24/08/2015

International Higher Education | 81

As universidades australianas sob a gestão neoliberal: o aprofundamento da crise

Raewyn Connell
Professor emérito, University of Sydney, Austrália. E-mail: raewyn.connell@sydney.edu.au
O sistema de ensino superior australiano data da segunda metade do século 19, quando algumas pequenas universidades foram estabelecidas nas colônias ainda em suas formas naturais e até violentas. A logica era que as universidades transmitissem tradições culturais estabilizantes — como, por exemplo, a habilidade de citar Horácio em latim — e deu a jovens advogados, engenheiros e médicos algumas habilidades técnicas com a porção da educação humanitária europeia a coroar tudo isso. Conhecimento indígena assim como os estudantes indígenas foi completamente excluído.
 
Na metade do século 20, as universidades foram transformadas sob a agenda do desenvolvimento nacional. O país se industrializava. Para ser completamente moderna a Austrália precisava de um sistema de ensino secundário e superior e um amplo recrutamento de estudantes. Após a segunda Guerra mundial, o governo federal australiano, anteriormente pouco interessado em universidades, investe uma quantidade crescente de receitas de impostos para expandir as pequenas universidades da era colonial e na construção muitas mais nos “greenfields” no entorno das cidades australianas. O que se seguiu foi um crescimento nos números de estudantes.  
 
Uma mudança na natureza das universidades acompanhou este crescimento. A ideia difundiu que a sociedade precisava de tecnologia, ciência de ponta e até ciência social. A universidade de pesquisa é a maior produtora moderna de conhecimento. Assim, a Austrália precisava expandir a capacidade de pesquisa. Uma universidade de pesquisa nacional foi lançada no fim da década de 1940 e as outras universidades logo começaram a expandir formações acadêmicas mais superiores. Novas salas de conferências, os institutos de pesquisa com suas grandes janelas de vidro foram vistos no país.
 
Quatro décadas de expansão produziu uma força de trabalho da universidade pública, que em meados das décadas de 1970 e 1980 foi uma presença importante na sociedade australiana, sendo a principal base para a vida intelectual do país, e provavelmente, por certo ajudou o crescimento econômico. O sistema universitário criado neste período foi um recurso social surpreendente — não grande quando comparado aos Estados Unidos ou a Europa, porém de boa qualidade, todo público, e gozando de amplo apoio popular.
 
A virada neoliberal
Na década de 1980, as condições de existência das universidades australianas mudaram. As elites empresariais e políticas do país se voltaram para o neoliberalismo, com sua agenda estimulante de privatização, desregulamentação, redução de impostos, gestão de energia e lucro em curto prazo. Assim como outros países na periferia global, a Austrália retrocedeu na direção da estrutura econômica colonial. Com o país desindustrializado, a exploração mineral de grande escala para exportação tornou-se a principal indústria. Havia pouca necessidade econômica de produção autónoma de conhecimento na Austrália naquele período.
 
As reformas da universidade foram lançadas pelo Governo do Partido Trabalhista no final da década de 1980 — assim como outras partes do Sul, o neoliberalismo na Austrália foi introduzido por partidos de “esquerda.” As políticas se destinavam a expandir mais as universidades, por razões sociais — mas com demasiada parcimónia. O primeiro passo foi dobrar as faculdades não relacionadas à pesquisa do ensino avançado no setor universitário. Não através do planejamento racional, mas pelo frenesi da aquisição de empreendedores —vice – reitores e seus subordinados lançados como empreendedores.
 
O próximo passo foi encontrar mais alguém para pagar, e a solução neoliberal estava à mão: taxas. A participação do governo federal do financiamento universitário iniciou um colapso espantoso, de cerda de 90 por cento dos orçamentos universitários no inicio da década de 1990 para cerca de 50 por cento hoje. Para compensar, as taxas oriundas dos estudantes aumentaram década após década. 
 
Uma vantagem era fazer os estrangeiros pagarem. As universidades australianas da década de 1950 à década de 1970 havia oferecido educação gratuita a estudantes asiáticos como ajuda ao desenvolvimento. Sob os governos neoliberais das décadas de 1990 e 2000, o setor universitário foi redefinido como uma indústria de exportação — o equivalente cultural ao setor de mineração. Os estudantes estrangeiros, principalmente da Ásia eram os clientes ricos a serem cobrados tanto quanto o mercado pudesse aguentar. Algumas tentativas foram feitas para estabelecer campi de extensões nos mercados estrangeiros, contudo, isso não prosperou: talvez as universidades australianas não tenham prestigio suficiente; ou o atrativo de estudar na Austrália deve-se parcialmente à probabilidade de imigração. A maior parte da renda de estudantes estrangeiros vem de indivíduos que vieram à Austrália para estudar.
 
