01/05/2010

Resenha

As encruzilhadas da universidade, nos Estados Unidos e no mundo

Resenhado por Pedro Paulo A. Funari, professor titular do Departamento de História da Unicamp

The Great American University - Its rise to preeminence, its indispensable national role, why it must be protected
Jonathan R. Cole,
Nova York, Public Affairs, 2009, 620 pp.

Jonathan R. Cole atuou na universidade columbia, nos estados unidos, por cinquenta anos, como aluno, professor e administrador. entre 1989 e 2003 esteve como reitor (provost) e diretor de faculdades, mas sua formação em história (1964), com doutoramento em sociologia (1969), o conduziu a uma carreira destacada como acadêmico, em primeiro lugar, e, depois, como participante da administração. essa sua atuação administrativa não foi casual, nem sua preocupação com os rumos da vida acadêmica, pois ele percebeu que não fazia sentido que mesmo pessoas educadas ignorassem a íntima relação entre a criação e a transmissão de conhecimento, e o papel da universidade nessa interação.

Cole começa por referir-se à famosa clas-sificação de 2008 da universidade Jiao tong, de xangai, na china, das 500 melhores universidades, a partir do seu desempenho na pesquisa. entre as 20 primeiras, 17 são americanas; como são 40 das 50 e 54 das 100 melhores, seguidas por dez britânicas, cinco japonesas, quatro alemãs e três canadenses e australianas. entre as tantas primeiras, nenhuma é da china, da índia ou da américa Latina. a europa, incluindo a rússia, classificou 32. portanto, não há dúvida quanto à predominância norte-americana, ainda mais se pensarmos que a classificação foi chinesa!

Cole graduou-se em história dos estados unidos (columbia, 1964) e essa perspectiva histórica está presente na obra, pois ele enfatiza o percurso que levou ao predomínio norte-americano no ensino superior, em menos de um século, na primeira parte do livro (“a ascensão rumo à preeminência”, pp. 9-190). a alemanha estava no topo, com as universidades de Berlim e Göttingen, no início do século xx. o primeiro doutoramento norte-americano foi conferido em Yale, em 1861. o doutoramento e a carreira posterior de cole foram no campo da sociologia, tendo se destacado no estudo da estrutura e do funcionamento das instituições científicas.

A partir dessa perspectiva sociológica, cole identificou diversas características que revolucionaram a universidade norte-americana entre 1880 e 1930, dos critérios impessoais à liberdade total na pesquisa, passando pela inserção internacional e pela consolidação da liderança acadêmica baseada no mérito e no reconhecimento pelos pares. a impessoalidade consiste em desconsiderar o status e cargo de quem emite um juízo científico, seguindo o preceito de são tomás de aqui-no: “o argumento de autoridade, baseado na razão humana, é sempre o mais fraco” (nam licet locus ab auctoritate quae fundatur super ratione humana, sit infirmissimus – summa theologica, i, 8, 28281). a explicação de um catedrático filho de catedrático não podia valer mais do que a de um jovem pesquisador.

Outro aspecto de particular importância para o Brasil, hoje, refere-se à internaciona-lização, que não dependeu apenas do uso da língua inglesa, mas de uma política das universidades norte-americanas de ponta de cooptação dos melhores cientistas. o sistema de contratação de professores, por meio de ofertas aos estudiosos mais reconhecidos, com salários e vantagens, permitiu que a rede de relações internacionais se expandisse de forma muito rápida e consistente. No Brasil, um passo nessa direção foi dado pela possibilidade de professores estrangeiros atuarem nas universidades, mas o sistema de contratação por concurso público e os salários e benefícios padronizados impossibilitam uma política agressiva de cooptação de cientistas.

Os aspectos inovadores foram introduzidos, nos estados unidos, pouco a pouco, e, na avaliação de cole, constituíram uma ruptura com o sistema universitário europeu, que se mantinha atrelado a aspectos de origem me-dieval, como a rígida estrutura hierárquica e as relações de compadrio. as universidades norte-americanas apostaram em dois princípios que permitiram, em poucas décadas, que superassem as antigas instituições europeias: a democracia e o mérito. ambos atuaram de forma articulada, pois o reconhecimento do mérito permitiu que as relações de poder na universidade escapassem à hierarquia e ao compadrio e favorecessem o surgimento e a consolidação de lideranças acadêmicas fundadas na excelência em pesquisa. a universidade norte-americana ultrapassava todos os limites, com a contribuição decisiva dos acadêmicos que fugiam do fascismo na europa. enquanto a universidade europeia sofria com o predomínio da hierarquia e do compadrio, que permitiu a expulsão dos seus melhores cientistas por motivos raciais e ideológicos, os estados unidos abriam suas portas àqueles perseguidos e recebiam estudiosos judeus e esquerdistas do mais alto valor intelectual e que contribuíram para que a universidade norte-americana emergisse como a melhor do mundo a partir de então.

