07/06/2010

Entrevista

Simon Schwartzman: "O ensino médio no Brasil é formal, acadêmico, voltado para o vestibular. Não atende jovens com outros interesses"

Entrevista concedida em 7 de junho de 2010

Mônica Teixeira

Está no ensino médio o gargalo mais crucial da educação no Brasil. Esse entendimento vem se generalizando entre pesquisadores e autoridades; o que os preocupa são dados como os da evasão dos estudantes – no primeiro ano ingressam 3,6 milhões de jovens; concluem o curso 1,8 milhão; ou os do Ideb, relacionados ao desempenho dos estudantes, que mostram os matriculados no terceiro ano do ensino médio com nível de conhecimento inferior ao desejado para o último ano do ensino fundamental. Desinteresse dos alunos, carência de professores, especialmente de Física e de Química, baixa cobertura na faixa etária, dimensão diminuta do ensino técnico – com tudo isso, a expansão do número de brasileiros com formação superior, capazes de atender às necessidade de desenvolvimento do País, parece uma meta de difícil alcance.

O ensino médio e as dificuldades que enfrenta têm sido tema frequente de apresentações e estudos de Simon Schwartzman, o entrevistado desta edição de Ensino Superior Unicamp. Schwartzman é doutorado em Ciência Política pela Universidade da Califórnia-Berkeley; lecionou na Universidade de Colúmbia, em Harvard, na Universidade de São Paulo e na Universidade Federal de Minas Gerais – da qual foi afastado depois do golpe de 1964. De 1994 a 1998 presidiu o IBGE. Seu currículo de pesquisador mostra seu interesse persistente por temas relacionados à produção do conhecimento, à ciência, à tecnologia e ao papel da universidade para o desenvolvimento. Sobre universidade e desenvolvimento na América Latina, coordenou em 2006-2007 um estudo financiado parcialmente pela Fundação Ford.

Atualmente pesquisador do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade, Schwartzman mora no Rio de Janeiro, onde concedeu esta entrevista a Mônica Teixeira no dia 7 de junho de 2010. Para ele, a diversificação é uma saída para os impasses do ensino médio. Leia:


Qual o desafio que o ensino médio coloca para o Brasil atualmente?
Temos alguns problemas básicos no ensino médio. Uma peculiaridade do Brasil, na comparação com outros países da América Latina, com a Europa e com os Estados Unidos é o fato de o nosso sistema de ensino médio ser praticamente um só. Há um setor de ensino profissional ou técnico muito pequeno; isso não dá alternativas para os estudantes que queiram seguir diferentes caminhos. A necessidade de um sistema diversificado tem a ver com os interesses diversificados das pessoas; e também com o fato de que a educação básica é muito desigual, e que nem todas as pessoas têm condições de fazer o mesmo tipo de curso médio. Pelo fato de o modelo ser único – o modelo tradicional, acadêmico, ele mesmo com uma série de problemas específicos –, parte das pessoas não consegue acompanhar o programa e não chega ao final; ou então chega ao final com tantas dificuldades que não tem condições de continuar a estudar e de seguir uma atividade profissional adequada. Temos, assim, um problema de diversificação; e o sistema predominante, que é quase o único que existe, tem vícios e defeitos, decorrentes de seu conteúdo muito formal e do modelo muito antiquado de ensino, enciclopedista. Há uma carga muito grande de cursos em que se pede ao aluno para decorar e repetir certos conteúdos. O sistema não é formativo e está muito condicionado pela competição para a universidade – o que determina o conteúdo dos cursos. Os cursos considerados melhores no ensino médio são aqueles que preparam melhor para os vestibulares mais competitivos. Essa formação não é muito adequada.

