09/05/2013

International Higher Education

Religião e avanço do ensino superior na Europa

Gaële Goastellec
Professora assistente na Universidade de Lausanne, Suíça. E-mail: Gaele.Goastellec@unil.ch

Embora a religião tenha sido historicamente uma dimensão de estruturação dos sistemas de ensino superior na Europa, é pequeno o número de pesquisas que interrogam o elo contemporâneo entre religião e ensino superior. Uma análise deste tipo seria interessante em dois níveis. Primeiro, trata-se de entender o papel desempenhado pelo ensino superior numa determinada sociedade. Há contextos religiosos específicos nos quais o ensino superior pareça mais ou menos desenvolvido? O que podemos aprender com a comparação entre tais contextos? Em segundo lugar, trata-se de levar em consideração os históricos religiosos e o pertencimento a uma determinada tradição na leitura das desigualdades no acesso ao ensino superior. Historicamente, certos grupos foram afastados do acesso ao ensino superior, e as sociedades europeias são, ainda hoje, mais ou menos organizadas de acordo com critérios religiosos. Isso pede que a religião seja levada em consideração como indicador potencial das desigualdades, bem como o contexto étnico e socioeconômico.
 
Para compreender essas questões são usados dados provenientes do European Social Survey. A partir das cinco edições deste levantamento (2001-2010) obtivemos uma amostragem de 181.492 indivíduos nascidos entre 1939 e 1979, habitantes de 30 países europeus. Construímos então uma estrutura de pesquisa original para comparar os donos de diplomas terciários ao restante da população, observando o contexto religioso ao qual pertencem.
 
Na Europa, as sociedades mais seculares tendem a ser aquelas que apresentam o nível mais alto de escolaridade Religião, educação e sociedade
O primeiro resultado que chama a atenção corresponde a uma tendência global: na Europa, as sociedades mais seculares tendem a ser aquelas que apresentam o nível mais alto de escolaridade. A comparação entre os dois grupos de sociedades – o grupo das mais seculares, que apresentam o nível mais alto de ensino terciário, e o grupo das mais religiosas, nas quais o nível do ensino terciário é mais baixo – faz surgir outra tendência: os países de tradição protestante são os que aparentam ter o nível mais alto de ensino terciário quando comparados aos países de tradição católica. Como é possível explicar tais tendências? Algumas pesquisas mostram que, além de gerar mais prosperidade econômica, como identificado por Max Weber, o Protestantismo levou a uma maior disseminação da alfabetização e um aprofundamento do ensino, requisitos necessários para a leitura da Bíblia. De fato, com base na história do Protestantismo e do Catolicismo, observa-se uma grande diferença em se tratando do papel desempenhado por tais religiões na sociedade: no Protestantismo, a relação individual com o conhecimento é direta, e Bíblia logo foi traduzida para o alemão (diferentemente do prolongado predomínio do latim no Catolicismo), e o desenvolvimento do ensino foi apoiado durante a Reforma. Assim, as diferenças atuais no desenvolvimento dos sistemas de ensino superior podem ser interpretadas, ao menos em parte, como uma consequência de escolhas históricas; neste caso, a opção por uma linguagem comum de instrução religiosa, que veio com a estrutura menos hierarquizada do Protestantismo, em comparação com o Catolicismo. Isso condiz com o fato de, em 1900, os países nos quais a maioria da população era protestante terem chegado muito perto da alfabetização universal, diferentemente do observado nos países católicos.
 
Isso mostra como uma escolha feita pela instituição religiosa em algum momento da história pode ter efeitos duradouros no desenvolvimento do ensino. Também aponta a necessidade do desenvolvimento de uma abordagem social e história para a exploração do elo entre ensino superior e religião.
 
Os países de tradição protestante são os que aparentam ter o nível mais alto de ensino terciário quando comparados aos países de tradição católica Religião, educação e os indivíduos
O segundo conjunto de resultados está relacionado ao peso do contexto religioso na probabilidade individual de acesso ao diploma terciário, mantidas constantes todas as demais variáveis. Para abordar essa questão, o impacto do contexto religioso foi investigado com relação ao acesso ao ensino superior – em cada país – avaliando aspectos como idade, gênero, escolaridade dos pais, profissão dos pais, país natal dos participantes e seus pais, cidadania, sentimento de inclusão numa minoria étnica ou num grupo discriminado, bem como o idioma falado em casa. Uma vez que todas essas variáveis são incluídas no estudo, haveria ainda um impacto residual da religião?
 
Primeiro, parece que os indivíduos que não se consideram parte de uma comunidade religiosa apresentam maior probabilidade de obter um diploma terciário em países onde a maioria da população se considera parte de uma comunidade religiosa. Em Portugal, Espanha, Polônia, Áustria e Eslováquia – países de maioria católica – os participantes que se declararam “sem religião” apresentaram uma maior probabilidade de possuir um diploma terciário do que aqueles que declaravam pertencer a uma religião, por exemplo. O mesmo foi observado na Grécia e na Rússia, países em que a maioria da população pertence ao Cristianismo Ortodoxo.
 
Em segundo lugar, nos países em que a maioria dos participantes afirma não pertencer a uma comunidade religiosa, aqueles que se dizem parte de tais comunidades tendem a apresentar uma probabilidade mais alta de possuírem um diploma terciário. É o caso, por exemplo, dos católicos na Grã-Bretanha, Suécia e Bélgica, e dos protestantes na Grã-Bretanha, Suécia e Letônia.
 
Em terceiro, se observarmos o acesso de diferentes grupos religiosos minoritários ao ensino terciário, os muçulmanos parecem ter uma probabilidade mais baixa de possuírem diplomas terciários em ao menos cinco países (Áustria, Bélgica, Alemanha, Grécia e Suíça), e o mesmo ocorre com os cristãos ortodoxos na Suíça. Além disso, em se tratando dos diferentes grupos etários nas populações nacionais, são observadas mudanças na representação das diferentes comunidades religiosas quanto aos diplomas terciários. Significa que o impacto do pertencimento a uma comunidade religiosa se altera com o tempo.
 
Nos países em que a maioria dos participantes afirma não pertencer a uma comunidade religiosa, aqueles que se dizem parte de tais comunidades tendem a apresentar uma probabilidade mais alta de ter diploma terciário Religião como indicador
Assim sendo, que motivo haveria para investigar o polêmico tema da religião ao questionarmos o acesso ao ensino superior? As tendências sublinhadas anteriormente são obviamente difíceis de explicar, pois consistem no produto de processos complexos e obscuros. Ainda assim, o aprofundamento dessa questão parece interessante por pelo menos três motivos: num nível teórico, a investigação da causalidade múltipla da relação entre religião e ensino superior deve ajudar na compreensão das dinâmicas que envolvem o ensino superior e a sociedade. Num nível mais pragmático, esse exame proporciona uma oportunidade para analisar como as dinâmicas sociais se entrelaçam com as dinâmicas individuais nas trajetórias de ensino. Qual é o papel do ensino superior na construção de estados-nação que integram comunidades religiosas diversas? Finalmente, isso também sublinha o interesse de não se limitar uma análise das desigualdades no ensino ao contexto étnico e socioeconômico clássico, permitindo que sejam incorporados a ela os diferentes pertencimentos manifestados pelos indivíduos como parte do seu mundo.