25/04/2012

International Higher Education

Universidades medievais europeias no passado e no presente

Miri Rubin
Professora de história medieval e moderna de Queen Mary, Universidade de Londres. E-mail: m.e.rubin@qmul.ac.uk
(Uma versão deste artigo foi publicada no Times Higher Education.)
International Higher EducationComo historiadora da Idade Média, sou frequentemente indagada sobre os elos entre as universidades daquela época e as de agora. Levando-se em consideração as grandes mudanças que afetam as instituições contemporâneas de ensino superior e as vidas de tantas pessoas – alunos, pais, professores e empregadores –, as questões desse tipo tornaram-se mais frequentes e urgentes. Dado que é grande o número de diferenças entre as universidades medievais e as de nosso tempo, representadas por um conjunto diverso e global de instituições, as comparações são difíceis. Ainda assim, uma avaliação do papel desempenhado pelas universidades medievais revela algumas afinidades reveladoras que podem conter lições para o turbulento momento atual.
 
Igreja e Estado
Quando as universidades emergiram – entre 1150 e 1200 – na Itália, França e Inglaterra, elas foram uma resposta às necessidades das principais instituições de governo – a Igreja e as monarquias dinásticas. As instituições de ambos os sistemas exigiam burocratas treinados nos procedimentos do governo e na sua linguagem, o latim. O latim ainda dependia de convenções desenvolvidas na Antiguidade Clássica, e estas eram transmitidas por meio do estudo das artes liberais conhecidas como retórica, lógica e gramática. Os empregos para alunos formados – bacharéis das artes – iam da redação de cartas e tratados à manutenção de registros contábeis.
 
A Igreja e os Estados administravam a Justiça, e para isso também eram necessários especialistas em legislação: homens treinados para além das artes liberais e donos de diplomas superiores de Direito. Para promover esse importantíssimo treinamento, papas, reis e imperadores estavam dispostos a permitir que grupos de estudantes e professores se reunissem em Bolonha, Paris, Oxford e Cambridge. Eles isentaram os estudiosos de impostos e permitiram que alunos e mestres governassem a si mesmos. O papado licenciou universidades para a concessão de diplomas que eram reconhecidos em toda a Europa. O bacharelado em artes se tornou o padrão-ouro de certo tipo de conhecimento e capacidade administrativa em todo o mundo cristão.
 
Realidades medievais
Ainda assim, empregadores potenciais que poderiam beneficiar-se muito de funcionários bem treinados não proporcionavam um financiamento abrangente aos estudantes. Eles isentaram as universidades de algumas obrigações – assim como boa parte do setor do ensino desfruta hoje de status análogo ao de instituições filantrópicas em muitos locais –, o que levava cada estudante a procurar o próprio sustento. Para alguns, a tarefa era fácil. Monges inteligentes eram sustentados por suas ordens religiosas; os bispos sustentavam homens sob a condição de que tais estudiosos passassem a trabalhar em seu nome depois de formados; senhores de terras sustentavam talentosos jovens locais que voltavam para desempenhar as funções de vigário, secretário ou padre da paróquia. A maioria dos estudantes era obrigada a formar "pacotes de financiamento", com base no clientelismo, no sustento familiar e no trabalho remunerado. Nesse modelo, a proporção de desistência nas universidades medievais era altíssima; as listas de alunos matriculados eram sempre muito mais longas do que as listas daqueles que se formavam com bacharelado em artes. Para os estudantes que dependiam do humor de benfeitores, qualquer abalo na relação poderia obrigá-los a abandonar o curso. Dada a natureza mais precária do apoio ao estudo universitário, era menor a probabilidade de os estudantes concluírem os cursos. Se os estudantes são obrigados a implorar pelo sustento ou a pedi-lo emprestado, é provável que acabem escorregando pelas fissuras do sistema – desperdiçando o tempo e os recursos já investidos.
 
Outro ponto interessante está relacionado à alta taxa de desistência nas universidades medievais. Aqueles que abandonavam o curso antes de se formarem ainda conseguiam usar as habilidades adquiridas para encontrar emprego com facilidade. As habilidades eram facilmente transmissíveis e sua escassez era tal que até aqueles que tinham recebido apenas um ou dois anos de instrução contavam com vantagens importantes. Podiam fazer parte dos milhares de professores, tutores, escribas e registradores exigidos pela sociedade medieval – modestos equivalentes medievais de Steve Jobs e Mark Zuckerberg.
 
O financiamento das universidades era intimamente associado às matrículas de estudantes na Idade Média. Fora de determinadas regiões da Alemanha e da Itália atuais, a maioria dos donos de terras e títulos educava os filhos em casa. Seus herdeiros não precisavam seguir uma profissão ensinada e confirmada pelas universidades. E as universidades não eram as únicas instituições que recrutavam e treinavam jovens brilhantes e ambiciosos. Setores inteiros eram ensinados fora das universidades. Havia guildas, ou corporações de ofício, que recebiam aprendizes de cirurgião, de comerciante e de notário; o "Inns of Court" para aspirantes a advogados; treinamento em tribunais para os futuros servidores civis; ateliês para os artistas; e treinamento militar nas cortes reais e aristocráticas, bem como nas unidades de combate.
 