Quais são os outros problemas que esse modelo único traz?
Por exemplo: a quantidade de cursos que os alunos têm de fazer – um pouquinho de química, um pouquinho de física, um pouquinho de filosofia, um pouquinho de história – no final, ele não aprende nada. Outro problema: o curso é um ritual de repetições. O aluno precisa ser capaz de papaguear o que está escrito no livro. Em poucos casos isso se transforma realmente em uma aprendizagem. No modelo britânico, por exemplo, há o A-level. O aluno escolhe três temas e trabalha neles: ele se prepara durante o ensino médio naqueles conteúdos que escolheu. Digamos, matemática, química e inglês; ele vai se aprofundar, tem a oportunidade de tomar conhecimento daquilo lendo e discutindo; no processo de aprofundamento, o aluno tem a possibilidade de ganhar competência, de ganhar capacidade. O ensino médio norte-americano é desigual; há coisas boas e coisas ruins. O britânico é melhor. O sistema francês também é bom, embora, para o meu gosto, seja um pouco rígido. O nosso é uma tentativa ruim de copiar o sistema francês. Se a cópia fosse benfeita, o aluno teria uma boa iniciação à ciência, receberia boa educação de bons professores de matemática, de física. Mesmo assim, hoje em dia, em que os campos de conhecimento são muito vastos, não se pode esperar que a pessoa aprenda tudo. Aprender alguns teoremas de física ajuda a pessoa em alguma coisa? Ela não aprende física moderna, pois a matemática no ensino médio não é suficiente; para que serve isso então? Se o aluno realmente for fazer uma carreira tecnológica, precisará se aprofundar mais; se vai fazer uma carreira em direito, não precisará daquilo. Pode-se argumentar que qualquer pessoa hoje em dia precisa saber matemática. Acredito que as pessoas tenham de entender as questões da ciência e da tecnologia – porque são importantes, porque têm um papel na sociedade moderna. Mas aprender as fórmulas da química, os modelos matemáticos da física, não sei se ajuda. É necessário dar opções às pessoas. Dadas as opções, o aluno tem condições de se aprofundar em áreas mais delimitadas. A Lei de Diretrizes e Bases inclui essa concepção de dar alternativas. Mas, na prática brasileira, o que vem acontecendo é colocar mais matérias obrigatórias – filosofia, sociologia... –, o que vai matando a ideia da flexibilidade.

O senhor mencionou antes que a competição para a universidade é um problema para o ensino médio...
Sim. Em áreas como medicina e engenharia o vestibular é feito para eliminar pessoas e, por isso, exige um conhecimento muito detalhado – o que funciona na seleção. Mas, se o curso médio é todo montado para formar pessoas para o vestibular, há prejuízo para aqueles que não pretendem prestar vestibular. Outro problema que se soma aos anteriores é o fato de não termos professores devidamente formados para dar esses conteúdos. Se o professor não tem a capacidade de entender o assunto, não há jeito de o aluno aprender. É necessário apoiar o professor da melhor maneira possível. À medida que avança no ensino médio, o aluno precisa cada vez mais de professores que conheçam seu assunto e tenham paixão, interesse, motivação pelos conteúdos que estão lecionando. Temos um problema sério de recrutamento de professores nesses níveis. Há falta de professores bem formados; as universidades públicas não têm interesse em formar professores, elas desvalorizam a formação do professor. A atividade de professor de ensino médio se tornou uma opção para quem não conseguiu outra coisa, o que cria um professor desmotivado e mal formado. Há mesmo carência de professores.

Quais soluções haveria para a carência de professores?
É preciso abrir a carreira do professor do ensino médio. Um jovem estudante de medicina quer ser médico, não quer ser professor; mas será que ele não quer dar aula de biologia e ganhar um dinheiro extra durante o curso?
O ex-governador de São Paulo José Serra propôs isso, uns dois anos atrás, à Secretaria Estadual de Educação, pensando em alunos de engenharia.
Há quem fique nervoso com isso... Para ensinar matemática ou física, na verdade esse é um caminho muito interessante. Pode-se perguntar se esse estudante vai ter a necessária didática. Mas não há nenhuma garantia de que os cursos de didática hoje requeridos nos programas de licenciatura realmente preparam os futuros professores para a sala de aula. Se o estudante gostar da matéria, se tiver um bom livro para seguir, se o material estiver preparado, os conhecimentos de didática podem ser ensinados de forma prática, sob a supervisão de um professor mais antigo, e esses jovens podem se sair bem. Além disso, um professor jovem pode se tornar, para os estudantes, um “role model”, um modelo de atitude e envolvimento com o trabalho intelectual que os estudantes podem querer tomar para si; isso é tão ou mais importante que a transmissão do conhecimento. Pode acontecer de o jovem professor se interessar de tal maneira pela carreira docente que desista de fazer medicina ou biologia; ou que passe quatro anos lecionando e depois continue sua carreira de médico; outra pessoa virá dar aula no lugar dele. Essa abertura do sistema de recrutamento pode ser muito importante para melhorar a qualidade do professor que entra no ensino médio. Hoje, o que temos são, muitas vezes, pessoas que fizeram seus cursos em uma faculdade de má qualidade, que não conseguiram outra coisa, que não aprenderam direito aquilo que vão lecionar e que estão frustrados, esmagados pelo que estão fazendo – não se pode ir longe com isso. Temos um problema com o professor, que é sério e tem a ver com a carreira docente. Além disso, há a forma como o currículo está organizado.

