14/10/2011

Sem fins lucrativos

Por que a democracia precisa das Humanidades

Obra mais recente de Martha Nussbaum debate tendência de reduzir a educação a um processo de capacitação para o negócio

Por Alcir Pécora
Professor de literatura na Unicamp desde 1977
Autor de obras como Teatro do Sacramento: a unidade teológico-retórico-política nos Sermões de Vieira (Edusp/Editora da Unicamp, 1994) e As Excelências do Governador (Companhia das Letras, 2002), em co-autoria com Stuart Schwartz. Organizador de várias obras e estudos, entre eles Por que Ler Hilda Hilst, além das coleções das Obras Reunidas de Hilda Hilst e de Roberto Piva (Globo)
Not for Profit – Why Democracy Needs The Humanities
Martha C. Nussbaum
Princeton University Press | 2010
 
Entre os mais destacados intelectuais que têm pensado a questão da "crise das Humanidades" está Martha C. Nussbaum (NY, 1947), professora do Departamento de Filosofia da Escola de Direito da Universidade de Chicago. Salvo engano, Nussbaum tem apenas um livro editado no Brasil, A Fragilidade da Bondade, saído pela wmf, em 2009. A sua área de formação são os Estudos Clássicos de literatura e filosofia, que cursou na NYU e em Harvard. Além do mencionado A Fragilidade da Bondade, editado originariamente em 1986, que trata da noção de fortuna na épica antiga, é bem conhecido o seu Love's Knowledge (1990), que reúne ensaios que vão de Platão e Aristóteles a Henry James e Samuel Beckett. No entanto, ao menos a partir de meados dos anos 90, os seus livros têm buscado maior alcance político, como ocorre em Poetic Justice (1995), e especialmente em Cultivating Humanity (1998), entre outros.
 
O manifesto dirige-se a leitores comprometidos com as ideias de democracia pluralista, não nacionalista e de espectro global, relacionando sem meias palavras um conjunto impressionante de problemas educacionais contemporâneos Isso é ainda mais verdadeiro para o seu último livro, saído no final de 2010, pela Princeton University Press, cujo título é Not for Profit: Why Democracy Needs The Humanities, que toma voluntariamente a forma contundente de “manifesto”. Trata-se de um livro apressado e simplista, sob vários aspectos, sobretudo porque em larga medida faz uso (estratégico, embora) de noções do senso comum no debate de políticas públicas e educacionais nos Estados Unidos. Não é, portanto, o melhor livro para conhecer e respeitar as suas ideias, mas erraria feio quem o julgasse sem interesse, seja pelas ideias condensadas nele, seja pela posição que ocupa no diagnóstico da “crise”. Dirigindo-o menos a críticos ou filósofos que a um amplo conjunto de leitores comprometidos com as ideias de democracia pluralista, não nacionalista e de espectro global, o manifesto relaciona, sem meias palavras ou tiques intelectuais, um conjunto impressionante de problemas educacionais contemporâneos.
 
A base de tudo é sempre uma educação generalista. Nela, nada importa mais que levar o aluno a pensar criticamente, exercitar a imaginação e empenhar-se na compreensão do outro O campo privilegiado de observação de Nussbaum não se restringe aos Estados Unidos. Conhece bem a Índia, onde desenvolve trabalhos sistemáticos de pesquisa, alguns ao lado do Nobel de Economia Amartya Sen, além de referir dados genéricos de Alemanha, Suécia e Inglaterra. Em todos esses países, a autora observa o avanço alarmante do que considera, mais do que uma crise, um “câncer” a se alastrar silenciosamente pelo mundo, que se caracteriza pela submissão da educação ao lucro, vale dizer, pela tentativa sistemática, mundial, de reduzir a educação, desde os primeiros anos de escola até a Universidade, a um processo de capacitação para o negócio e à contribuição para o PIB per capita da nação.
 
Tal processo, promovido de forma cada vez mais agressiva pelos governos de todas as tendências políticas, para Nussbaum, ameaça o sentido mais precioso da ideia de educação, o qual, para ela, está contemplado na educação liberal clássica americana: a valorização da vida democrática, entendida sempre em sentido abrangente e primitivo de apego aos valores do pluralismo, das liberdades civis, da conquista de direitos iguais para os cidadãos, independentemente de raça, classe, gênero, orientação sexual, religião etc. A agenda é conhecida, desde sempre. A rigor, não há ninguém de bom senso que possa discordar dessas reivindicações, mas por isso mesmo são vetores que tornam o manifesto pouco atraente como leitura ou descoberta intelectual.
 
