14/10/2011

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Debates sobre equidade e mérito estimulam mudanças incrementais em sistemas de admissão ao redor do mundo

Multiplicidade de modelos para seleção é consequência dos diferentes contextos políticos, econômicos e educacionais

[crédito: arquivo pessoal]
Robin Matross Helms,
Ph.D. em Gestão do Ensino
Superior pelo Boston College
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Debate sobre a melhor maneira de se selecionar estudantes continua em aberto mesmo em países com longa tradição universitária, como Reino Unido ou Estados Unidos A inexistência de um único modelo ideal para a seleção de estudantes que ingressam no ensino superior em qualquer país faz com que muitos questionamentos sobre equidade e mérito venham à tona de tempos em tempos ao redor do mundo a partir de comparações entre os sistemas. Há uma variedade de modelos de avaliação dos alunos que se candidatam para a universidade que contemplam as realidades de cada país, considerando diferenças culturais, econômicas e educacionais. O debate continua em aberto mesmo em países com longa tradição universitária, como Reino Unido ou Estados Unidos, sobre a melhor maneira de se selecionar estudantes que possam corresponder às exigências do ensino superior, para acompanhar a dinâmica do mundo globalizado e atender as demandas da sociedade pela construção do conhecimento.
 
Existem basicamente cinco tipos de sistemas de admissão no ensino superior adotados em diferentes partes do mundo, segundo um estudo publicado pelo Banco Mundial [clique aqui para ler a íntegra]. São eles: exames de conclusão de curso no ensino secundário, exames de acesso, testes padronizados de aptidão, exames múltiplos e sistemas de admissão sem exames. Produzido pela consultora norte-americana Robin Matross Helms, Ph.D. em Gestão do Ensino Superior pelo Boston College, o estudo "University Admissions Worldwide", publicado em 2008, especifica 17 subdivisões de modelos de ingresso na universidade dentro dos cinco sistemas básicos [veja quadro]. Dentro desse panorama variado de procedimentos adotados, os países definem diferentes estratégias para selecionar seus candidatos. Alguns lugares centralizam a gestão dos exames de admissão e a distribuição dos estudantes pelas vagas, seja por órgãos governamentais ou instituições independentes. Outros países delegam essa tarefa às próprias instituições de ensino superior, que a executam a partir de critérios e pré-requisitos particulares, de acordo com seu perfil.
 
Principais sistemas de admissão no ensino superior no mundo*
Tipo 1: Exames de conclusão do ensino secundário
Nota do exame nacional apenas
Áustria, França, Irlanda e Egito
Nota do exame nacional e histórico escolar do ensino secundário
Tanzânia
Nota do exame nacional e dossiê do candidato
Reino Unido
Nota do exame regional ou estadual e histórico escolar do ensino secundário
Austrália
Tipo 2: Exames de acesso
Nota do exame nacional apenas
China, Irã e Geórgia
Nota do exame nacional e histórico escolar do ensino secundário e/ou dossiê do candidato
Turquia, Espanha e Coreia do Sul
Nota do exame da própria instituição apenas
Argentina e Paraguai
Nota do exame da própria instituição e histórico escolar do ensino secundário
Bulgária e Sérvia
Tipo 3: Testes de aptidão padronizados
Nota do teste de aptidão padronizado ou histórico escolar do ensino secundário
Suécia
Nota do teste de aptidão padronizado e dossiê do candidato
Estados Unidos
Tipo 4: Exames múltiplos
Nota do exame nacional de acesso e nota do exame da própria instituição
Japão e Rússia
Nota do exame de conclusão do ensino secundário e/ou nota do exame da própria instituição
Brasil
Nota do exame de conclusão do ensino secundário e nota do exame da própria instituição
Finlândia, Alemanha e França (grandes écoles)
Nota do exame de conclusão do ensino secundário e nota do teste de aptidão padronizado
Israel
Múltiplos exames aplicados por múltiplas entidades
Índia
Tipo 5: Sem exames
Histórico escolar do ensino secundário
Noruega e Canadá
Dossiê do candidato
Estados Unidos (algumas instituições)
Adaptado do estudo "University Admissions Worldwide", de Robin Matross Helms, publicado em 2008 pelo Banco Mundial

 

É consenso entre os especialistas que não existe um sistema de admissão único que possa ser bem-sucedido independentemente do local em que esteja implantado Outra importante característica que distingue os modelos de admissão é o grau de objetividade do processo de seleção de alunos. Há países que optam por um padrão baseado somente na pontuação do candidato em determinada prova de entrada, seja um exame de conhecimentos — centrado no conteúdo do ensino secundário — ou um teste cognitivo — que mede a capacidade de raciocínio, aprendizagem e leitura —, e há países que empregam procedimentos subjetivos, que incluem entrevistas, seleção de notas de diversos exames, desempenho acadêmico, cartas de referência e atividades extracurriculares. Uma estratégia que alguns governos adotam como maneira de promover a inclusão no ensino superior, a partir de critérios étnicos, sociais ou econômicos, é a adoção de ações afirmativas, incluindo a fixação de cotas e a atribuição de bônus nas notas para recortes específicos da população.
 