As mudanças nas instituições
O neoliberalismo tem feito mais que mudar os mecanismos de financiamento, transformando as universidades em instituições e os reitores têm operado cada vez mais como CEO ou diretores executivos. Hoje eles representam a elite das gestões em força de trabalho gerencial que trabalha em linhas coorporativas e são remunerados em escalas empresariais — um milhão de dólares ao ano, incluindo bônus para os reitores mais afortunados. 
 
Decisivamente, os principais gerentes e seus colaboradores de suporte imediato na área do negócio têm se tornado cada vez mais separados em bases diárias, dos funcionários da área acadêmica, manutenção e técnica. Tem se aberto uma lacuna cultural. No mundo empresarial, uma forma padrão para aumentar o lucro é a diminuição dos custos com a mão de obra. Em universidades os primeiros a sentir as arestas afiadas foram os funcionários das áreas não acadêmicas. Cada vez mais o trabalho destes indivíduos tem sido “terceirizado”— contratado por empresas não conectadas com a universidade. Este dinheiro possivelmente economizado, certamente cortou as conexões de todos os dias dos trabalhadores envolvidos com o pessoal acadêmico.
 
Os custos da mão de obra no ensino precisaram ser diminuídos. Um caminho foi diluir o compromisso com o ensino. Em todo o setor, a relação estudante / professor quase dobrou entre 1990 e 2010. Outra forma foi causalizar a força de trabalho.   As gestões não revelam esta informação — seria ruim para o marketing — mas o Sindicato Nacional do Ensino Superior calcula que cerca de 50 por cento de todo o ensino de graduação é agora feito por colaboradores temporários.
 
Com a integração social da universidade em declínio acentuado, a gestão multiplicou os mecanismos de controle indiretos. Sistemas de controle informatizados estão interferindo profundamente no trabalho universitário do dia-a-dia, incorporando a desconfiança da força de trabalho e geralmente não se encaixam nos processos de pesquisas ou no ensino superior muito bem, além de criarem cinismo.
 
As universidades estão agora cheias de falsas responsabilidades. Ao mesmo tempo, se voltaram para as técnicas de relações públicas para atrair estudantes em potencial e financiadores e para polir a imagem da organização. A universidade coorporativa agora projeta para o mundo uma fantasia lustrosa de gramados amplos, estudantes relaxados, funcionários felizes, prédios espaçosos, e o eterno dia de sol australiano. A lógica cultural das universidades como portadoras da verdade, do pensamento rigoroso está se tornando profundamente comprometida. 
 
Uma crise de finalidade e reprodução
O essencial para muito desta mudança é que a classe dominante australiana não precisa de um sistema universitário de primeira classe na era neoliberal. As corporações transnacionais que escavam o minério e o carvão estão felizes em poder importar suas tecnologias. As indústrias lucrativas locais, da construção aos jogos de azar não precisam de uma força de trabalho amplamente profissionalizada. 
 
O rico, que tem condições de pagar por taxas elevadas, não precisa de algumas universidades locais com reputação suficiente para inserir seus filhos nas universidades internacionais de administração. Um grupo seleto de universidades mais antigas tem surgido, se autodenominando de Grupo dos Oito e consideradas como a Liga da Hera do Rei dos Mares do Sul. O restante das universidades do país no que tange ao Grupo dos Oito podem comer os restos. 
 
Enquanto isso os estudantes de pós-graduação e recém-licenciados, que agora realizam a metade do ensino de graduação encontram-se sob extraordinária pressão, tentando compensar juntos salários de subsistência de fragmentos da profissão do ensino, muitas vezes de diferentes locais, em horas estranhas e com zero de segurança. A Austrália está produzindo muitos formandos; mas a força acadêmica do futuro está sendo desgastada e não fomentada.  
 
Embora o discurso da política da gestão neoliberal na Austrália seja otimista — a estratégia de mercado requer isso — a realidade embaixo da propaganda lustrosa é uma crise crescente na viabilidade da força de trabalho e na produção e reprodução de uma cultura intelectual. Isso não será resolvido por decisores políticos neoliberais, que nem se quer as reconhecem e as novas elites corporativas, extrativistas e financeiras não possuem nenhum interesse em particular em resolvê-las.
 
Se a crescente crise tiver que ser resolvida, isso acontecerá através de uma mudança quantitativa na forma como as decisões sobre o ensino superior são tomadas pela demanda popular por um sistema universitário de primeira classe para toda a sociedade, e por um corpo docente e funcionários que protegem os recursos extraordinários criados pelas primeiras gerações.   
 
Este texto foi traduzido e revisado sob a coordenação de
Sergio Azevedo Pereira
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