O surgimento da ciência de ponta nos estados unidos, desde a década de 1920, con-solidou-se com o estabelecimento do sistema de apoio a projetos por parte do National science Foundation (agência de financiamento da pesquisa não biomédica dos eua, de 1950), por meio de julgamento pelos pares. a pesquisa fundamental foi, muitas vezes, influenciada pelo esforço de resolver problemas práticos, de modo que a relação entre a ciência pura e a pesquisa aplicada caracterizou-se, em geral, pela interação e complementaridade. a excelência resultou de muitos fatores, dentre os quais a produtividade científica, a qualidade e o impacto da pesquisa, o apoio financeiro a projetos de pesquisa, mas também o ensino de qualidade e a liderança acadêmica. cole descreve o papel de clark Kerr e do plano Mestre de educação superior na califórnia, de 1960, com seu sistema de três níveis: uma minoria de universidades de pesquisa, complementadas por institutos estaduais e municipais de ensino superior.

O que se seguiu foi uma idade de ouro; embora cole se refira às atribulações crescentes, em particular a partir de meados dos anos 1990, quando a participação norte-americana na ciência mundial parou de crescer. entre as atribulações, o autor destaca que a maioria dos acadêmicos contribui pouco para o avanço da ciência e que – ao lado de algumas das melhores universidades de pesquisa do mundo – existe uma infinidade de instituições que não conseguem entrar na competição pelos melhores cérebros. cole arrola inúmeras invenções de uso cotidiano que resultaram da pesquisa universitária, como o código de barras e o Gps, mas também os transplantes de órgãos, as pesquisas com células-tronco, a revolução genética na produção de alimentos,
o laser, os Leds, os transistores, os supercondutores e muito mais!

cole discute, de forma detalhada, as ameaças à liberdade acadêmica durante a era Bush (2001-2008), em particular as limitações que resultaram em danos à pesquisa em temas como mudança climática e células-tronco. detecta, ainda, outros problemas internos. as universidades mais ricas ficaram ainda mais bem dotadas – mas as outras instituições de ensino superior receberam menos fundos e atenção. cole considera essa concentração muito deletéria; para ele, quando as univer-sidades ricas ficam muito mais ricas e as uni-versidades estaduais recebem cada vez menos recursos, cria-se um problema estrutural. a crise de 2008-2009 agravou a desigualdade entre as mais ricas e as menos aquinhoadas e públicas. cole também se preocupa muito com a tendência para a ortodoxia acadêmica, que considera muito ruim. para ele, o cerne da vida universitária é a heterodoxia, a busca do novo e do diferente: “as grandes universidades precisam criar uma cultura na qual

O intelectual brilhante, iconoclasta e desafiador, que apoia suas ideias com evidências, não seja uma pessoa isolada socialmente, não seja vilipendiado por questionar os ‘fatos’ e as ‘verdades’ que se pensa serem indubitáveis” (p. 500). cole conclui com uma nota positiva a respeito das perspectivas abertas pela admi-nistração obama, ainda que o livro tenha sido escrito no início do governo e algumas expec-tativas não se tenham materializado, como o relaxamento das regras de concessão de vistos para estudantes e estudiosos estrangeiros.

A experiência das universidades norte-americanas de pesquisa é de especial relevância para os países emergentes, como o Brasil, a índia e a china. em primeiro lugar, a educação superior foi caracterizada, desde o início, por um núcleo duro de instituições de pesquisa e por um grande número de cursos de graduação espalhados pelo país. assim, a expansão da qualificação universitária passou pela diversificação do sistema. em seguida, a proeminência das universidades norte-americanas esteve em relação direta com a supremacia econômica e militar dos estados unidos desde a década de 1930, enquanto os países emergentes hoje estão muito longe dessa posição. a perspectiva, portanto, não consiste em ter as melhores universidades do mundo, mas de elevar patamares e incluir-se no cenário acadêmico internacional, como foi o caso da austrália. para isso, o uso científico do idioma inglês é essencial, como mostram os casos do Japão e da holanda.

O papel do estado é de particular relevância no que concerne ao planejamento e à legislação, mas também no apoio às fundações de fomento científico. em um país como o Brasil, com órgãos estaduais, esse é um desafio, pois muitos não são bem financiados ou geridos. por fim, a liberdade acadêmica é, também, uma importante lição da experiência norte-americana, pois apenas ela incentiva o pensamento crítico e permite desafiar as ideias estabelecidas. isso forma a base do êxito acadêmico, em qualquer país.