Incremento de modelos consagrados
Apesar de os processos de admissão permanecerem pouco sujeitos a mudanças na maioria dos países, seja pela tradição, cultura acadêmica ou herança de modelos historicamente consagrados, muitos têm atentado para a importância de modificações incrementais na seleção como forma de aprimorar a qualidade e a equidade no ensino superior. É consenso entre os especialistas que não existe um sistema de admissão único que possa ser bem-sucedido independentemente do local em que esteja implantado. A efetividade de um sistema dependerá do contexto de cada país, como estrutura de governo, mercado de trabalho, economia, cultura e prioridades estratégicas nacionais, destaca o estudo do Banco Mundial.
 
Os Estados Unidos estão caminhando gradativamente para o estabelecimento de padrões nacionais, diz o especialista Joseph Soares O sociólogo Joseph Soares, professor da Universidade de Wake Forest (Carolina do Norte), explica que os sistemas de ingresso têm estrita relação com os tipos de educação que os jovens recebem e com os objetivos e missões das universidades em cada país. Para ele, a diversidade de modelos de avaliação pode ser um importante fator para a elevação da qualidade, mesmo dentro de um país isoladamente. "Um bom sistema de admissão é aquele que seja justo e imparcial para todos os jovens de uma sociedade. Que seja capaz de combinar as habilidades, aptidões e aspirações das pessoas e os diferentes tipos de instituições que existam no ensino superior", afirmou o pesquisador, Ph.D. pela Universidade de Harvard, em entrevista à Ensino Superior Unicamp.
 
No Japão, as notas da prova nacional determinam as instituições específicas para as quais o estudante está apto a se candidatar, a partir de um ranking de prestígio das universidades Estudioso dos sistemas de admissão no ensino superior e autor dos livros The Power of Privilege: Yale and America’s Elite Colleges e The Decline of Privilege: the Modernization of Oxford University, Soares organizou na Universidade de Wake Forest uma conferência em 2009 sobre a necessidade de mudanças nos modelos de seleção de estudantes chamada "Rethinking Admissions". O evento reuniu pesquisadores de universidades como Berkeley, Duke, Harvard, Princeton, Texas, Virginia e Yale. Questionado sobre quais os principais fatores que tornam um sistema bem-sucedido em um determinado país, o professor de Wake Forest destaca que a seleção de alunos para o ensino superior deve permitir o ingresso de pessoas que estejam em uma posição de se beneficiar da educação universitária, mas que é preciso avaliar de um modo justo quem está preparado para cumprir o nível de exigência do estudo superior. "Sempre é possível estabelecer regras para admissão nas universidades que tornem o processo muito incerto e difícil, e que apenas os jovens mais privilegiados da sociedade sejam capazes de cumprir esses critérios", ponderou Soares. "Os países devem ter currículos que cubram não apenas o fundamental, mas também que preparem as pessoas para a diversidade e a complexidade do ambiente global em que estamos inseridos, e isso significa diferentes coisas, não há uma fórmula mágica, é um conjunto delas."
 
As públicas japonesas, mais prestigiadas, exigem também a aprovação em um exame próprio, combinando notas à prova nacional de acesso, com pesos que variam de instituição para instituição Por isso, no momento de se avaliar as vantagens e desvantagens de modelos de admissão, é necessário atentar para o sistema de educação vigente no país. Soares cita os casos do Japão — que tem um currículo nacional padronizado, determinado por uma autoridade central —, e da Alemanha — que é bastante uniforme, apesar de algumas variações entre os Estados—, e os compara com o sistema de educação norte-americano, considerado por ele como "caótico" por causa do alto grau de independência administrativa nas esferas estaduais. "Nos EUA, constitucionalmente o poder da educação foi delegado aos Estados. E os Estados, com raras exceções, delegam os poderes para conselhos de educação. Mas há um número absurdo de conselhos de educação nos EUA, mais de 30 mil deles", completa o sociólogo, destacando, no entanto, que o país está gradativamente caminhando para o estabelecimento de padrões nacionais e para uma prestação de contas mais centralizada.
 
