01/11/2010

Resenha

Livro argumenta: educação menos elitista levou EUA à frente da Europa

The race between Education and Technology Claudia Goldin & Lawrence f. Katz Cambridge, Harvard University Press, 2009, 488 pp.

Resenhado por Pedro Paulo A. Funari, professor titular do Departamento de História da Unicamp

Um livro escrito por dois economistas pode parecer, à primeira vista, de difícil leitura, mas este não é o caso. Os dois estudiosos de Harvard não deixam de apresentar dezenas de gráficos e tabelas e diversas fórmulas matemáticas, sem contar 58 páginas, em letra miúda, de notas – mas, a despeito disso, o resultado é uma obra clara e com uma tese muito bem apresentada e defendida: o segredo do sucesso norte-americano esteve sempre em um sistema educacional menos elitista que os europeus, desde o primário.

Os norte-americanos introduziram um sistema universal e igualitário de ensino fundamental já no século XIX, com a difusão generalizada do ensino médio no início do século XX. Em contraste, os europeus mantiveram um sistema elitista, que selecionava já ao final do primário, aos 11 anos de idade, aqueles poucos que seguiriam os estudos. Isso significava a manutenção das desigualdades de classe e de oportunidades no contexto universitário europeu, além de instigar uma educação fundada antes na erudição e na repetição da tradição do que na inspiração para a vida prática e no pensamento crítico. Decorar tabelas de verbos gregos ou de fórmulas produzia apenas uns poucos espíritos preocupados com a manutenção da ordem. Nos Estados Unidos, ao contrário, o ensino fundamental e médio valorizava conhecimentos úteis e aplicáveis. Enquanto as meninas eram pouco instruídas na Europa, elas frequentavam de forma igualitária as salas de aula norte-americanas. Isso significou que o avanço do ensino superior foi constante, com a incorporação crescente de estudantes por décadas, desde o século XIX. Mesmo a exclusão dos afro-americanos, que sempre tiveram menos acesso ao ensino, era menor do que a exclusão dos estratos sociais populares dos países europeus. Um descendente de escravos tinha mais oportunidades de estudo que um operário francês, alemão ou italiano.

A Europa só começaria a mudar esse quadro com a generalização do ensino fundamental e médio a partir do pós-guerra (1945). Em 1960, a Grã-Bretanha, a superpotência capitalista antecessora dos Estados Unidos, estava 35 anos atrás dos norte-americanos na formação de pessoas com nível médio, ainda que em 1944 tivesse sido introduzido um sistema público universal de ensino médio. A luta pela generalização das high schools nos Estados Unidos, entre 1910 e 1940, foi um movimento social de base, não uma decisão política central. Desde o final do século XIX os pais exigiam escolas médias para seus filhos, que queriam estudar nelas para progredir na vida. Primeiro, surgiram escolas privadas para atender a essa demanda; e, já no século XX, as comunidades locais passaram a oferecer escolas públicas. Nesse sentido, portanto, foram as lutas sociais que levaram à generalização da educação dos jovens e que permitiram o salto seguinte, na forma da universalização da formação superior, cujas características foram sempre próprias e diversas das que prevaleciam na Europa: menos elitista e mais voltada para as pessoas.

De acordo com Goldin e Katz, as instituições de ensino superior norte-americanas cresceram, em primeiro lugar, a partir da sua dispersão geográfica. Difundiram-se por todo o país, da costa aos rincões mais recuados, a partir de uma grande diversidade administrativa e de gestão, de faculdades locais (community colleges) a universidades de pesquisa, passando por faculdades isoladas (colleges). Essa variedade incluiu gestão pública ou privada, laica ou religiosa, étnica e mesmo de gênero, pois instituições para afro-americanos e para mulheres, por exemplo, exerceram papel importante na difusão da educação superior de massa. Isso permitiu, contam os autores, que ocorresse uma saudável competição entre instituições e modelos acadêmicos. Por fim, o ensino superior foi caracterizado pela abertura, ao permitir amplo acesso baseado em critérios variados, desde o desempenho do candidato nos esportes até seus antecedentes familiares, religiosos ou étnicos.