Voltando à questão da diversificação...
Há dois modelos no mundo. O europeu, tradicional, cria escolas diferentes. A legislação dos anos 1930, do Gustavo Capanema [ministro da Educação de 1934 a 1945, na gestão de Getúlio Vargas. N. da E.], falava em ensino industrial, ensino técnico, ensino agrícola e ensino secundário. Era a ideia tradicional, europeia, daqueles anos: o filho do operário vai fazer ensino técnico; o filho da classe média, da burguesia, vai fazer ensino acadêmico. Os alemães tiveram esse sistema funcionando bem durante muito tempo; quem cursava o ensino técnico se tornava um trabalhador especializado muito competente, embora não tivesse acesso à universidade. Hoje, o modelo europeu tem problemas de dois tipos. Primeiro, o tipo de formação do ensino técnico não é mais aquele formação baseado na divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual; a dicotomia está desaparecendo com a automação, com a informática. Além disso, há um aspecto de imobilidade social muito complicado – o sistema decide, aos 12 anos de idade, que vida o menino vai viver, que lugar ocupará na sociedade. A principal virtude do ensino profissional, no caso europeu, é que ele está fortemente vinculado ao setor produtivo e às tradições das corporações de ofício, no sistema do mestre e do aprendiz. O jovem vai para a fábrica, trabalha sob a orientação de um mestre de ofício, ao mesmo tempo em que completa alguns cursos na escola. Os conhecimentos de tipo técnico e científico não são ensinados de forma teórica, mas sobretudo no chão da fábrica. Se o sistema se desliga do setor produtivo, não há nem uma coisa nem outra. O problema da maioria das escolas técnicas no Brasil é que elas ficam em uma espécie de vazio: não têm o conteúdo acadêmico e também não têm o conteúdo profissional adequado. Os bons exemplos de ensino profissional são aqueles em que há uma ponte mais firme entre o ensino, as empresas e a atividade produtiva. Existem exemplos interessantes de escolas agrícolas em que o aluno trabalha no campo; outros em que há relações com a indústria e os alunos têm contato com ela. O Centro Paula Souza faz isso bem em São Paulo; mas isso é restrito. Seria bom se tivéssemos no sistema mais escolas técnicas fortemente vinculadas ao setor produtivo.

Qual é o outro modelo?
É o modelo mais norte-americano, que os alemães também estão tentando – a Gesamthochschule alemã. É uma escola integrada, compreensiva, frequentada por diferentes tipos de estudantes; dentro da escola há oferta de alternativas de formação. Com isso, o estigma diminui e se permite ao aluno fazer programas diferentes e ajustáveis às suas perspectivas e possibilidades. Há vários níveis de matemática; o aluno que faz uma matemática mais exigente poderá se candidatar a um curso de engenharia, por exemplo; quem faz Matemática I não poderá. Dessa forma, o aluno tem opções, alternativas de formação. Não é simples, no entanto, a mesma escola ser capaz de fazer bem coisas diferentes. É complicado – esses diferentes tipos de ensino têm culturas muito diferentes. Não há uma solução óbvia. O Brasil teve uma experiência, no passado, de exigir que todos tivessem uma formação tecnológica, profissional, ao final do ensino médio. Esse foi um projeto fracassado da ditadura. A ideia não era ruim, mas se tornou mais uma obrigação burocrática para a escola.

