10/03/2015

International Higher Education | 76

Não existe universidade de ponta sem contato humano significativo, diz emérito de Harvard

Governança compartilhada e rejeição de fins lucrativos também são características fundamentais. A governança compartilhada pode frustrar tentativas de implementar mudanças rápidas, mas um ritmo mais lento também pode levar a escolhas mais sábias.

Henry Rosovsky
Diretor emérito da Faculdade de Artes e Ciências da Universidade Harvard
Um paradoxo
O ensino superior dos Estados Unidos é vítima de uma crítica interna sem precedentes. A conclusão comum: “é muito caro, ineficiente e não representa um bom investimento”. Os alunos são considerados despreparados para o mercado de trabalho. O ensino superior é acusado de ser muito permissivo por tolerar baixa produtividade acadêmica e resistir à revolução tecnológica. Em geral, o “modelo de negócios” atual é considerado insustentável: alguns creem que estamos a caminho da autodestruição.
 
Mas em discussões e avaliações internacionais do ensino superior, as universidades americanas são frequentemente “invejadas pelo mundo”.
 
Para acadêmico, quando se busca lucro com educação, todas as qualidades de uma universidade de ponta se tornam empecilhos. Nos Estados Unidos, não faz sentido falar sobre “ensino superior” ou “universidades” em geral. O rótulo “universidades americanas” pouco significa, porque o país é o lar de mais de 4 mil instituições de ensino superior. Vão desde aquelas que podem de fato causar inveja ao mundo àquelas que quase não se distinguem das escolas do ensino médio – com uma enorme variedade entre os extremos.
 
No topo da nossa pirâmide de ensino superior, meu foco pessoal aqui, encontramos as universidades públicas e privadas de pesquisa com seu papel especial de criar e manter o conhecimento, treinar os alunos em artes, ciências e em escolas profissionais e oferecer uma educação liberal [formação geral]. De acordo com Jonathan Cole, em The Great American University, há por volta de 125 universidades que se encaixam nessa descrição e “São capazes de produzir uma proporção muito alta do conhecimento fundamental mais importante e [entregar] resultados práticos de pesquisa no mundo. É a qualidade da pesquisa produzida e o sistema que investe nela e treina jovens para serem cientistas e professores de ponta que os diferencia e os faz ser invejados pelo mundo”.
 
Todas as instituições no topo da pirâmide educacional americana e também algumas outras compartilham seis características muito associadas à alta qualidade. Sua ausência poderia impedir ou dificultar bastante que atingissem alta qualidade, não apenas nos Estados Unidos, mas em qualquer outro lugar. De fato, a ausência total ou parcial dessas características em outros países ajuda a explicar por que há relativamente poucas instituições estrangeiras, especialmente não ocidentais, representadas no topo das classificações mais aceitas. Nenhuma das seis características é totalmente inequívoca; elas se justapõem. Porém, não é difícil notar sua presença ou ausência.
 
Seis características de qualidade
 
Governança compartilhadaEm primeiro lugar, todas essas instituições praticam a governança compartilhada: reitor e conselho universitário condicionalmente delegam a política educacional às faculdades. Basicamente, isso incluiria o currículo e a seleção inicial dos que ensinam e dos que são admitidos para estudar e pesquisar. O estilo administrativo é colegiado, em vez de cima para baixo, com a faculdade compartilhando autoridade em áreas específicas com a administração central e o conselho universitário, os quais são a autoridade final. Trata-se de uma maneira distintamente americana de governança compartilhada, que se baseia em uma forte estrutura executiva. Reitores, pró-reitores e diretores [presidents, provosts e deans, no esquema de cargos anglo-saxão] possuem e exercem autoridade considerável com relação a orçamento, prioridades institucionais e muitas outras questões relevantes.
 
O que torna a governança compartilhada tão importante? Há muitas respostas possíveis, mas estas são as mais comuns: as universidades são organizações extremamente complexas em que uma estrutura centralizada de tomada de decisões não oferece os melhores resultados. Nas universidades, a proporção de pessoas automotivadas é alta, e para captar a medida plena de suas “criatividades”requer-se um senso de propriedade comum. Susan Hockfield, ex-presidente do Massachusetts Institute of Technology (MIT), define isso muito bem: “A faculdade vai além da fronteira de suas disciplinas e, desse ponto de vista vantajoso, pode determinar melhor as futuras direções de seus campos e criar currículos que levem os alunos às fronteiras. Nenhum líder acadêmico pode mudar o curso da disciplina da universidade de forma independente da faculdade”.
 