Na Alemanha, o ensino superior basicamente divide-se entre três tipos de instituições: universidades, universidades de ciências aplicadas e faculdades de artes e música. Para ser admitido em qualquer curso dessas instituições, o candidato precisa ter obtido o certificado Abitur (Zeugnis der Allgemeinen Hochschulreife), concedido aos alunos aprovados no exame de conclusão do ensino secundário. Apenas nas faculdades de artes e música são exigidos testes de aptidão específicos, mas algumas universidades estabelecem a necessidade de provas adicionais. Para os cursos universitários de maior procura, o critério de admissão é, principalmente, a nota obtida no Abitur. No caso das universidades de ciências aplicadas também é possível ser admitido com o certificado Fachhochschulreife, ou Fachabitur — que também é conquistado ao fim do ensino secundário, mas qualifica o aluno a estudar apenas em alguns cursos. Apesar da autonomia concedida pela legislação aos 16 Estados alemães para administrar o ensino superior, o governo federal é responsável pelo processo de admissão nas cerca de 400 instituições de ensino do país, a grande maioria pública.
 
Se um governo combate ilegalidades em instituições específicas, é importante adotar um modelo centralizado de seleção; se a corrupção é disseminada, instituições independentes podem ser a melhor saída á o Japão emprega o sistema de exames múltiplos para os candidatos ao ensino superior que incluem um teste de admissão nacional, com provas abordando de cinco a sete disciplinas, e um exame administrado pela própria universidade escolhida pelo candidato. As notas da prova nacional determinam as instituições específicas para as quais o estudante está apto a se candidatar, a partir de um ranking de prestígio das universidades. Normalmente as universidades públicas, mais prestigiadas, exigem também a aprovação em um exame próprio, sendo que o ingresso é condicionado pela combinação das notas nas duas provas, cujos pesos variam de instituição para instituição. Como muitas vezes o candidato não consegue aprovação na universidade que desejava, é comum a entrada em cursos preparatórios privados, que se tornaram uma verdadeira indústria no país. Dados mais recentes do Ministério da Educação revelam que, em 2009, havia 773 universidades no Japão, que receberam naquele ano 608 mil novos alunos, apenas 17% deles matriculados nas instituições públicas nacionais.
 
Assim como os japoneses, os indianos também adotam um modelo de admissão baseado em exames múltiplos e recorrem muito aos cursos pré-vestibulares. Na Índia, no entanto, os candidatos são aceitos com base nas notas de um ou mais testes de conclusão do ensino secundário ou em vestibulares. Os exames vestibulares podem ser administrados por diferentes entidades, como o governo federal, os governos estaduais, instituições individuais ou consórcios de instituições, como os ligados a universidades de tecnologia da informação ou de administração pertencentes a algum Estado. Cada universidade ou consórcio estabelece suas próprias exigências para aprovação, que podem incluir um ou mais resultados de provas, com atribuição de pesos diversos. Os estudantes podem se inscrever para seleções de universidades isoladas ou para grupos de instituições, que centralizam o processo. Balanço governamental de 2010 aponta a existência de 544 universidades e 31.324 faculdades na Índia. As ações afirmativas desempenham um papel importante no sistema de ensino superior indiano como forma de inclusão das classes menos favorecidas. Para minimizar o problema histórico decorrente do sistema de castas, as universidades determinam um porcentual de vagas que serão reservadas para esses grupos sociais.
 
O Reino Unido é um dos países que promoveram modificações pontuais em seu sistema na última década e continua debatendo a adoção de inovações Controle governamental
O estudo do Banco Mundial mostra que existem ao menos três maneiras de os governo federais ou estaduais exercerem controle sobre o sistema de ingresso nas universidades: pela determinação do total de vagas disponíveis (ou do total que receberá financiamento público), pelo estabelecimento de um processo centralizado de admissão, ou pela realização de exames de conclusão do ensino secundário ou exames vestibulares. Em entrevista a Ensino Superior Unicamp, Robin Helms explica que um dos fatores mais importantes para o êxito de um sistema de admissão é a sua relação com o grau de centralização do poder governamental na área da educação. "Se um determinado sistema de admissão não é compatível com isso, será mais difícil implantá-lo", afirmou a pesquisadora. "Por exemplo, nos EUA, onde muitas atribuições estão dispersas pelos governos estaduais, uma proposta de implantar um sistema de admissão nacional centralizado provavelmente enfrentaria muita resistência."
 