Por fim, em se tratando de criatividade, a futilidade de alguns aspectos do ensino das universidades medievais, sobretudo o sistema conhecido como escolástica, é há muito motivo de sátiras – tanto quanto era ridicularizado na Idade Média. A escolástica era um método de treinamento por meio de exames dialéticos, aplicado a questões que iam da medicina aos estudos teológicos. O questionamento dialético favorável e contrário a uma proposição era algo familiar a todas as pessoas mais instruídos e possibilitava raciocínios pungentes e radicais. O filósofo Pedro Abelardo (1079 – 1142) o usou em Paris (embora antes de a universidade ter sido fundada) para questionar a existência de Deus; pelo teólogo John Wycliffe (1330 – 1384, aproximadamente) em Oxford, para questionar a natureza dos sacramentos e a relação entre Igreja e Estado; e pelo teólogo e estudioso da Bíblia Martinho Lutero (1483 – 1546) na Universidade de Wittemberg, para atacar um milenar sistema cristão de crenças e práticas, alterando-o para sempre. Longe de serem estéreis e previsíveis, as universidades medievais produziram não apenas servidores civis e burocratas eclesiásticos como também pensadores radicais, cuja obra teve impacto real e que, apesar de suas críticas desafiadoras, morreram em suas próprias camas, e não na cela de uma prisão.
 
Lições contemporâneas
Com milhões de pessoas almejando o ensino universitário na Europa, nos Estados Unidos, na Índia e na China, temos diante de nós o desafio de transformar as universidades num campo de treinamento eficaz, e ao mesmo tempo num centro de criatividade e ousadia. Nas universidades medievais, os jovens eram afastados de casa para passar por um período de intensa interação intelectual e social, entre seus pares, na presença de mestres inspiradores. As habilidades transferidas eram facilmente transmissíveis porque eram genéricas: a capacidade de analisar textos, defender um ponto de vista, examinar problemas a partir de todos os pontos de vista, e fazer perguntas para chegar a soluções. Seu currículo de artes liberais já existia há séculos, e combinava instrução na destreza verbal ao treinamento com números e proporções. Como os formandos de hoje, alguns habitantes medievais tinham a aspiração de servir aos seus países e administrá-los, enquanto outros sonhavam em viajar para longe incumbidos de missões ou de aprender ainda mais – armados com habilidades altamente transmissíveis. Eles estudavam tudo aquilo que era essencial para a compreensão crítica dos sistemas, para a administração de entidades complexas, para a observação do mundo e para forjar soluções para os sucessivos desafios da vida.
 
Nas suas carreiras, homens dotados de tal formação esperavam interagir com outras pessoas refinadas nas suas habilidades e treinadas para outros fins: cirurgiões, notários, arquitetos, pintores, comerciantes, soldados e cartógrafos. Corporações de ofício, tribunais de todos os tamanhos, ordens de jurisconsultos e ateliês familiares treinavam as pessoas em habilidades que rendiam recompensas financeiras e reconhecimento. Uma combinação de ensino letrado e treinamento corporativo era necessária para produzir maravilhas como a reforma da Abadia de Westminster no século 13 ou a poesia de Geoffrey Chaucer um século mais tarde.
 
Lições para os dias de hoje
Pensar nas universidades medievais é algo que pode trazer lições benéficas. Talvez não devamos obrigar os estudantes a arcar com o fardo de buscar financiamento durante esse período crucial de formação. Fardos assim levam a um desempenho abaixo do possível e ao desperdício e abandono de preciosas vagas universitárias. Como suas habilidades são um bem comum, tudo deveria ser projetado e incentivado – empréstimos universitários confortáveis, bolsas de estudos, apoio estatal e contribuições vindas da filantropia – de modo a tornar as universidades gratuitas no seu ponto de acesso.
 
Outra lição diz respeito ao fato de as universidades não estarem sozinhas no fomento à excelência. Embora as habilidades do pensamento crítico de alto nível e da comunicação sejam essenciais para todas as formas de governança, outras formas de raciocínio e prática também merecem apoio e remuneração – desenho, criação, engenharia e outras.
 
A transmissibilidade das habilidades deveria ser central para o ensino superior. Conforme os estudantes são desafiados pela rica herança da compreensão humana – literatura, idiomas, artes, teorias sociais, ciências e filosofia – eles desenvolvem a partir dessas complexidades especializadas a capacidade de analisar e construir, corrigir e complementar. Aquilo que vale a pena ser estudado não deve ser decretado pelo mero utilitarismo. Para o treinamento da consciência, precisamos tanto do latim quanto da matemática.
 
Num momento de turbulência para o ensino superior moderno, os responsáveis pelas políticas públicas, os reitores e os docentes não devem ignorar o passado ao mapear o futuro.
 
capa da edição impressa nº 5 | abril de 2012