O ensino médio deve ter terminalidade?
Não penso que todos tenham de sair do ensino médio com uma profissão. O mercado de trabalho muitas vezes não exige uma profissão técnica específica. Boa parte das ocupações exige competências genéricas – vendedor, por exemplo: ele precisa saber falar, escrever e ler; são competências genéricas de ensino médio. Não é trivial falar e ler direito, isso exige pelo menos oito anos de escola; mas não é uma competência específica. É muito útil dominar ferramentas de informática. Não há necessidade de um ensino especializado, totalmente técnico; para fazer uma especialização benfeita, seria necessária uma ponte com o mercado – por isso o ensino técnico não pode crescer muito, pelo fato de não haver muitas parcerias desse tipo a ser feitas. Na medida em que parcerias puderem ser feitas, devem ser feitas. Dar alternativas às pessoas no ensino médio evidentemente tem impacto no ensino superior. Se o aluno quiser continuar, a formação que teve abrirá a possibilidade de ele fazer algumas coisas e não outras. O ensino superior também tem de se diversificar para atender um público diferenciado – uma característica presente em todos os países em que o ensino superior se massificou. Esse modelo de ensino superior muito acadêmico, de padrões acadêmicos altos para todo mundo, é um modelo tradicional elitista, de quando 5% da população cursava o ensino superior. Quando se busca ter 20%, 30%, 50% da população no ensino superior, é necessário um ensino superior muito diversificado. Diferentemente de 40, 50 anos atrás, espera-se, por exemplo, que as jovens façam uma faculdade; há uma pressão geracional, todo mundo vai para a faculdade... Tem de haver um leque de opções. É difícil fazer essa transição de uma concepção de educação muito elitista para uma educação mais ampla, que pode atender a uma população diferenciada. Temos uma situação em que o País massificou boa parte do ensino médio e superior, mas seu formato ainda é elitista e tradicional. O ensino médio já é bastante grande no Brasil – as pessoas demoram para completar, mas quase 60% da população termina o ensino médio, ainda que se termine mais tarde, que se leve mais tempo. Não alcançamos ainda 100% de cobertura no ensino médio como deveríamos. Mas houve um crescimento muito grande nos anos 1990, que agora estagnou. A cobertura do ensino superior ainda é pequena se comparada à de outros países, mas, com quase 6 milhões de estudantes nesse nível, já é um sistema massificado, muito diferente de 20 ou 30 anos atrás.

Sem concluir o ensino médio as pessoas conseguem se empregar?
O mercado de trabalho está muito exigente em relação ao ensino médio, tem mais dificuldade de conseguir emprego quem chegou perto de concluir o ensino médio e não concluiu. Quem não tem qualificação nenhuma aceita trabalho não qualificado. Quem tem uma qualificação mais ou menos quer um emprego melhor – e não consegue. Esse é o grupo mais afetado pelo desemprego.

Há muita evasão no ensino médio – 3,6 milhões ingressam nele, 1,8 milhão concluem. É uma situação de fracasso. Fala-se no desinteresse dos jovens; e o senhor menciona uma inadequação do currículo.
O fracasso reflete a incapacidade da escola de dar ao aluno uma educação significativa. Seja por colocar um programa inacessível, seja pelo fato de o programa estar desligado do mundo real do estudante. Por um lado, a escola não motiva; por outro, existem pressões, como a necessidade de trabalhar – à medida que o tempo vai passando, ela vai ficando mais aguda: aos 13, 14 anos, essa pressão não é tão importante como aos 18. Há outras razões para o abandono. Uma delas: boa parte do ensino médio é oferecida à noite. Quando o aluno trabalha, é uma necessidade, mas às vezes o problema não é do aluno, é da escola, cujo prédio, durante o dia, está ocupado com o ensino fundamental. Nos cursos noturnos, o aluno está mais cansado, chega mais tarde e sai mais cedo. Há um esvaziamento da escola, cada vez mais ela é um ritual a ser completado para ter um papel, que às vezes fica inacessível. Isso gera uma situação de desalento.

Há crise no ensino médio de outros países?
Lembro de um seminário em Oxford a respeito de um livro meu sobre a educação no Brasil. Um brasileiro fez uma apresentação muito deprimente sobre a educação no Brasil. O professor inglês que era um dos organizadores do seminário fez a seguinte observação: “Não se preocupe, a educação é ruim no mundo inteiro”. Problemas, temos em toda parte – há dificuldades na Europa, por exemplo, sobre como sair do sistema dual para um sistema mais abrangente; nos EUA, o ensino médio é visto como muito desigual. Existem high schools dedicadas a preparar alunos para as universidades, outras dedicadas à formação técnica (“vocational”), mas a maioria são escolas de educação geral, que oferecem cursos preparatórios para a universidade para estudantes mais avançados, cursos de formação geral para estudantes de desempenho médio e cursos de recuperação para os que estão em situação pior. Os estudantes podem combinar diferentes tipos de curso conforme suas habilidades e seus interesses. A ideia de reprovar o estudante não existe, os alunos avançam conforme as condições de cada um, e com isso a evasão é bem menor. Em todo o mundo há problemas – o que não nos exime de enfrentar os nossos.

