26/03/2014

International Higher Education

A abdicação da capacidade de reflexão no ensino superior internacional

Philip G. Altbach
Altbach é diretor do Center for International Higher Education/Boston College. E-mail: altbach@bc.edu

Durante quase meio século, várias organizações governamentais internacionais proporcionaram consistentemente um fórum para debates a respeito de temas do ensino superior global e a capacidade para a análise de políticas e para a realização das pesquisas que a informam. Tais organizações produziram documentos e conjuntos de políticas, publicaram monografias, livros e revistas acadêmicas, patrocinaram encontros internacionais e, de tempos em tempos, financiaram e coordenaram projetos de pesquisa envolvendo alguns dos principais temas internacionais. Elas também reuniram estatísticas e, ocasionalmente, publicaram documentos de conjuntos de políticas ligados a questões globais e regionais do ensino superior. Talvez mais importante tenha sido o fato de terem proporcionado o fórum de debate, reunindo líderes do ensino superior, pesquisadores e, com frequência, funcionários do governo preocupados com o ensino superior. A capacidade de trabalhar em escala global e reunir diferentes públicos é especialmente significativa, especialmente em se tratando de um empreendimento tão complexo quanto a pesquisa e o ensino superior.
 
Há evidências o bastante para destacar que, nos últimos anos, duas das principais organizações governamentais internacionais envolvidas nessas atividades, UNESCO e a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), praticamente abandonaram o setor do ensino superior, levando a um vácuo considerável. Somente o Banco Mundial, entidade que chegou tardiamente ao setor com atividades em geral limitadas a ocasionais estudos de políticas e algumas atividades de pesquisa, parece se manter ativo.
 
Esta abdicação é uma grande infelicidade, já que o ensino superior precisa mais do que nunca da “capacidade de raciocínio”, da análise de questões contemporâneas e da “força de autoridade” emprestada aos debates e conversas. É também bastante surpreendente, já que o ensino superior nunca foi mais importante para os países de todo o mundo. Além disso, os sistemas e instituições acadêmicas se veem cada vez mais afetados por tendências globais que exigem análise comparativa e debate internacional, e seriam beneficiados por uma análise global de “melhores práticas”.
 
Passado e presente
Houve uma época em que a UNESCO desempenhou um papel útil no ensino superior, apesar de sua reputação de instituição burocrática e ineficiente. Tratava-se da única organização do mundo com cobertura global. Ela conseguia atrair representantes dos países em desenvolvimento e também dos países industrializados. Em certos países, a UNESCO tinha um elo especial com o mais alto escalão do governo. Vários de seus escritórios regionais se ocupavam de aumentar a capacidade para a pesquisa e a análise de políticas do ensino superior no cento e leste da Europa, algo especialmente importante durante o período da Guerra Fria, e na América Latina. Várias publicações davam espaço para a análise e o debate, como Higher Education in Europe, editada pelo Centro Europeu para o Ensino Superior da UNESCO (UNESCO-CEPES), fechado em 2010. Foi particularmente surpreendente o fechamento de Higher Education in Europe sem a procura por uma editora respeitada e interessada em assumir a publicação. As duas conferências mundiais da própria UNESCO a respeito do ensino superior (realizadas em 1998 e 2009) e as várias reuniões regionais foram úteis - como fóruns que reuniram representantes dos governos, lideranças universitárias e pesquisadores. Na última década, toda essa infraestrutura foi sistematicamente desmantelada.
 
Ainda que suas responsabilidades básicas se limitem aos seus membros entre os países industrializados, a OCDE também desempenhou um papel ativo e bastante útil. Seu programa de Gestão Institucional no Ensino Superior patrocinou conferências anuais para líderes acadêmicos envolvendo temas relevantes e publicou uma revista internacional muito elogiada, Higher Education Policy. A revista foi subitamente cancelada, mais uma vez sem nenhuma tentativa de repassá-la a uma editora. A OCDE também patrocinou uma série de projetos de pesquisa, como uma análise das tendências emergentes no ensino superior em 2030, que resultou em livros e conferências úteis. Tudo isso parece ter desaparecido, e a OCDE se distanciou da preocupação com o ensino superior. É emblemática a situação atual da Avaliação de Resultados de Aprendizado do Ensino Superior; depois de realizar um estudo prático, esta ambiciosa iniciativa foi suspensa - mas, na realidade, foi fechada.
 
