13/06/2013

International Higher Education

Novas dinâmicas do ensino superior latino-americano

José Joaquín Brunner
Brunner é professor da Universidad Diego Portales, em Santiago, Chile, na qual exerce o cargo de Diretor da Unesco para Políticas Comparativas de Ensino Superior. E-mail: josejoaquin.brunner@gmail.com
Em 1950 havia apenas 75 instituições do ensino superior na América Latina, em geral universidades, com 266.000 estudantes. Hoje há cerca de 3.900 universidades e cerca de 10.500 instituições não universitárias do ensino superior recebendo 20 milhões de estudantes. Além disso, enquanto nos anos 1950 menos de 2% da população com idade entre 18 e 24 anos estava matriculada no ensino terciário, em 2010 esta proporção era de 37%. Em outras palavras, o ensino superior latino-americano foi massificado, deixando para trás seu caráter minoritário e exclusivamente elitista; na Argentina, Chile, Cuba, Uruguai e Venezuela, a proporção de participação no ensino superior ultrapassou os 50% da população desta faixa etária. Esta dramática transformação está mudando nossas sociedades e trazendo consigo urgentes desafios educacionais, sociais e de políticas públicas.
 
Principais características do ensino superior de massas
O panorama é caótico, e os sistemas nacionais parecem desordenados e desorganizados.A diversidade é a realidade dominante. Há instituições com diferentes missões, tamanhos dessemelhantes e cobertura diversa das áreas disciplinares; corpos estudantis de composições socioeconômicas distintas e capital cultural idem; funcionários com variados perfis profissionais, regimes de trabalho, estilos de treinamento e modos de ensino; variadas divisões acadêmicas do trabalho; formas distintas de governança e gestão institucionais, fontes de financiamento e arranjos funcionais; e relações com a sociedade, o estado e os participantes envolvidos. Os sistemas têm todas as características de um panorama pós-moderno – instituições híbridas, sincronismo entre alta e baixa cultura, coexistência do ensino de massa e de elite, conhecimento fluido, predomínio do curto prazo, potência do mercado, ausência de grandes narrativas e assim por diante.
 
Na verdade, a rápida massificação do ensino superior da América Latina é inseparável da grande maré do capitalismo global caracterizada pelas múltiplas redes e a intensificação do conhecimento em todos os setores econômicos, sociais e culturais. Partindo de uma força de trabalho com pouca escolaridade, a população economicamente ativa da América Latina tem agora em média uma instrução superior ao ensino secundário. Logo, alguns países terão um terço ou metade dos jovens empregados com ensino terciário.
 
Princípios de ordem
Será que nosso ensino superior é tão caótico quanto parece ser? Isto decorre de uma falta de ordem, coordenação e liderança? Não creio que isso seja verdade. Em vez disso, observando além das aparências, podemos discernir estruturas que que ordenam esses sistemas e certos padrões (não totalmente projetados, diferentes do comando e controle) de coordenação e liderança.
 
Três categorias diversas foram organizadas, mas de acordo com regras reconhecidas internacionalmente envolvendo propriedade, controle e financiamento. Estas são, em primeiro lugar, instituições públicas/estatais do ensino superior; em segundo, instituições privadas do ensino superior cuja propriedade, controle e financiamento estão nas mãos de pessoas ou entidades particulares, sem receber subsídios diretos do Estado. Em terceiro, entre esses dois tipos há instituições privadas parcial ou completamente apoiadas por impostos nacionais, mas dotadas de uma estrutura privada de governança. A ordem evoluiu por meio da distribuição das matrículas e da proporção do financiamento vinda de fontes públicas ou privadas. Esses dois parâmetros definem a economia política dos sistemas.
 
Hoje, mais da metade mas matrículas do ensino superior latino-americano está em instituições privadas – a maioria das quais não recebe do Estado subsídios públicos diretos nem regulares; cerca de 35% do total de gastos com o ensino superior vêm de fontes privadas. As matrículas e o financiamento do setor privado no Brasil, Chile, Colômbia, República Dominicana, El Salvador, Paraguai e Peru estão acima da média regional, em certos casos chegando a 50% de ambas as categorias. A combinação das forças do Estado e dos agentes privados está produzindo a massificação do ensino superior. Hoje, a América Latina é a região com a maior proporção de matrículas em instituições privadas do ensino superior e a maior proporção de financiamento proveniente de fontes privadas – especialmente os lares e o endividamento dos estudantes.
 
De maneira condizente com a mistura de economias políticas, a liderança e a coordenação dos sistemas nacionais estão estruturadas em torno da concorrência de mercado, da regulação do Estado e do comportamento estratégico das instituições – que é em si produto da concorrência e da regulação. A orientação, se existe, está ao alcance das mãos, com os governos participando por meio de regulamentações, incentivos e informação; enquanto as instituições em si concorrem por estudantes, funcionários acadêmicos, recursos e prestígio com base na sua posição dentro da hierarquia institucional de um dado sistema. Em resumo, o aparente caos do ensino terciário na América Latina é o resultado das condições de mercado, com a concorrência entre os fornecedores, uma estrutura estatal fraca ou passiva, oferecendo no melhor dos casos orientação por meio de regulamentações, avaliações e incentivos (alicerçados em subsídios) em vez do controle.
 