Por onde o senhor começaria?
Tentaria simplificar o currículo, para que fique mais relevante e apresente mais opções; e melhoraria a qualidade do professor. É preciso recrutar professores melhores.

Ensino médio é um problema dos estados. Como o governo federal pode influir?
A capacidade do governo federal de influir não é alta. Ele tem poucas escolas – as escolas técnicas, que são boas, mas são poucas e caras, e que agora estão virando universidades... O governo federal pode influir criando modelos, standards, criando legislação mais adequada; pode também criar programas de incentivo para aspectos específicos. A gestão da escola não pode ser federal, para que cada escola tenha a maior autonomia possível. Podem-se criar sistemas de incentivos de diferentes tipos e criar uma legislação menos opressora do ponto de vista do currículo, dos conteúdos.
O Enem é boa política?
Sim. Antes do Enem havia uma situação em que não se sabia o que significava ter um diploma de ensino médio. O Enem foi uma tentativa de estabelecer um padrão de referência. Pode-se criticá-lo – há tantos problemas no Enem atual quanto no anterior. Mas a ideia de haver padrões claros de referência é o importante. Não importa onde o aluno cursou o ensino médio; é preciso saber que qualificações adquiriu. Isso requer um tipo de avaliação externa como o Enem.

Nesse sentido, o Enem normatiza.
Isso, é uma referência. Mas, de novo, se a referência for única, mata a diversificação. É preciso criar uma gama de alternativas, todas com avaliações também independentes, também externas, mas não únicas. A França tem o baccalaureat, a Alemanha tem o Abitur, a Grã-Bretanha tem o A-level. No caso deles, não é uma prova só; os examinadores externos vêm à escola, são avaliações mais ricas e qualitativas. Na França, além do baccalaureat tradicional, há outros tipos de qualificação, quatro ou cinco diferentes, e o aluno pode se preparar para um deles. Na Grã-Bretanha o aluno escolhe os A-levels que quer fazer. Seja qual for a escolha – e a escola pode optar entre preparar alunos para uma ou para outra –, isso dá uma certificação, uma referência, o que facilita também a seleção dos alunos pela universidade – quando ela recebe o aluno, pode levar em consideração o que ele aprendeu na escola.

O senhor mencionou uma mudança no Enem. Hoje ele enfatiza mais a avaliação do conteúdo do ensino médio; isso é correto?
Sim, é importante. Se o Enem avaliar só as competências, em vez de também avaliar o conteúdo, acabará se tornando em boa parte um exame de língua – um aluno capaz de ler e pensar mais agilmente se sairá bem. Para matemática, precisaria ter um pouco de conhecimento; no mais, se pensar um pouco mais inteligentemente, com mais informação, irá bem. Isso está fortemente ligado à posição econômica da família; por isso, não dá à escola nenhuma responsabilidade por aquilo que ela tem de ensinar. Se o Enem avaliar se o aluno conhece ou não história do Brasil, geografia etc., cria-se uma obrigação para a escola. Claro que há o risco de incentivar a decoreba – mas é possível também avaliar o conhecimento de conteúdos sem exigir a memorização. Por exemplo, pode-se pedir ao aluno que resolva um problema de matemática ou mostre entender alguns episódios importantes da história contemporânea sem que tenha de decorar fórmulas ou fatos, mas faça uso de conceitos aprendidos na escola. A escola fica então com a responsabilidade de ensinar alguns conceitos básicos de várias áreas do conhecimento. A questão que se coloca aí é se a prova está benfeita. Ao mesmo tempo, não há por que ter preconceito contra a memorização – um aluno que termina o ensino médio deve saber quais são as capitais dos estados brasileiros, quem foram os presidentes da República nos últimos 30 anos, quais são os principais produtos que o Brasil exporta e quais países participaram de que lado na 2ª Guerra Mundial, por exemplo. O problema do Enem é exigir que todos os alunos façam a prova toda. O exame tem três partes, três áreas diferentes; as universidades podem dar pesos diferentes às diferentes partes. Mas isso não basta. É preciso que o aluno possa dizer: vou fazer a parte tecnológica, não a parte humanística ou a área biológica. Isso não existe ainda; penso que deveria existir. A ideia de criar standards externos de referência é boa. Os norte-americanos têm o SAT [Scholastic Aptitude Test, ou Scholastic Assessment Test, usado pelas universidades dos EUA como um dos critérios de admissão. N. da E.], que é uma prova similar ao Enem; os europeus fazem diferente: são exames longos, que podem ter prova oral, muito mais ricos de conteúdo. É muito mais difícil operar exames assim. É mais fácil fazer uma boa prova centralizada para milhões de pessoas. Não sei se se pode aspirar a um modelo europeu, pois não temos toda essa estrutura de professores avaliadores; o modelo norte-americano me parece mais apropriado também nesse sentido.