Como economistas preocupados com o desenvolvimento econômico, Goldin e Katz relacionam a remuneração crescente dos trabalhadores norte-americanos à sua capacitação em nível médio, primeiro, e superior, após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Procuram, na parte final do livro, tratar dos desafios para a retomada da liderança econômica dos Estados Unidos e como isso depende da educação. O país encontra-se em uma encruzilhada, afirmam os autores, pois sua educação está em declínio, tanto em termos relativos como absolutos. As virtudes da educação serviram muito bem aos Estados Unidos, na medida em que o país educou suas massas, cresceu economicamente e reduziu as desigualdades sociais, tudo consequência de um círculo virtuoso que se iniciou nos bancos escolares.

O argumento central do livro consiste em chamar a atenção para a história, para a trajetória que permitiu esse predomínio norte-americano e, em especial, como a educação esteve no centro desse êxito. Os autores se preocupam com o que denominam amnésia coletiva, na medida em que houve certo esquecimento das lutas sociais pela generalização da educação e de como isso foi determinante para o êxito econômico norte-americano. Mais que isso, o resto do mundo importou os modelos norte-americanos e seus ideais igualitários expandiram-se de forma ampla. Só isso já seria um legado importante, mas o país tem, ainda, a possibilidade de voltar à liderança isolada do passado recente se correlacionar educação e desenvolvimento econômico e social.

Alguns aspectos da argumentação dos autores parecem muito prescientes e bem fundamentados na análise acurada dos números e das estatísticas do passado. Assim, a expansão do ensino e sua generalização continuada, desde o século XIX, relacionam-se com o domínio econômico norte-americano. O papel dos movimentos sociais nesse processo também é convincente e fundamental. Talvez pouca ênfase tenha sido dada, nas suas análises, às exclusões sociais de afrodescendentes e hispânicos e, no passado, de judeus e outros grupos humanos discriminados, como os irlandeses e os italianos. A dúvida maior, contudo, refere-se ao futuro, “como a América liderou e pode ganhar a corrida pelo futuro”, título do capítulo conclusivo. Os autores reiteram que isso será possível se a bagagem do passado for preservada: descentralização, separação entre Igreja e Estado, sistema educacional aberto e inclusivo. O volume serve, nesse sentido, como um chamamento: lembrem-se do passado, mantenham os valores de uma educação aberta e de massa, e o domínio norte-americano poderá ser mantido. Difícil avaliar em que medida essa amnésia pode ser curada com advertências de estudiosos e, portanto, se essa seria a solução.

Como quer que seja, contudo, o livro traz muitas indicações para um país como o Brasil. A principal se refere à correlação estreita entre educação da população, redução das desigualdades e crescimento econômico, nessa ordem. No Brasil, a expansão do ensino fundamental, médio e superior foi tardia e continua a ser um dos calcanhares de aquiles do País. O sistema educacional brasileiro funda-se ainda, em grande parte, em critérios mais europeus e elitistas que norte-americanos. A escola não é forgiving como a norte-americana, não perdoa erros e tropeços, que são mais frequentes, pois os conteúdos ensinados são mais teóricos e abstratos e menos práticos e recompensadores (rewarding) do que lá. Como resultado, a luta pela educação não é um movimento de massa, bem enraizado, mas aparece, muitas vezes, como imposição legal e meramente formal. Serve, portanto, para distinção social, como definiu o sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002), para aumentar, mais do que para atenuar, as desigualdades sociais. Outro aspecto resultante dessas características consiste na frágil dispersão do ensino médio e, mais ainda, do superior, que chega pouco às periferias e ao interior do País. Tudo isso significa que a educação, como motor para a diminuição das desigualdades sociais e o progresso econômico, social e cultural, encontra limitações que vão além da falta de recursos.