Na Inglaterra, País de Gales e Irlanda do Norte, após 11 anos de ensino básico, os alunos podem optar por cursar mais 2 anos e prestar a prova do 'A-level', exigida para ingresso no superior Além disso, ressalta Helms, deve-se levar em conta a disponibilidade de recursos, porque se o Poder Executivo estiver muito envolvido com o processo de seleção de estudantes, será importante contar com verbas e profissionais suficientes para apoiar a iniciativa. Ela lembra também que o nível de corrupção ao qual o sistema está exposto exerce um papel determinante, já que muitas vezes busca-se um novo modelo para combater os desvios éticos e ilegalidades no processo de admissão nas universidades públicas. Para ela, se um governo tenta combater as ilegalidades que ocorrem em instituições específicas, será importante adotar um modelo centralizado para solucionar o problema. Em contrapartida, se a corrupção de certa maneira é disseminada dentro do Poder Público, então, contar com instituições independentes que se responsabilizem pela seleção dos alunos pode ser a melhor saída, destaca a autora do estudo. Em 2010, Helms realizou, a pedido do Banco Mundial, o estudo "Combating Fraud and Corruption in Tertiary Education", que oferece um panorama sobre fraudes, corrupção e desvios éticos no ensino superior, entre eles nos sistemas de admissão, com recomendações sobre medidas para combater essas práticas. Entre os casos apontados estão exemplos de problemas nos EUA, Afeganistão, Índia, China, Eslováquia e Uganda.
 
Helms identificou em seu estudo que a maioria das mudanças que alguns países estão discutindo no mundo atualmente é incremental, não implicando em alterações significativas no sistema de ingresso no ensino superior. Em alguns casos o foco está em modelos que dependem demasiadamente de provas, enquanto outros estudam apenas modificações nos exames ou no modo de aplicação. Também se discute a introdução de outros fatores no processo que estejam menos sujeitos a disposições momentâneas dos candidatos, como as provas de admissão, que podem expressar resultados que não correspondam à realidade, acrescentando, por exemplo, os registros de rendimento acadêmico dos alunos ao longo do ensino secundário. "Os objetivos das recentes reformas variam bastante, vão desde aumentar o nível de imparcialidade e a equidade, passando pela redução da corrupção, até como melhor atender às demandas do mercado de trabalho", informa a autora do estudo.
 
'O SAT é uma indústria, apesar de aparentemente ser feito sem fins lucrativos há quase um século', diz Soares Mudanças no 'A-level'
Um dos países que promoveram modificações pontuais em seu sistema na última década e que ainda continua debatendo a adoção de inovações foi o Reino Unido. Na Inglaterra, País de Gales e Irlanda do Norte, depois de concluídos os 11 anos obrigatórios correspondentes ao ensino fundamental e ensino médio, os alunos podem optar por cursar dois anos adicionais, que os qualificam a prestar a prova do "A-level" (Advanced Level), exigida para ingresso no ensino superior. Na Escócia, existem certificados equivalentes ao "A-level" chamados "Highers". Em meados da década passada, o "A-level" foi alvo de críticas das universidades porque muitos jovens estavam atingindo a nota máxima, o que dificultava a seleção pelos melhores candidatos. A saída encontrada pelas autoridades do sistema de educação britânico foi instituir em 2008 uma nova nota, o A* — além dos tradicionais A, B, C, D e E. O A* passou a ser concedido ao grupo formado pelos 10% mais bem avaliados no "A-level".
 
As notas nas disciplinas cursadas no "A-level" são o principal fator para garantir a entrada dos estudantes nas universidades britânicas, mas um dossiê que inclui carta de apresentação, currículo profissional, carta de recomendação, entre outros documentos, também deve ser entregue pelo candidato para o University and Colleges Admissions Service (UCAS), entidade independente e sem fins lucrativos que centraliza os pedidos do país e os encaminha para as universidades, que por sua vez selecionam os alunos a partir de seus próprios critérios, podendo até realizar entrevistas pessoais. Atualmente, o UCAS está discutindo uma mudança no sistema de admissão que poderá entrar em vigor a partir de 2016. Durante uma reunião em setembro, a organização apresentou uma proposta para diminuir a auto-exclusão de candidatos de baixa renda para as universidades mais prestigiadas. Atualmente, mesmo que ainda não tenham disponíveis as notas finais do "A-level", os estudantes podem apresentar uma carta de recomendação de seus professores com uma estimativa de notas nas matérias cursadas, o que permite o início do processo de seleção das universidades, mesmo que a decisão final ainda esteja condicionada ao resultado real no "A-level".
 
As notas nas disciplinas cursadas no 'A-level' são o principal fator para entrada nas universidades britânicas, mas um dossiê com cartas de apresentação e recomendação, além de currículo, também deve ser entregue pelo candidato O UCAS pretende acabar com essa prática e obrigar o candidato a apresentar seu dossiê apenas quando tiver as notas finais em mãos. Os defensores da proposta em estudo alegam que, sem as notas finais, os alunos da baixa renda não acreditam que poderão se inscrever para os processos seletivos das melhores universidades, mas muitas vezes, quando recebem finalmente as notas do "A-level", percebem que poderiam ter disputado vagas melhores. A medida, no entanto, está sendo criticada por tornar mais curto o período no qual os alunos devem escolher as universidades e os cursos que irão disputar. Atualmente os estudantes podem enviar seus requerimentos para o UCAS entre setembro e janeiro para a maioria dos cursos. Em 2010, o UCAS recebeu requerimentos de 697 mil candidatos para 305 instituições de ensino superior britânicas, sendo que 487 mil foram aprovados, o equivalente a 70% do total.
 