É possível melhorar o ensino médio sem melhorar o fundamental?
Cada problema é um problema. No ensino fundamental, o problema é o analfabetismo funcional: muitos alunos chegam ao final do ensino fundamental sem conseguir ler. É difícil lidar com esse aluno no ensino médio. Por isso, a diversificação é importante – se todos os alunos chegassem bem à 8ª série do ensino fundamental, poderíamos pensar que seria adequado para eles mais três anos de formação geral – aprender literatura, matemática, biologia, filosofia. Seria muito bom. Em um país nórdico, com educação homogeneamente muito boa, como a Finlândia, por exemplo, um ensino médio bastante amplo é adequado. Mas aqui as escolas recebem alunos com muita diferença de formação. O que fazer com um jovem de 14 ou 15 anos que terminou mal o ensino fundamental – que lê pouco, que não sabe matemática? O que fazer com ele no ensino médio? Ou a escola tenta recuperar no ensino médio o que ele não adquiriu antes – o que é possivelmente muito difícil –, ou tenta dar a ele uma educação a partir do que ele tem. Em vez de aprender um teorema, fará um trabalho prático em que o professor pode mostrar a ele a matemática que está ali. É preciso ir pela via mais prática. O famoso Heckman, Prêmio Nobel de Economia [o norte-americano James Heckman, premiado em 2000. N. da E.], tem escrito muito sobre educação infantil; ele mostra que muito da capacidade de aprender das pessoas se define muito cedo – até os 4, 5 anos de idade; se alguém chegou aos 6, 7 anos sem isso, estará prejudicado pelo resto da vida. Há muitas evidências nesse sentido. Mas Heckman também mostra que, além dos conteúdos cognitivos, há outras dimensões da educação que têm a ver com o trabalho de grupo, com atitudes, com comportamento, e que também são muito importantes. As escolas também precisam dar essa educação. No Brasil, temos de ir trabalhando enquanto o trem está correndo; não é possível parar o trem. O jovem que está terminando o ensino fundamental aos 15 anos de idade, que não teve educação infantil de boa qualidade – às vezes já está prejudicado na origem e passou por um ensino fundamental ruim –, o que fazer com ele? Devemos dar a ele uma educação que ele tenha condições de aproveitar, onde ele puder aproveitar. Ele pode adquirir essas competências do trabalho em grupo, pode aprender tarefas mais técnicas, que serão úteis para ele. Mas ele provavelmente não vai aprender matemática abstrata, não vai demonstrar teoremas.

Há alguma iniciativa interessante em implantação no ensino médio?
É difícil resolver essas questões centralizadamente. Diferentes municipalidades, diferentes escolas privadas vão experimentando, tomando iniciativas e achando caminhos. Não penso que evoluiremos para um sistema à francesa, em que todas as escolas ensinam as mesmas coisas à mesma hora. Esse não é o nosso mundo. O nosso mundo é o da diversidade, das iniciativas locais. Ao governo federal cabe dar estímulo, ajudar a levantar as questões, oferecer padrões, colocar os problemas, dar materiais, apoio. E deixar a sociedade encontrar os caminhos. Alguns municípios vão à frente, escolas privadas vão à frente, um vai copiando o outro – esse é o nosso mundo.

Como o senhor descreve o quadro do ensino superior brasileiro hoje?
No Brasil, há um pequeno setor de padrão alto – parte das instituições públicas e parte das privadas –, menor, mas que existe; e um setor grande do sistema de má qualidade, público e privado, muito orientado para se obter um diploma, que o mercado ainda valoriza, independentemente do conteúdo. O setor público não consegue avançar muito, quase todo o crescimento do ensino superior vem do setor privado, que detém quase 80% das matrículas. O setor público é caro, rígido, burocratizado, controlado por grupos de interesse. Nele ninguém tem coragem de mexer. Há coisas boas e ruins nele. Dentro das mesmas universidades existem cursos mais voltados para a pesquisa e a formação de profissional de alto nível, e outros que não vão além do ensino e de qualidade nem sempre muito boa. No setor privado a pesquisa praticamente não existe e predominam os cursos das chamadas “profissões sociais” – administração, contabilidade, economia, direito –, que na prática dão algo de formação geral nas ciências sociais (a grande maioria dos formados em direito jamais consegue passar nos exames da OAB e não exerce a profissão). O ensino superior tecnológico, ou seja, de dois anos de duração, orientado mais diretamente para o mercado de trabalho, que poderia ser uma alternativa para muita gente, quase não existe, e o que existe está sobretudo no setor privado.

