26/03/2014

International Higher Education

Brasil: um gigante do ensino com fins lucrativos

O IHE publica com regularidade artigos do PROPHE, Programa para a Pesquisa em Ensino Superior Privado, cujo centro fica na Universidade de Albany

Dante J. Salto
Dante J. Salto é estudante de doutorado avançado no Departamento de Gestão do Ensino e Estudos em Políticas de Ensino, e Pesquisador Associado em Doutoramento PROPHE da Universidade de Albany, Universidade Estadual de Nova York. E-mail: dantesalto@gmail.com
A busca pelo lucro no ensino superior envolve temas controvertidos e debates que dizem respeito aos limites adequados para a atividade de mercado. Um debate do papel a ser desempenhado pelo subsetor que busca fins lucrativos e suas implicações para a política de ensino foi publicado recentemente na IHE (número 71, 2013). Uma distinção fundamental identificada aqui era entre as atividades comerciais, com eventuais fins lucrativos e frequentemente suspeitas das instituições sem fins lucrativos, e a crescente realidade das instituições que são legalmente definidas como tendo fins lucrativos. Embora seja amplamente reconhecido que muitas instituições sem fins lucrativos s envolvem em atividades lucrativas, este artigo lida com as instituições que são legalmente autorizadas a distribuir dividendos entre os acionistas, com foco específico num dos maiores subsetores de ensino com fins lucrativos do mundo. As instituições brasileiras de fins lucrativos têm mais de 2 milhões de matriculados (2010) - 43% dos estudantes do setor privado e 32% do total de estudantes do sistema de ensino. É somente em virtude de seu próprio crescimento impressionante no início do século 21 que o antigo subsetor americano das instituições com fins lucrativos conservou sua liderança em número absoluto de matrículas, com mais de 3 milhões de estudantes atualmente; independentemente disso, a fatia das instituições de fins lucrativos no sistema de ensino superior dos EUA é bem menor do que a parcela do sistema brasileiro - 11% contra 32%, respectivamente.
 
O crescimento do setor privado e, em especial, do subsetor de fins lucrativos no Brasil deve ser visto no devido contexto. Com mais de 6,5 milhões de estudantes (2010), o Brasil tem o maior sistema de ensino superior da América Latina. Entretanto, de acordo com a proporção da faixa etária matriculada (18-24 anos), o Brasil está atrás da maioria dos grandes países latino-americanos, ocupando a 11.a posição entre todos os países latino-americanos. O Brasil lutou para melhorar sua proporção de matriculados. Hoje, o Brasil fica atrás apenas do Chile em se tratando da fatia das matrículas que cabe ao setor privado - 73% e 79%, respectivamente; e, nos últimos 20 anos, o Brasil dependeu do subsetor de fins lucrativos mais do que qualquer outro país latino-americano.
 
Já em 2000, apenas um ano após a plena aprovação legal para as instituições do ensino superior com fins lucrativos, o subsetor tinha 18% das matrículas do setor privado e 12% do total de estudantes do sistema. Ao compararmos os subsetores com fins lucrativos e sem fins lucrativos, chama a atenção que as instituições de fins lucrativos ampliaram suas dimensões em 537% no período de 2000 a 2010, assumindo a posição do setor público como segundo maior destino das matrículas, enquanto os setores privado sem fins lucrativos e público cresceram apenas 88% e 85%, respectivamente. Grandes empresas domésticas e internacionais com renda exorbitante foram importantes participantes no crescimento do subsetor de fins lucrativos.
 
Políticas públicas
Mesmo que o espetacular crescimento das instituições de fins lucrativos não tenha sido totalmente esperado, ele resultou de uma decisão formal das políticas públicas. Um decreto presidencial assinado em 1997, seguido por uma emenda aprovada pelo congresso em 1999 à lei de ensino de 1996, fizeram o Brasil avançar ao permitir instituições do ensino superior com fins lucrativos, reconhecendo que muitas instituições tidas de jure como sem fins lucrativos eram de facto instituições com fins lucrativos, sem que o Estado arrecadasse os devidos impostos. Em outras palavras, a grande expansão do ensino superior privado levou a instituições sem fins lucrativos que em geral lucravam.
 