De tempos em tempos, essas duas organizações e o Banco Mundial patrocinaram grandes relatórios a respeito de alguns dos principais temas do ensino superior. Entre os exemplos está Peril and Promise, entre outros. Houve ocasiões em que esses documentos inteligentes voltados para questões globais tiveram impacto significativo nas políticas nacionais de ensino e, de modo mais amplo, no pensamento global a respeito do ensino superior. Embora algumas das iniciativas globais da UNESCO para o ensino superior tivessem qualidade questionável e financiamento insuficiente, elas reuniram quase todos os países com o objetivo de pensar nos problemas do ensino superior. Documentos e relatórios importantes foram preparados para tais encontros.
 
Base de conhecimento
Diz-se com razão que, na maioria dos casos, a função principal das organizações internacionais consiste em atividades legislativas e voltadas para a definição de padrões, a defesa de políticas e a orientação para a elaboração de políticas, bem como o lançamento e implementação de vários projetos operacionais; e tais atividades implicam na necessidade de experiência entre os funcionários dessas instituições. O “trabalho de padronização” realizado por UNESCO e OCDE, em colaboração com outras organizações, tem sido essencial para a coleta de estatísticas comparativas de ensino. A UNESCO acompanha uma série de estatísticas ligadas ao ensino, e parte delas diz respeito ao ensino superior. Esses esforços tinham a vantagem da cobertura global, mas a desvantagem de uma precisão apenas modesta, decorrente em parte de uma falta de capacidade da UNESCO e da dependência em relação àquilo que os governos ofereciam em todo o mundo. Tem-se a impressão de que as estatísticas recebem agora menos atenção. As estatísticas da OCDE tendiam a ser mais precisas e abrangentes, mas correspondiam apenas aos países membros da OCDE, com a adição de alguns outros.
 
Implicações da abdicação
Infelizmente, nenhuma outra organização oferece os serviços e as perspectivas amplas que desapareceram com a abdicação da UNESCO e da OCDE. O Banco Mundial dá continuidade à sua preocupação em pequena escala com as questões globais do ensino superior, mas não patrocina encontros nem envolve participantes relevantes. Um grande número de conferências regionais e de propósito único é observado, como a reunião bianual das Universidades de Nível Mundial na Universidade Jiao Tong, de Xangai. A conferência Going Global, do Conselho Britânico, e a conferência WISE, da Fundação Catar, reúnem um pequeno número de participantes, mas parecem não tratar de temas importantes nem ter importância duradoura.
 
Organizações como a Associação Europeia para o Ensino Internacional atraem um número cada vez maior de participantes globais para suas reuniões anuais. Entretanto, em geral, organizações desse tipo se preocupam com aspectos específicos do ensino superior, como a internacionalização e a mobilidade estudantil, no caso da EAIE, ou as classificações universitárias, caso do Ranking Expert Group Observatory.
 
Agências e financiadores costumam ser motivados pelo “assunto do momento” ou moda no ensino superior. A preocupação atual com o “treinamento da força de trabalho” e a empregabilidade dos formandos é um caso a ser destacado: algumas agências e fundações passaram a se interessar nesses temas de perspectiva internacional, mas elas não têm uma visão global nem o interesse em criar uma base de conhecimento para o debate internacional. Pode-se prever que o próximo conjunto de conferências presenciais e projetos de pesquisa de curto prazo envolva cursos abertos ministrados online em massa e outros elementos do ensino à distância. Embora tais preocupações de curto prazo sejam relevantes e merecedoras de atenção, nada pode substituir o investimento contínuo numa ampla perspectiva internacional para o ensino superior global.
 
Soluções
A solução para o problema da dificuldade em “conferir autoridade” e “capacidade de raciocínio” não exige cálculos complexos. É claro que seria melhor se uma organização internacional com recursos apropriados e ampla aceitação entre os públicos globais relevantes pudesse assumir essa responsabilidade; mas isso parece improvável. Talvez seja possível estabelecer um arranjo como o Centro de Estudo Internacional TMSS e PIRLS do Boston College, que coordena as avaliações periódicas de ciências e matemática, é financiado por algumas agências e foi capaz de se manter ativo por mais de uma década para dar conta da tarefa. Talvez um grupo de organizações regionais e nacionais do ensino superior possa se reunir para assumir tal responsabilidade. Talvez a Fundação Catar ou alguma organização semelhante dotada de recursos consideráveis possa se comprometer com uma iniciativa séria do ensino superior que iria além de conferências ocasionais. Temos uma desesperadora necessidade de manter um debate internacional em andamento, reunindo dados com regularidade a respeito do ensino superior. No momento, temos na melhor das hipóteses um quadro fragmentado.