A governança compartilhada pode frustrar tentativas administrativas de implementar mudanças rápidas, mas um ritmo mais lento também pode levar a escolhas mais sábias e certamente, com base na história das universidades, não evitou mudanças fundamentais.
 
Liberdade acadêmica Em segundo lugar, apesar dos desafios recorrentes, as universidades de pesquisa americanas usufruem de liberdade acadêmica – “o direito de os acadêmicos desenvolverem suas pesquisas, ensinar e publicar sem controle ou restrição da instituição que os emprega” – além de todos os direitos garantidos aos habitantes do país, especialmente aqueles associados à Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos.
 
Seleção por mérito Em terceiro lugar, a admissão de alunos e a seleção e desenvolvimento dos acadêmicos baseia-se no mérito medido por padrões institucionais reconhecidos e aceitos. Algum tipo de conquista anterior definiria mérito: seguramente, não é uma questão isenta de inúmeras ambiguidades. Não se pode ignorar ações afirmativas, bolsas de estudo e distanciamentos semelhantes das noções mais simplistas de mérito, como a clássica pontuação em um teste nacional padronizado. Da mesma forma, gênero, raça e redes de ex-alunos podem criar outros desvios de um padrão direto de seleção e promoção. Independentemente disso, medições objetivas de mérito permanecem pelo menos no centro dessa estrutura.
 
Contato humano significativo –Um dos principais componentes da educação que existe hoje é a tentativa de se manter um contato humano significativo: encontros reais, em vez de virtuais, entre alunos e professores para encorajar a participação e o pensamento crítico. Nas Palestras de Tanner de 2012, William Bowen dá a isso o nome de “contato de mentes”. As proporções podem mudar ao longo do tempo, mas o princípio básico deve permanecer: isso deve ser parte da educação liberal [formação geral] para universitários, que precisam de orientação e contato para tomar decisões, e esta é uma parte autoevidenciada da relação entre orientador e orientando (mentor-mentee relation) para aqueles que almejam um título de doutorado. Poucos negariam o grande valor da digitalização, dos materiais didáticos virtuais ou, ocasionalmente, de salas de aula invertidas [flipped classroom é uma forma de aprendizagem mista em que os alunos aprendem o conteúdo online, assistem aulas em vídeo geralmente em casa, e a “lição de casa” é feita em sala de aula com professores e alunos discutindo e resolvendo problemas. A interação do professor com os alunos é personalizada: mais orientação individual e menos palestras para o coletivo], mas estes continuam sendo complementares, e não principais.
 
Preservação da cultura –Todas essas universidades consideram a preservação e a transmissão da cultura como uma de suas missões. Isso inclui a representação das humanidades no currículo (obrigatórias para artes liberais de graduação), assim como, para alguns, atividades mais especializadas, incluindo pesquisa e estudos de linguagem e a manutenção de bibliotecas e museus.
 
Status sem fins lucrativos –Todas as universidades de pesquisa operam no regime sem fins lucrativos. Se o aumento do lucro ou aumento de dividendos dos acionistas forem o objetivo, todas as condições anteriores se tornariam obstáculos não bem-vindos e ineficientes e não poderiam ser toleradas por uma gestão competente.
 
Mas essa condição não é tão simples assim. As decisões em universidades sem fins lucrativos podem ser influencidas e, possivelmente, distorcidas por considerações financistas. Por exemplo, as atividades que geram pesquisa ou fundos operacionais como retorno por privilégios obtidos por entidade financiadora podem requerer acesso exclusivo a resultados científicos específicos por um determinado período.
 
Nesse sentido, nenhuma universidade de pesquisa hoje é puramente sem fins lucrativos. Nenhuma, no entanto, é direcionada principalmente pelos objetivos comerciais de apoiadores externos.
 
As seis características não são nem canônicas nem sujeitas a prova matemática rigorosa. Elas se baseiam em minha leitura (que considero controversa) de nossa experiência histórica.
 