Alguns observadores alegaram que as mudanças regulatórias implementadas durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso nos anos 1990 tiveram elo com as políticas neoliberais mais amplas promovidas pelo governo dele em diferentes setores da economia. Assim, com a eleição do partido populista de oposição em 2003, muitos observadores duvidaram que a promoção do setor privado fosse continuar, especialmente no subsetor com fins lucrativos. Entretanto, o novo presidente Luis Inácio Lula da Silva trouxe na verdade mais vigor à política pública favorável. Seu programa Universidade para Todos promoveu o acesso ao ensino superior, voltado especificamente para o setor privado - incluindo a parte com fins lucrativos, por meio de isenções fiscais. O novo governo justificou a lei e o programa apontando para a persistência da desigualdade histórica no acesso ao ensino superior.
 
Tamanho e formato: áreas de estudo
Consistentemente com as principais tendências globais no ensino superior privado, o subsetor com fins lucrativos acumula sua maior fatia das matrículas nas áreas de ciências sociais, administração, e direito (51%), pedagogia (17%), e saúde e bem estar social (15%). Em comparação, o setor público apresenta uma maior concentração no ensino (41%), seguida por ciências sociais, etc. (15%), e engenharia, produção e construção (12%).
 
As instituições de fins lucrativos tendem a oferecer programas de baixo custo e alta taxa de retorno sobre o investimento institucional. Seguindo o mesmo padrão das matrículas, os programas de fins lucrativos se concentram em ciências sociais, etc. (43%), ensino (16%), e saúde e bem estar social (13%). Diferentemente do que ocorre nas matrículas, os dados a respeito dos programas permitem que demos um passo além. Dentro do primeiro grupo, a maioria dos programas gira em torno de gestão e administração (22%), direito (5%), contabilidade e ciências fiscais (5%), e marketing e publicidade (4%). Dentro do ensino, a pedagogia representa 6%, seguida pelo treinamento de professores em áreas profissionais (3%). Por fim, dentro da saúde e do bem estar social, a maioria dos programas está na terapia e reabilitação (4%) e enfermagem e cuidados primários (4%). O subsetor sem fins lucrativos apresenta uma composição semelhante na composição de áreas e programas, na mesma ordem observada no subsetor com fins lucrativos. O contraste é acentuado com o setor público, no qual a maioria dos programas se concentra na área do ensino (41%), seguida por ciências sociais, administração e direito (15%), e engenharia (12%).
 
Por alguma mistura de atividades planejadas e não planejadas, o Brasil concedeu ao setor privado em geral - incluindo agora o subsetor com fins lucrativos - um papel importante no acesso ao ensino, mantendo a maioria das instituições mais seletivas no setor público. Somada ao fato de que impressionantes 95% das instituições com fins lucrativos não serem universidades, esta realidade gera preocupações em relação à qualidade no subsetor com fins lucrativos. Tais preocupações não se limitam ao caso brasileiro nem à fatia legalmente definida como tendo fins lucrativos entre o setor privado. A maioria dos sistemas privados do mundo é caracterizada por instituições privadas que, em média, apresentam qualidade inferior às suas equivalentes no setor público e entre as universidades privadas de elite. Por outro lado, o teste em massa dos formandos (provão) revelou um amplo espectro de qualidade tanto no setor público quanto no privado, com as instituições de fins lucrativos apresentando desempenho superior ao esperado.
 
As tendências parecem apontar para a continuidade do crescimento do subsetor de fins lucrativos por meio de dois desenvolvimentos: 1) mais instituições sem fins lucrativos alterando seu status legal; e 2) grandes empresas domésticas e multinacionais incorporando instituições sem fins lucrativos ao seu portfólio de empreendimentos. Todas essas tendências mostram o quanto o sistema brasileiro está se tornando diversificado. Embora saibamos que a presença de instituições de fins lucrativos seja forte em meio a esta diversidade, como observado em qualquer outro país latino-americano, será interessante descobrir quais paralelos já existem na região e se a experiência brasileira serve como presságio do crescimento semelhante entre instituições de fins lucrativos nesses outros países.