, datas e números, elementos que o leitor encontrará nos resultados maiores da pesquisa. Ela já resultou em um livrinho introdutório, já nas prateleiras – O Peso do Estado na Pátria do MercadoEstados Unidos como país em desenvolvimento (Editora Unesp). É o primeiro livro resultante da pesquisa. O segundo – que espero esteja impresso nos próximos meses – deverá se chamar Educação Superior nos Estados Unidos – história e estrutura. Nele, um pedaço importante deverá ser dedicado ao estudo dos community colleges. Faço essa publicidade antecipada do livro, porque, acredito, será do interesse dos leitores da revista Ensino Superior Unicamp.
 
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