Tradição versus inovação
Tradicionalmente, na França, o sistema de ensino superior divide-se entre as universidades e as grandes écoles, prestigiadas instituições que formam a elite francesa. Enquanto o sistema francês garante livre acesso às universidades para os estudantes que obtiverem o baccalauréat — certificado concedido ao final do ensino secundário —, a entrada nas renomadas écoles só é franqueada aos candidatos aprovados nos rigorosos exames individuais das instituições. Esses exames exigem dois anos de intenso estudo em um curso preparatório, normalmente oferecido por escolas de ensino secundário ou pelas próprias écoles. O exame para conquista do baccalauréat teve 621 mil candidatos e 532 mil aprovados no ano passado. Em 2007, o governo da França decidiu promover uma reforma no sistema de ensino superior que, entre outras coisas, incluiu modificações no modelo de admissão como forma de democratizar o acesso às écoles. A mudança concedeu autonomia administrativa e financeira para as 83 universidades do país e abriu a possibilidade de as prestigiadas escolas adotarem novas regras para permitir o acesso de alunos de classes menos privilegiadas. A Conférence des Grandes Écoles (CGE), entidade que reúne 220 instituições, comprometeu-se no início deste ano a ampliar a diversidade social, oferecendo mais vagas para alunos que recebem auxílio do governo, e a incluir métodos alternativos de admissão.
 
O University and Colleges Admissions Service, entidade independente e sem fins lucrativos, centraliza e encaminha os pedidos às universidades, que selecionam a partir de critérios próprios, podendo fazer entrevistas pessoais Outro país que está buscando diversificar seus métodos de seleção para não depender demasiadamente das notas de exames de desempenho é a Coreia do Sul, conhecida pelo alto nível de competitividade no setor de ensino. Desde 2007, o país implantou um sistema que emprega gestores treinados para decidir individualmente sobre o ingresso dos estudantes com base em critérios mais amplos, que considerem, além das notas do exame nacional de admissão, trabalhos voluntários, criatividade, potencial de aprendizagem e de liderança. O sistema está sendo implantado gradativamente desde então nas instituições públicas e privadas coreanas para minimizar a excessiva competição imposta aos alunos em processos seletivos limitados ao desempenho acadêmico — atualmente mais de 100 universidades já adotaram esse novo modelo. Além disso, o sistema busca reduzir a demanda pelos cursos privados preparatórios para o vestibular coreano, acessíveis somente às famílias de renda mais elevada. A ideia é tornar o disputado vestibular, o suneung — coordenado por um instituto financiado pelo governo —, apenas mais um dos critérios de seleção de estudantes. Atualmente há 222 instituições de ensino superior que oferecem cursos de quatro anos na Coreia do Sul.
 
Na China os estudantes precisam submeter-se a um exame vestibular relativamente uniforme em todo o país, apesar de sua aplicação ser administrada individualmente pelas províncias — equivalente a Estados. O gaokao, exame nacional de acesso realizado pelo governo chinês no mês de junho, é composto por três disciplinas básicas — chinês, matemática e língua estrangeira (na maioria das vezes o inglês) —, além de outras optativas, dependendo do curso escolhido. Neste ano, mais de nove milhões de alunos disputaram vagas em cerca de duas mil instituições de ensino superior por meio do gaokao, uma tensa prova que avalia o conteúdo do segundo grau e garante aos mais bem pontuados colocações nas universidades mais prestigiadas. Dependendo da província, o candidato pode apontar antes ou depois da prova as instituições e cursos que pretende frequentar, por ordem de preferência, sendo que o governo se encarrega de organizar o preenchimento das vagas a partir das notas finais.
 
Desde 2007, a Coreia do Sul emprega gestores que decidem individualmente sobre ingresso; além das notas do exame nacional – o disputado suneung – , eles avaliam trabalhos voluntários, criatividade, potencial de aprendizagem e de liderança dos candidatos O país tem registrado uma consecutiva queda no número de inscritos na prova a cada ano graças ao volume menor de estudantes que se formam no ensino secundário, resultado da política de controle de natalidade das últimas décadas. Esse fato, associado ao aumento da procura dos jovens chineses por universidades do exterior, está tornando a corrida pelas vagas no país cada vez menos acirrada. No sistema chinês, as mudanças no método de admissão também têm sido pontuais desde que o gaokao começou a ser novamente utilizado, em 1977, após sua suspensão durante a Revolução Cultural. Em setembro deste ano, por exemplo, Xangai — uma das quatro cidades chinesas que detêm status administrativo de província — decidiu limitar, a partir de 2012, o total de disciplinas exigidas no gaokao para quatro — as três básicas mais apenas uma opcional — como forma de reduzir o elevado nível de excelência acadêmica exigido dos alunos.
 