Desafios
Dadas as circunstâncias que prevalecem na América Latina, a primeira responsabilidade dos governos (Estados) deve ser a de orientar as forças de mercado no sentido dos objetivos do bem-estar social, alinhando o desenvolvimento do sistema com o interesse geral. O governo, com outros envolvidos no processo, deve estabelecer uma estrutura de prioridades, parâmetros e métodos. Entre os componentes o acordo deve ter como base as regras do jogo e o compromisso com uma arena igualitária; instituições capazes de regulamentar e controlar o sistema e o comportamento dos agentes; requisitos claros e vinculantes para os informes de desempenho; parâmetros e informações a respeito do volume e dos modos de financiamento estatal para esse setor com um horizonte de médio prazo.
 
Um papel essencial para a autoridades públicas é o de garantir a qualidade. Na América Latina, alguns pensam – equivocadamente – que tais atividades reduzem a função coordenadora do mercado, e que a qualidade é melhor representada pelas classificações de instituições do ensino superior que agem como substitutas do controle de qualidade. Diante de agudas assimetrias na informação, as autoridades públicas precisam reconhecer que, sob condições de intensa concorrência, os mercados do ensino superior costumam produzir um tipo de "corrida armamentista" que incentiva uma contínua espiral nos custos, com uma pressão cada vez mais acentuada sobre as rendas dos lares e estudantes, bem como as finanças públicas. A alocação de subsídios por parte do governo – tanto aos fornecedores (instituições) quanto à demanda (estudantes) – deve ser feita com objetivos claros e prioridades sociais, recorrendo-se a um amplo e sofisticado conjunto de instrumentos para a alocação de recursos – fundos competitivos, acordos de desempenho, fórmulas – que promovam a eficiência interna e externa e funcionem como estímulo à inovação e ao aprimoramento d qualidade.
 
Em relação aos sistemas e instituições do ensino superior, o desafio principal é a construção da capacidade humana envolvendo muitas questões – por exemplo, o acesso ao ensino superior; as regras de admissão e a forma com a qual diferentes instituições são escolhidas; notas e títulos; ideias e organização dos currículos; modos de ensino e métodos pedagógicos; corpo acadêmico e pessoal de ensino; e a transição do ensino superior para o trabalho e o acompanhamento dos alunos formados no mercado de trabalho. Cada uma dessas dimensões deveria levar em consideração a diversidade de oferta, por parte das universidades ou das instituições não universitárias; se são acadêmicas-disciplinares ou técnicas-vocacionais; se são de elite ou instituições com pouca ou nenhuma seletividade etc. Os desafios são muitos, e os parágrafos seguintes identificam apenas algumas características salientes.
 
Em termos do acesso, a questão principal é compreender as consequências da admissão em massa. Em particular, o fato de, durante um determinado período, um número cada vez maior de estudantes vir de lares (nos três quintos mais baixos da escala) de capital econômico, social e cultural reduzido. Os testes do Programa para a Avaliação de Estudantes Internacionais mostram que uma grande proporção desses jovens não desenvolveu no ensino secundário as habilidades mínimas necessárias para a compreensão de textos, o trabalho com os números e a exposição de hipóteses com base em princípios científicos e o uso de provas. Eles muitas vezes carecem da capacidade de aprender por conta própria, requisito básico para o sucesso no ensino superior. As instituições terão de compensar tais déficits, assim como as autoridades públicas ajudam os estudantes com o auxílio econômico (bolsas de estudos, empréstimos estudantis, etc.). Se isto não ocorrer, então as taxas de abandono vão se manter no patamar estimado de 50% na região, o que representa sem dúvida um dramático desperdício de talento e também dos recursos públicos e privados gastos com essa instrução.
 
Diante dos requisitos para o treinamento em massa, as instituições do ensino superior (incentivadas pelas políticas do governo) devem revisar seus currículos (considerados por muitos como demasiadamente rígidos e medíocres) e a especialização prematura, com o objetivo de cultivar as habilidades socioemocionais exigidas pelas novas maneiras de organizar o trabalho e a comunicação. Esses novos arranjos vão incorporar o aprendizado digital e a educação contínua, trazendo assim um impacto para o treinamento do corpo docente e os modos de instrução.
 
Além disso, as instituições do ensino superior e os governos precisam enfatizar a possibilidade de obtenção de um emprego como parte do ensino, sem descartar outros aspectos cruciais do aprendizado, como os direitos e responsabilidades dos cidadãos, a gestão individual da carreira, o pluralismo e a valorização da diversidade cultural etc.
 
Em resumo, o ensino superior na América Latina entrou num novo estágio e precisa desenvolver conceitos inovadores e instrumentos para enfrentar os desafios da massificação e da universalização. Além disso, tais desafios surgem dentro de sistemas econômicos mistos nos quais os governos, mercados e instituições interagem entre si, descobrindo novos arranjos para responder às demandas e ambições sociais, que aspiram deixar para trás a pobreza, o autoritarismo, a violência e as desigualdades.