O senhor disse que o ensino público superior não avança. Como analisa a expansão recente do número de universidades federais?
Nesse assunto, há vários problemas diferentes. Um problema é o custo alto dessas instituições. Quando uma universidade federal é criada, cria-se imediatamente um quadro de funcionários regidos pelo Regime Jurídico Único – as pessoas são contratadas com níveis salariais de tempo integral, que predominam no ensino superior, cria-se a burocracia, nomeia-se reitor, vice-reitor etc. Resulta em um custo por aluno muito alto e que não necessariamente leva a um produto de boa qualidade do ponto de vista educacional – pois os salários que se pagam no Brasil no ensino superior público supõem que o professor seja um pesquisador dedicado integralmente ao ensino e à pesquisa, quando, de fato, isso não ocorre, e esse tipo de contratação acaba afastando os professores da sua atividade profissional. A melhor opção seria ter uma política muito mais exigente de contratações de professores de tempo integral e contratar em tempo parcial profissionais qualificados que sejam ativos em suas profissões e possam trazer para os alunos sua experiência prática de trabalho. Quando são criadas instituições federais em qualquer lugar, o risco é recrutar pessoas muito apressadamente, sem conhecê-las direito. Como o sistema é rígido, são pessoas que nunca mais poderão ser demitidas, nunca mais se poderá mexer no salário delas. Caem na rigidez institucional, que é a lógica das instituições públicas no Brasil. Não sei se faz sentido investir em criar instituições que padecem dos mesmos vícios da maior parte das instituições públicas. O que se sabe das novas universidades é que elas funcionam mal, com muito abandono pelos estudantes. Sem dúvida há um papel do governo federal e dos governos estaduais de apoiar e dar condições de educação superior a quem não pode pagar. Esse papel pode ser cumprido de várias maneiras – o Prouni é um exemplo de investimento mais barato em educação, que utiliza a rede do ensino privado. Poderíamos ter modelos diferentes de organização do ensino público que fossem menos rígidos e menos burocráticos. Ainda não temos. Algumas dessas instituições que estão nascendo agora podem vir a se consolidar; não se sabe, pois elas estão começando. Outro problema é não existir uma justificativa clara para essas instituições. Se uma instituição está sendo criada em certo lugar, deveria existir um projeto para ela – que esclarecesse seus objetivos, sua concepção fundamental. Se existe, é muito superficial. Ao se criar por criar uma instituição, o que se faz é simplesmente criar emprego para mais gente no serviço público federal; não sei se é o melhor investimento que o País poderia fazer.

Do ponto de vista do desenvolvimento do Brasil, o que o senhor considera desejável para o ensino médio?
O ensino médio tem a função principal de criar pessoas capazes de tomar caminhos diferentes – por isso a necessidade de diversificação. Um fenômeno atual no Brasil é as empresas se queixarem de não encontrar funcionários, e as pessoas no mercado de trabalho de não encontrarem trabalho. Há um desencontro; ele vem porque as escolas não formam as pessoas com as habilidades desejadas pelas empresas; e as empresas, por sua vez, tendem a ficar passivas, esperando as pessoas chegarem, sem se envolverem também no trabalho de formação – à exceção de algumas entre as maiores delas. Seria esperado que o setor produtivo fizesse mais parcerias na área do ensino técnico, do ensino profissional. Isso ainda se desenvolveu muito pouco no Brasil. Há grande falta de quadros intermediários no País, gente que saiba operar uma máquina, um equipamento. Há aqueles que não sabem nada e aqueles que querem ser doutores. A função do ensino médio é formar todo tipo de gente; os que operam máquinas, por exemplo. Ele tem também a função de capacitar para o ensino superior – é um leque de alternativas.

