28/08/2012

International Higher Education

Novas maneiras de financiar o ensino superior público: o experimento britânico

Michael Shattock
Shattock é professor visitante do Centre for Higher Education Studies do Instituto de Pedagogia da Universidade de Londres. E-mail: M.Shattock@ioe.ac.uk
Em 2004, quando o primeiro-ministro britânico Tony Blair obteve uma maioria parlamentar de apenas cinco votos para a introdução de mensalidades “complementares” – cobertas por empréstimos condicionados à renda a partir de 2006 –, pensou-se que tal abordagem radical permaneceria em vigor por um bom tempo. Duas ressalvas à nova estrutura de mensalidades (inexistente na Escócia) foram aceitas. A primeira estipula a criação de um Gabinete de Acesso Justo, não estatutário, que exigiria das universidades a apresentação de planos de acesso e ao qual caberia aprovar as regras de financiamento. Por meio desses planos, as universidades usaram parte da renda proporcionada pela nova mensalidade para financiar bolsas de apoio a estudantes provenientes de contextos desfavorecidos. A segunda detalha a promessa de criar uma comissão independente, que deverá examinar o funcionamento do novo regime de mensalidades depois de três anos. A grande expectativa era a de que as instituições variassem suas mensalidades, de acordo com sua posição no mercado, e que a introdução das novas mensalidades, ainda que apoiadas por empréstimos, afastasse alguns estudantes. Nenhuma dessas expectativas concretizou-se. Somente duas instituições cobraram o valor integral de £ 3 mil anuais. Não se viu nenhuma redução na proporção de estudantes que se matricularam na universidade. Na verdade, algumas universidades tiveram dificuldade para gastar a quantia que tinham reservado para a oferta de bolsas.
 
O relatório Browne
A ideia por trás da comissão independente era principalmente proporcionar ao Parlamento um feedback, mostrando se os interesses dos estudantes menos favorecidos tinham sido garantidos. O governo nomeou o Lorde Browne, ex-diretor executivo da BP [British Petroleum], para presidir a comissão, que produziu em 2010 o relatório "Securing a Sustainable Future for Higher Education". O texto, também conhecido como Relatório Browne, recomendou que nenhum tipo de limite fosse imposto às mensalidades e que o controle do número de estudantes, uma característica do ensino superior britânico desde os anos 80, deveria ser abandonado. As mensalidades seriam reembolsáveis de acordo com uma taxa de juros equivalente aos juros pagos pelos empréstimos do governo. Ainda assim, uma taxa gradativa institucional seria aplicada às anualidades superiores a £ 6.000, de modo que, por exemplo, 75% de qualquer anualidade acima de £ 12.000 seriam pagos pela instituição ao governo. Esse plano tinha como objetivo funcionar como uma forma de combater a cobrança de anualidades altas, algo que aparentemente as universidades poderiam desejar. Por outro lado, Browne defendeu que a concorrência no mercado trazia melhorias na qualidade. Entretanto, o relatório foi publicado no auge da crise econômica, quando um governo de coalizão formado por conservadores e democratas liberais estabeleceu o objetivo de cortar os gastos públicos em 25% no decorrer de três anos. Todos os gastos do governo foram submetidos a uma Análise Abrangente de Gastos, que impôs um corte de 40% ao ensino superior como um todo; e, em particular, um corte de 80% nas bolsas de ensino das instituições, recursos que seriam substituídos pelas mensalidades. As propostas de Browne para a cobrança livre de mensalidades e para a remoção dos limites no número de estudantes foram rejeitadas, e um limite para as taxas de ensino, estipulado em £ 9.000, foi anunciado.
 
Entretanto, recursos públicos seriam utilizados para sustentar cursos de importância estratégica – Ciências, Tecnologia e Medicina. Ainda não se sabe se tais medidas refletiram uma decisão para as políticas de ensino, complementar às políticas de 2004, ou se foram um resultado acidental da tentativa de proteger outra parte do orçamento do Departamento de Atividade Econômica, Inovação e Capacitação (o departamento do governo responsável pela área). A decisão foi certamente difícil para o lado democrata liberal do governo de coalizão, que tinha participado das eleições prometendo a completa remoção das anualidades, com cada membro do partido sendo obrigado a assinar um “Compromisso”. Entretanto, partindo de seu próprio ponto de vista, o Tesouro prometeu fazer uma contribuição de longo prazo para a redução dos gastos públicos.
 
O Relatório Branco
A lógica, seja post hoc ou não, e o formato final dessas decisões foi determinado por um Relatório Branco do governo (Higher Education: Students at the Heart of the System) em 2011: £ 9.000 seria o valor máximo que as instituições poderiam cobrar pelo ensino para os estudantes domésticos; mas as instituições que planejassem cobrar mais de £ 6.000 teriam de convencer o Gabinete de Acesso Justo que tinham instaladas políticas realistas de acesso antes de poder ir além desta soma. A meta referente ao número de estudantes foi congelada para proteger o Tesouro do compromisso ilimitado com empréstimos; mas, para proporcionar mais flexibilidade e concorrência, um pool de 85 mil vagas para estudantes seria retirado do total atual de vagas estudantis para permitir um recrutamento ilimitado além das 65 mil vagas estudantis para estudantes com nota AAB ou superior em seu exame nível A do Certificado Geral de Escolaridade – assim, uma nota A em Matemática e Física e um B em Química enquadrariam o estudante nessa categoria. Até 20 mil outras vagas também seriam tiradas das universidades e faculdades que cobrassem £ 7.500 ou menos – sendo portanto vagas a serem preenchidas por programas de ampliação da participação. Essa abordagem “núcleo e margem” tinha claramente o objetivo de favorecer as universidades que atraíam os estudantes mais qualificados (em geral, as instituições mais voltadas à pesquisa) em detrimento daquelas que formavam seu corpo discente a partir de um campo muito menos qualificado. Os formandos só poderiam começar a quitar os empréstimos a partir do momento em que tivessem renda anual de £ 21 mil, e o período de pagamento seria de 30 anos. Além disso, bolsas de sustento próprio também foram cobertas por empréstimos, de modo que o pagamento envolveria as anualidades e o sustento somados.
 