Confiabilidade, eficácia e equidade
Segundo Robin Helms, é primordial para os países que estejam procurando aprimorar seus sistemas de admissão promover pesquisas comparativas com modelos de outras nações, algo que seu estudo para o Banco Mundial se propôs a fazer. Ela destaca que acadêmicos e representantes do governo envolvidos nesse setor devem procurar países com características, circunstâncias e objetivos similares para definir quais as "melhores práticas" e quais desafios deverão ser enfrentados para melhorar a seleção dos aspirantes ao ensino superior. Helms afirma não ter encontrado fora dos EUA muitas pesquisas sobre testes padronizados de aptidão, por exemplo, mas que questionamentos feitos sobre o modelo norte-americano podem servir como referência para problemas que outros países possam enfrentar, principalmente no que se refere a confiabilidade, eficácia, favoritismo e equidade.
 
O gaokao, exame nacional de admissão realizado pelo governo chinês em junho, é composto por três disciplinas básicas: chinês, matemática e língua estrangeira Joseph Soares lançou em outubro de 2011 o livro SAT Wars: The Case for Test-Optional College Admissions, criticando o uso do teste de admissão padronizado SAT nos Estados Unidos. O chamado "Scholastic Aptitude Test" foi aplicado pela primeira vez em 1926 e naquela época tinha similaridades com os testes de quociente de inteligência (QI). Outro exame foi criado em 1959 para rivalizar com SAT, chamado ACT (American College Testing), que até hoje é aplicado no país, e é utilizado principalmente por universidades do meio-oeste e sul. Ao longo dos anos, o SAT evoluiu e, em 1990, foi renomeado como "Scholastic Assessment Test". Desde meados da década de 1990, o exame passou a se chamar apenas SAT, sem referência específica às palavras que compõem o acrônimo. Anualmente, mais de três milhões de candidatos se submetem ao SAT ou ao ACT nos EUA.
 
A obra organizada por Soares, publicada pela editora Teacher College Press, reúne artigos de cerca de 20 autores, entre reitores, pró-reitores de universidades encarregados por processos seletivos, membros da indústria americana de admissão de estudantes e acadêmicos das áreas de economia, história e sociologia, entre eles o psicólogo e psicometrista Robert Sternberg, que desenvolveu testes não cognitivos como alternativa aos testes do tipo cognitivo, como o SAT. Soares — que além de organizador é autor de dois capítulos da obra — explica que a maior parte de SAT Wars é produto da conferência "Rethinking Admissions". "Nesse congresso, entre as principais conclusões está a necessidade de abandonarmos os exames padronizados por não serem bons indicadores para o sucesso dos alunos e custarem caro. Além disso, o SAT desvia a atenção dos alunos no decorrer do ensino médio, porque a prova não tem relação nenhuma com o currículo do ensino médio. Então, a ideia é substituir o SAT pelos chamados testes não cognitivos, que Sternberg e outros desenvolveram." O professor da Universidade de Wake Forest complementa dizendo que outro efeito negativo de testes como o SAT é reforçar as diferenças sociais entre os estudantes. "Você não encontra nas notas do ensino médio as desigualdades sociais que você encontra nos exames de desempenho. Negros e hispânicos obtêm resultados centenas de pontos abaixo nos exames padronizados, como SAT e ACT, que são os dois maiores testes."
 
O número de concluintes do secundário está caindo na China, resultado da política de controle de natalidade; combinado ao aumento da procura por universidades do exterior, isso torna a corrida por vagas no país cada vez menos acirrada Para compreender melhor a questão, Soares destaca que é preciso conhecer as especificidades do sistema de ensino superior norte-americano. Nos EUA há aproximadamente 3 mil instituições que oferecem cursos de graduação de quatro anos, sendo que mais de 850 delas já adotaram um sistema de ingresso que torna facultativo ao candidato utilizar os exames de desempenho, empregando métodos alternativos como histórico escolar do ensino médio e entrevistas. "Nós temos um sistema de ensino superior nos EUA que não é exatamente um sistema. O ensino superior dos EUA baseia-se em vários níveis bem definidos. O nível que certamente é mais acessível para a maioria da população é dos chamados community colleges ou junior colleges. Eles só oferecem diplomas de dois anos de estudo, nunca de quatro anos, e um título chamado associate degree."
 