É possível o Brasil pensar em ter, daqui a dez anos, 20% das pessoas entre 18 e 24 anos no ensino superior?
Só quando se resolver o grande estrangulamento, que está no ensino médio. O número de vagas no ensino superior é maior que o número de formados no ensino médio. Ainda que essas vagas no ensino superior sejam apenas teóricas, autorizações dadas pelo governo federal que a instituição pode vir a usar, não existe a cadeira vazia na sala de aula. Se aparecer o estudante, eles botam a cadeira. De qualquer maneira, o ponto de estrangulamento do ensino superior é o ensino médio. Não adianta forçar a expansão do ensino superior se o ensino médio não formar gente.

Em sua opinião, para o bom desenvolvimento do ensino superior brasileiro é desejável que o governo organize um programa para o País ter algumas universidades de classe mundial?
O Brasil vem diminuindo o investimento em estudo no exterior. Já demos mais bolsas para o exterior que atualmente; há uma concepção, a meu ver perigosa, de que não precisamos mais do exterior. Estamos cada vez menos internacionalizados. Ao contrário, há um processo de “provincianização” do ensino superior. O avanço muito grande que tivemos na pós-graduação nos levou, hoje em dia, a uma situação paradoxal. Veja um caso: dois dos melhores programas de pós-graduação em economia no Brasil estão na PUC e na Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro. Esses dois programas são tão bons que os melhores alunos do mestrado ingressam nas melhores universidades americanas – Chicago, Princeton, MIT etc. Por isso, eles formam poucos doutores. Resultado: ambos os programas foram rebaixados pela Capes: tinham nota 7, agora têm nota 5. Foram rebaixados porque não formam doutores. É interessante. Pode-se discutir a orientação de ambos os programas; mas a GV e a PUC são duas das poucas instituições no Brasil que formam economistas no mais alto padrão internacional. Ambas têm forte vinculação internacional; e foram rebaixadas. Países como a Coreia do Sul, por exemplo, que também desenvolveram seus programas de pós-graduação, hoje mandam mais gente para fora. Claro que é preciso criar as condições de receber as pessoas de volta. Uma vez escrevi um artigo sobre o porquê de a USP não ser uma instituição de padrão internacional, que ela teria condições de ser; mas teria de fazer desse objetivo uma prioridade. Algum tempo atrás, houve uma decisão na USP de exigir que todas as teses fossem apresentadas em português; mas não se pode ser uma instituição de padrão internacional sem aceitar teses em inglês. Outra coisa interessante no Brasil é que não há incentivo para receber estudantes internacionais. Se houvesse uma instituição com um programa forte de atrair estudantes da América Latina, o resultado poderia ser muito interessante, muito importante para o Brasil – politicamente, intelectualmente. (A Universidade Federal da Integração Latino-Americana, Unila, que está sendo criada em Foz do Iguaçu, dificilmente terá esse papel porque é ideológica e não tem um projeto acadêmico consistente). Por que a USP não faz isso? Uma das razões é que ela não pode cobrar – nem de alunos estrangeiros. Como não pode cobrar, os estudantes internacionais acabam sendo uma chateação – não têm onde morar, não sabem falar a língua, precisam se adaptar, não podem vir para o vestibular... Se pagassem, a USP poderia contratar equipes, dar casa aos estudantes de fora, montar um programa de adaptação. O que dá o caráter internacional a uma instituição é o aluno. As instituições norte-americanas, que são as mais internacionais do mundo, têm muitos alunos estrangeiros – chineses, africanos, latino-americanos. Isso cria um ambiente internacional, uma vinculação com o resto do mundo. O Brasil tem muita gente formada no exterior que, quando volta, aos poucos vai perdendo o contato e fica cada vez mais voltado para o próprio País. É um problema, porque com isso vamos nos isolando.

No momento em que a tendência à internacionalização é cada vez mais forte e mais valorizada...
A política da Capes e do CNPq é, hoje em dia, muito rígida em relação ao bolsista voltar ao Brasil. Está bem: o País gastou um bom dinheiro com o aluno, ele não pode simplesmente ir embora sem dar satisfações. Mas veja uma situação que já presenciei: o aluno terminou o doutorado no exterior; a universidade oferece a possibilidade de ele ficar mais um ano e fazer um pós-doutorado; ele pede licença à Capes. O que acontece? A Capes diz que não e não permite que ele renove o visto de intercâmbio. É muito rígido. Claro que existe o risco de ele ficar lá; mas isso se combate com a criação de condições atraentes aqui. Não adianta formar a pessoa no exterior, exigir que ela volte e não dar condições adequadas para o trabalho dela aqui. A ideia de que não precisamos mais do exterior é perigosa.