Uma ideia de cidadania mundial suporta o processo pedagógico, uma cidadania em que ações locais se reconhecem imediatamente como conectadas às de outras partes do planeta, para evitar que a globalização seja apenas pensada economicamente Um pouco menos conhecidos são os aspectos mais curriculares ou pedagógicos envolvidos nessa defesa de uma educação que opõe frontalmente os valores democráticos implicados no liberalismo tradicional ao utilitarismo produtivista do neoliberalismo do século XXI. A base de tudo, que defende com pressupostos da educação socrática, como das formulações do educador indiano Rabindranath Tagore, entre tantos outros autores, de diversas correntes, como Rousseau, Dewey, Froebel, Pestalozzi, Alcott , Monstessori etc. é sempre uma educação generalista. Nela, nada importa mais que levar o aluno a pensar criticamente (o que significa, na versão adotada com mais vigor por Nussbaum, criar um ambiente de aprendizado no qual são valorizados menos os conteúdos do que as posturas favoráveis à autocrítica e à independência intelectual capazes de resistir à submissão automática à autoridade ou à pressão dos pares), exercitar a imaginação (nos quais os instrumentos principais são as artes, entendidas menos como produção de “obras de arte” do que como práticas artísticas de engajamento inventivo, pessoal e coletivo), empenhar-se na compreensão simpatética, ou empática do outro (na qual Nussbaum destaca, com Donald Winnicott, o lugar dos jogos, brincadeiras e dramatizações), e, enfim, uma ideia de cidadania a suportar todo o processo pedagógico, entendida como uma cidadania mundial, na qual as ações locais se reconhecem imediatamente como conectadas às de outras partes do planeta, de modo a evitar que a globalização seja apenas pensada economicamente.
 
Nussbaum critica Obama por tomar sistematicamente Cingapura como exemplo a ser seguido na educação No coração desses pontos chaves, apresentados como conceitos primitivos e inegociáveis, Nussbaum destaca o papel do que chama de “capabilities”, isto é, aptidões individuais tomadas como base de direitos humanos e do estabelecimento de políticas educacionais mais justas e inclusivas. Tais capabilities, na linha oposta à ideia de uma política de “recursos humanos”, implicam tanto numa consideração menos abstrata do lema cívico da igualdade de oportunidades, como em ações positivas que considerem circunstâncias e pessoas, evidenciando as situações assimétricas vividas por elas.
 
Tais pressupostos conceituais, voltados para a formação da cidadania, se traduzem, no manifesto de Nussbaum, em pinceladas curriculares que dão ênfase aos estudos de História e Geografia mundial (em oposição à ênfase tradicional norte-americana em sua própria história e território, deixando o resto do mundo na posição de um longínquo e pouco distinto pano de fundo); aos de história do trabalho (e de modo geral, aos estudos prioritários de história econômica, que a autora, com John Dewey, considera mais democrática do que a história política, uma vez que trata de situações comuns vividas pelas pessoas, refletindo diretamente sobre os produtos que elas vestem, comem etc., mais do que de ação de principalidades em situações excepcionais); aos estudos de relações internacionais (com destaque para o estudos dos momentos em que se definiram historicamente os seus pactos violentamente assimétricos, a saber: as relações coloniais, as corporações multinacionais, e os investimentos externos no âmbito do mercado financeiro); aos estudos críticos interdisciplinares que envolvam de maneira articulada disciplinas de direito, de cultura e de estudos dos sistemas políticos (de modo a reverter a tendência especializada e instrumental dessas disciplinas, que as tornam facilmente controladas por empreendimentos econômicos); aos estudos das diversas religiões (que Nussbaum julga, na contramão do pensamento de esquerda, indissociável do “core” das Humanidades, pois apenas através deles o cidadão do mundo pode alcançar a compreensão das práticas dos diferentes povos para adquirir, ele próprio, uma efetiva prática da tolerância). Em todos os pontos curriculares, nota-se ainda a adoção de um princípio multicultural, que baliza a crítica das injustiças de gênero, raça, orientação sexual etc. – nesse et coetera compreendido mesmo, suponho, as questões de classe social reinterpretadas sob viés cultural.
 
Em relação às circunstâncias contemporâneas da política educacional nos Estados Unidos, que Nussbaum considera possuir o formidável background favorável dos estudos tradicionais das “liberal arts”, ainda majoritariamente aplicado em todo o país, a autora tanto louva a chegada de Obama à Presidência, como homem e político comprometido com valores democráticos de tolerância e cooperação entre os povos, como faz uma dura crítica tanto do que tem dito sobre educação, como das ações que tomou, ou deixou de tomar até aqui. Nussbaum critica, em particular, a escolha de Arne Duncan para o Ministério da Educação, cuja atuação na Secretaria de Chicago teria levado a um “rápido declínio dos fundos para Humanidades e Artes”; a adoção cada vez mais generalizada de testes nacionais de múltipla escolha, em que o que mais conta é a memorização de conteúdos técnicos; bem como o fato de Obama tomar sistematicamente Cingapura como exemplo a ser seguido na educação. Segundo o presidente americano, “ eles [os reponsáveis pelas políticas educacionais de Cingapura] estão perdendo menos tempo ensinando coisas que não importam, e mais tempo ensinando coisas que importam. Eles estão preparando seus estudantes não apenas para o colegial ou a Universidade, mas para uma carreira. Nós não”. Segundo Nussbaum, essa admiração de Obama pelo estudo técnico voltado para a profissionalização, mais do que pelo incentivo à construção das práticas críticas e imaginárias da cidadania, leva a crer que “as coisas que não importam” incluem exatamente “muitas das coisas que este livro defende como essenciais para a saúde da democracia”.
 
Enfim, Not for Profit, como disse, não é um livro original ou conceitualmente cuidadoso, mas seguramente é um livro com vontade de debater, e que acha mesmo que a ocasião do debate público é a melhor terapia para a cura do câncer diagnosticado.