Os junior colleges têm um perfil de ensino superior profissionalizante, com sistema de admissão aberto a todos que tenham completado o ensino secundário. Depois, entre as instituições que oferecem cursos de graduação de quatro anos, estão as universidades públicas estaduais, os liberal arts colleges (faculdades de artes liberais) e as universidades privadas de pesquisa. "As universidades estaduais, como a Calstate [California State University] e a Universidade da Califórnia, tendem a trabalhar todas com fórmulas de admissão, porque têm grandes campi com milhares de estudantes. Eles costumam fazer a admissão por meio dos números, e os números para eles são o índice de rendimento acadêmico do ensino médio e os exames de desempenho padronizados. E muitos deles são muito mecânicos, eles olham para seus números e dizem: se você está acima da linha, está admitido, se estiver abaixo, não será admitido." Já entre as instituições privadas — o que inclui a grande maioria dos liberal arts colleges — a tendência é de utilização do mesmo padrão das estaduais, mas com a inclusão de outros critérios: se o candidato desenvolve algum talento artístico, se presta serviço à comunidade ou se é empreendedor. "Em geral, eles colocam todos os que têm uma alta nota no SAT em um mesmo bolo, e a partir daí refinam a seleção", afirma Soares.
 
Segundo Robin Helms, é primordial para os países que estejam procurando aprimorar seus sistemas de admissão promover pesquisas comparativas com modelos de outras nações Guerra contra o SAT
"Os testes de desempenho são um modo realmente ruim de avaliar a preparação para a universidade. O que eles fazem bem é praticar uma forma de dominância social; é um ótimo modo de promover a discriminação social. E o motivo é que os testes de desempenho não servem para prognosticar as notas da faculdade. Eles têm entre seus objetivos predizer quais serão as notas na faculdade, ao menos no primeiro ano, mas não vaticinam sobre as notas futuras mais que as notas do ensino médio", critica Soares, ponderando que isso ocorre apesar das disparidades entre as escolas de ensino médio distribuídas pelo amplo território norte-americano. Para ele, as notas do ensino médio ainda são o melhor instrumento para prognosticar as notas no ensino superior. "Em meu livro SAT Wars há um capítulo que mostra que a grande maioria dos estudos estatísticos indicou que as notas do ensino médio são os mais fortes indicadores sobre as notas da faculdade, e é isso o que você quer prognosticar. O SAT se justifica alegando fazer exatamente isso, mas o faz muito mal. Pode até parecer que faz isso se você olhar os dados de maneira isolada, sem observar as notas do ensino médio. Mas se você colocá-las sobre a mesa, e considerar o SAT conjuntamente, o SAT não acrescenta nada, ou aumenta a capacidade de predizer o desempenho futuro por uma incrivelmente modesta margem, na faixa de 2%. O importante é que as notas do ensino médio não incluem fatores demográficos socialmente contaminados, ou seja, jovens norte-americanos ricos e pobres enfrentam chances iguais de ter boas notas no ensino médio."
 
Desde que o Bowdoin College, na década de 1970, e o Bates College, na década de 1980, ambos no Estado de Maine, se tornaram pioneiros na adoção do modelo de teste de desempenho opcional, centenas de outras instituições norte-americanas aderiram ao movimento contrário ao SAT. Na Universidade de Wake Forest, a decisão foi tomada em 2008, após a entrada de um novo reitor, e os resultados já são significativos. "Ao tornar os exames de desempenho optativos, nós estamos dizendo aos alunos negros e hispânicos que não vamos olhar sua nota do exame, vamos olhar para suas notas do ensino médio e olhar vários outros aspectos que dizem respeito a ele como indivíduo, e iremos levar o processo com muita seriedade, tentando escolher os melhores estudantes sem confiar apenas em um número simplista que esconde uma seleção social para os ricos e alega que é uma seleção acadêmica pelos melhores. Isso significa que é mais difícil selecionar os estudantes, mas quando você o faz, consegue muito mais estudantes de perfis diversos e mais fortes. É uma situação de ganha-ganha."
 
O SAT foi aplicado pela primeira vez em 1926 e naquela época tinha similaridades com os testes de QI; outro exame, o ACT, usado principalmente por universidades do meio-oeste e sul, foi criado em 1959 Na Universidade de Wake Forest, no primeiro ano em que o novo sistema começou a vigorar, em 2009, 32% dos candidatos inscritos optaram por não usar o SAT. No ano seguinte, o índice cresceu para 36%. De 2009 para 2010 houve um crescimento de 70% nas inscrições de candidatos afro-americanos. Entre os aprovados pelo processo seletivo da instituição em 2009, 26% eram de candidatos que não utilizaram as notas do SAT; em 2010, o total subiu para 28%. Atualmente a Wake Forest já tem três das quatro turmas anuais admitidas sob o novo sistema. Antes da mudança, em 2008, 65% dos alunos aprovados pertenciam ao grupo dos 10% com as melhores notas no ensino médio, percentual que subiu para 75% em 2009 e 81% em 2010, de acordo com Soares.
 