Entendendo correta ou incorretamente os requisitos de qualidade
Muitos acadêmicos considerarão essa lista de características individualmente familiar, óbvia e de pouco interesse. Não acadêmicos, por outro lado, podem ter uma reação bem diferente. A lista pode ser facilmente interpretada como uma defesa do status quo, típica de uma instituição acadêmica que resiste obstinadamente a toda e qualquer mudança.
 
Ambas as perspectivas estão erradas. As características de qualidade quase nunca são consideradas como um sistema, embora a ausência de qualquer uma delas afete a integridade e qualidade de uma universidade de pesquisa.
 
Voltando-se para a perspectiva não acadêmica, nenhuma dessas características, isolada ou em grupo, torna “impossíveis” mudanças mais radicais (para usar o termo adorado por nossos críticos). Esse é um ponto importante, pois acredito que vai contra crenças generalizadas.
 
Por exemplo, tenure [uma forma de estabilidade no emprego concedida a acadêmicos por instituições de ensino e pesquisa nos EUA] é visto como um obstáculo para mudanças. Pode-se desejar, em vez disso, adotar um sistema de contratos de longo prazo – especialmente porque a lei federal americana proíbe a adoção de aposentadoria compulsória, o que penaliza os jovens professores [pois a renovação de posições acadêmicas torna-se mais lenta]. Mas não são as características enumeradas que empatam a marcha das mudanças. Os docentes não determinam sua remuneração ou condições de emprego: são variáveis nas mãos da administração e não parte da governança compartilhada. No entanto, a mudança torna-se muito mais difícil pela competição entre universidades e o sistema legal criado para evitar conluio (cooperação?) entre empresas com fins lucrativos.
 
A noção de que as universidades de pesquisa são “inalteráveis” sempre me soou bizarra. Nossos produtos são ensino e pesquisa, e o elemento vital não é o formato ou a configuração (a garrafa), mas o conteúdo (o vinho). E isso está em constante mudança.
 
Considerando o momento atual
Para cumprir seu papel na sociedade – criar conhecimento e educar estudantes de graduação e de pós-graduação – a comunidade de universidades faz suposições que nem sempre podem ser, e sem dúvida não são agora, óbvias para os atores responsáveis por seu financiamento e supervisão administrativa [trustees] ou para o público em geral. Por exemplo, as características associadas à qualidade podem ser vistas como tentativas de obtenção de privilégios especiais.
 
Outra realidade a ser considerada é que as universidades americanas raramente têm constituições escritas ou tradições antigas de common law. Os avalistas de seus privilégios e práticas são trustees que têm, em sua maioria, toda a experiência de vida em negócios privados. Além disso, no caso de universidades estaduais americanas, as indicações para cargos de governança universitária podem ser políticas e ficam, frequentemente, nas mãos dos governadores – às vezes, estão sujeitas até mesmo a eleições.
 
Num momento de polêmicas e críticas, as práticas atuais levantam questões: aqueles que constituem a instância final de deliberação [os trustees] entendem a entidade incomum que a eles foi confiada? Quando a iniciativa dos trustees é necessária e adequada e quando não é? Fizemos o suficiente para prepará-los para suas responsabilidades? Aqueles que fazem as indicações de cargos estão mais preocupados com a qualificação do candidato para analisar um balanço financeiro ou com sua apreciação dos valores da universidade? Ou olhamos primeiro para a capacidade de eventuais conselheiros de fazerem grandes doações em retribuição pela honra? Ou aqueles que têm o poder de fazer indicações estão primariamente interessados nas afiliações políticas de um candidato?
 
O mesmo ponto pode ser levantado sobre professores. Tomamos muito cuidado ao examinar suas credenciais de pesquisa e – hoje em dia, esta é uma mudança importante e bem-vinda – observamos de perto sua capacidade de ensinar. Mas fazemos algo para preparar o corpo docente para participar de forma produtiva da governança compartilhada? Ambas as tarefas serão mais urgentes conforme as universidades de pesquisa americanas – “invejadas no mundo”? – navegam por mares turbulentos previstos por praticamente todos os observadores.
 

Esta é uma versão resumida dos comentários feitos no evento Carnegie Corporation/Time Summit on Higher Education (setembro de 2013) e publicados no Carnegie Reporter (segundo semestre de 2014): http://higheredreporter.carnegie.org/