Já em julho de 2011, a maioria das instituições indicou a intenção de cobrar anualidades até £ 1.000 acima do valor máximo estipulado, com o estabelecimento de um valor médio de £ 8.500. Isto foi £ 1.000 a mais do que o Tesouro tinha previsto, colocando imediatamente em risco o custo previsto para todo o esquema. Desde então, 25 instituições reduziram o valor de suas anualidades com o objetivo de obter acesso às 20 mil vagas adicionais, para as quais a qualificação de alto nível não seria exigida. Muitos previram que as novas propostas para a anualidade limitariam o número de inscrições, especialmente por parte dos estudantes vindos de contextos menos favorecidos; mas os números mais recentes mostram um declínio modesto. Os inscritos mais velhos eram os que apresentavam a menor probabilidade de quitar o valor integral do empréstimo, pois poderiam deixar a força de trabalho antes do fim do prazo de 30 anos para a quitação da dívida.
 
A lógica das políticas
Quatro linhas de raciocínio parecem ter influenciado esse conjunto de decisões. Primeiro, um elemento significativo dos gastos públicos foi removido. Embora a maioria dos comentaristas preveja que o esquema vai aumentar os gastos públicos no curto prazo, boa parte desse resultado vai depender da capacidade do Tesouro de vender para firmas privadas de financiamento o portfólio de empréstimos concedidos. Em segundo lugar, o plano vai aumentar a concorrência e, nos termos da Nova Administração Pública, também a eficiência. Em terceiro, a existência de um mercado mais intenso vai aprimorar a qualidade dos programas acadêmicos (o Relatório Branco exige de cada instituição uma apresentação extremamente detalhada das informações de mercado, com o objetivo de aprimorar a eficiência). Em quarto, o plano busca reforçar uma maior diferenciação do sistema de acordo com critérios como custo das anualidades e requisitos de admissão. Outra intenção, muito alardeada, era colocar as instituições particulares no mesmo patamar legal das públicas, em termos do seu direito ao financiamento. No ensino superior, o setor privado é muito pequeno se comparado ao público, mas organizações como a Apollo conseguiram firmar-se. Isso foi distorcido pela decisão do governo de não incorporar as mudanças na legislação – diz-se que por causa do medo de serem destituídos de seus mandatos no processo de escrutínio parlamentar. Isso deixa inalterados os poderes do conselho de financiamento, por mais que os recursos destinados a ele tenham diminuído muito. Além disso, o Gabinete para o Acesso Justo não detém poder legal de fazer valer a decisão de negar a uma universidade a capacidade de cobrar a anualidade máxima – independentemente de sua capacidade de satisfazer os critérios do gabinete quanto aos seus esquemas de acesso.
 
O impacto
Ainda é cedo para dizer qual será o impacto final das mudanças, mas algumas conclusões podem ser sugeridas. O novo esquema é essencialmente um imposto de graduação, que considera o ensino superior um bem particular, e não um bem público – assim invertendo a concepção que perdurava desde 1945. As universidades mais fortes, capazes de atrair a inscrição de alunos altamente qualificados, serão reforçadas. As menos fortes, de recrutamento mais débil, podem enfrentar dificuldades, mas as evidências até o momento não indicam que nenhuma delas vá de fato quebrar como resultado das mudanças. Mas um dos temores, o de que a redistribuição de vagas adicionais permitiria que novos participantes entrassem no mercado a preços mais baixos, concretizou-se com a decisão de designar 10 mil das 20 mil vagas para faculdades de ensino complementar, que estabelecem anualidades de £ 6 mil ou menos – removendo assim esses estudantes do setor universitário. A decisão foi muito influenciada pelo desejo do Tesouro de reduzir o custo dos empréstimos tomados por tantas instituições de anualidade alta. Tal política envolveu a transferência de vagas das grandes instituições posteriores a 1992 para aquilo que nos Estados Unidos seria chamado de setor dos community colleges.
 
O efeito das mudanças é combinado com uma concentração ainda maior do financiamento às pesquisas. O Times Higher Education calculou que, nas dotações de 2012-2013, o Grupo Russell de universidades de pesquisa recebeu um aumento de 1,5%, enquanto os Grupos Million Plus e Guild HE de universidades voltadas para o ensino perderam de 10% a 16% do dinheiro que recebiam; a tendência pode provocar desigualdades no sistema se a abordagem “núcleo e margem” persistir. A ideia de que a concorrência e uma maior dependência com relação aos mercados melhoram a qualidade do ensino superior é muito contestada, e existe o risco de o sistema tornar-se mais polarizado do que é atualmente. O perigo maior é o do planejamento do ensino superior no futuro decorrer mais de flutuações nos juros, do poder do Tesouro de conceder empréstimos e do funcionamento dos mercados monetários. Assim, na transferência das vagas estudantis para as instituições mais baratas (descrita acima), em vez das necessidades educacionais e da pressão da demanda estudantil, o Tesouro, e não os estudantes, pode se revelar o verdadeiro “coração do sistema”.