O sociólogo explica que uma das principais inovações no processo seletivo foi a realização de entrevistas com todos os candidatos. Atualmente, a universidade entrevista pessoalmente 75% dos candidatos, sendo que o restante é feito por meio de programas de videoconferência pela internet. Por ano, Wake Forest recebe inscrições de 12 mil candidatos para selecionar 1.200 alunos. Desde que a instituição da Carolina do Norte implantou o modelo, outras 150 aderiram também. Uma das mais recentes foi a Universidade DePaul, de Chicago (Illinois), a maior universidade católica e uma das dez maiores instituições privadas dos EUA, com 25 mil alunos e mais de 270 programas de graduação e pós-graduação.
 
O SAT é aplicado pelo College Board, associação sem fins lucrativos sediada em Nova York que reúne cerca de 6 mil universidades, faculdades e escolas de ensino secundário dos EUA O SAT é organizado e aplicado pelo College Board, uma associação sem fins lucrativos sediada em Nova York que reúne cerca de 6 mil universidades, faculdades e escolas de ensino secundário dos EUA. À medida que ganhava corpo na última década o movimento das universidades que tornaram o SAT opcional, cresciam também as críticas sobre os interesses financeiros envolvidos na aplicação da prova. "O SAT é uma indústria, apesar de aparentemente ser feito sem fins lucrativos há quase um século. Na verdade, é uma indústria de US$ 4 bilhões. É uma situação meio nebulosa, em que há várias pessoas sendo muito bem remuneradas para dizer que o que fazem é muito importante", indica Soares, citando estimativas de valores movimentados por todo mercado de prestação de serviços para organização e aplicação de testes nos EUA. Até mesmo a maior associação de profissionais ligados aos processos de admissão das universidades, a National Association for College Admission Counseling (NACAC), reconheceu que os exames de desempenho "calcificavam" as disparidades sociais e étnicas e que as universidades não deveriam depender exclusivamente desse modelo.
 
Uma das principais inovações no processo seletivo da Universidade de Wake Forest foi a realização de entrevistas com todos os candidatos Apesar dessa percepção sobre a necessidade de mudança, muitas vezes o aumento do nível de subjetividade pode levar a indesejadas distorções no processo. Uma pesquisa realizada nos EUA em agosto e setembro pelo site de educação Inside Higher Ed com 462 gestores de admissão e matrícula de universidades e faculdades públicas, privadas e sem fins lucrativos, que oferecem cursos de dois ou quatro anos, concluiu que, em meio à crise financeira mundial, a capacidade do aluno de pagar pelo estudo está tendo um peso maior no momento do processo seletivo. Entre as instituições públicas e privadas com cursos de graduação de quatro anos, 34,3% dos entrevistados afirmaram estar concentrando seus esforços na admissão de candidatos que não precisem de bolsas, descontos ou auxílios financeiros. No grupo das universidades públicas de pesquisa (que oferecem também doutorado), o foco maior na seleção de candidatos à graduação que possam pagar o curso integralmente foi admitido por 51,3% dos gestores. O estudo constatou também que 71,7% das universidades e faculdades com cursos de quatro anos ainda exigem testes de desempenho padronizados, como SAT e ACT. Apesar disso, 16,6% das instituições informaram estar estudando a possibilidade de abolir o uso e 11,7% afirmaram não usá-los mais.
 
A National Association for College Admission Counseling reconheceu que os exames de desempenho calcificavam as disparidades sociais e étnicas "Nós não recompensamos a criatividade com as notas na universidade. Nós precisamos também estimular e recompensar o exercício da cidadania, de pessoas que são envolvidas em questões sociais e científicas, seja aquecimento global ou conflitos militares. Olhar para essas outras questões para definir o que é o sucesso na universidade ajudaria a nos afastar de uma confiança excessiva em exames mecânicos, que são feitos para avaliar o que se aprendeu, por exemplo, em química. Precisamos alcançar uma definição mais ampla sobre o que é sucesso na universidade, mais do que notas. Precisamos de mais transparência na avaliação do que realmente as universidades estão realizando e de quão bem-sucedidos estamos sendo ao tentar cumprir nossos objetivos", concluiu Soares.
 
índice de PDFs da revista n° 4 | outubro de 2011