01/05/2010

Entrevista

Luiz Davidovich

O ensino superior está fora do horizonte dos jovens. Esse é o gargalo brasileiro

Concentrada em temas de óptica e informação quânticas, a lista de publicações do cientista Luiz davidovich testemunha a relevância de sua atividade de pesquisador e professor. ao lado disso, especialmente a partir do início do governo Lula, Luiz davidovich vem desempenhando um papel mais evidente no debate dos temas relacionados à ciência e tecnologia no Brasil. em 2003, davidovich foi convocado pelo presidente da academia Brasileira de ciências a coordenar o grupo de trabalho formado pela entidade para subsidiar o governo federal na preparação de uma reforma universitária que, muito combatida, acabou sendo deixada de lado na gestão do ministro tarso Genro e não retomada pela equipe de Fernando haddad. desde então, o físico ganhou lugar relevante nas discussões sobre como transformar o ensino superior brasileiro em ferramenta ainda mais decisiva para o desenvolvimento do país.  

O grupo de trabalho da aBc terminou por produzir um documento, subsídios para a reforma do ensino superior; a partir dele, e de outros, preliminares, a aBc participou e – no entendimento de davidovich – influiu nos rumos que o Ministério da educação imprimiu ao assunto nos anos recentes. para o professor titular da uFrJ, as universidades federais criadas nos últimos anos trazem a marca das propostas do documento. Nesta entrevista, concedida em janeiro de 2010 à jornalista Mônica teixeira, é principalmente contra a especialização excessiva e a favor da diversificação do ensino superior que se bate davidovich. Leia:  

Em quais circunstâncias foi elaborado o documento Subsídios para a Reforma do Ensino Superior?
Em 2003 havia a notícia de que o governo estaria interessado em fazer uma reforma universitária. A Academia Brasileira de Ciências resolveu então se antecipar e começar a discutir a questão. Logo depois da eleição, em que fui eleito membro da diretoria, o presidente, professor [Eduardo] Krieger, me encarregou do assunto. Quando, antes das eleições, perguntei a colegas se ser membro da diretoria daria muito trabalho, a resposta foi: “Não, é coisa simples, uma reunião de vez em quando...”. Entendi mais tarde que a pergunta era inadequada – pois a resposta é sempre a mesma. O fato é que, a partir desse momento em que o Krieger me encarregou da educação superior, minha vida mudou. Pro-pus e a diretoria aceitou que se formasse na ABC um grupo de trabalho para discutir a questão e elaborar um documento. Esse grupo foi coordenado por mim; fizeram parte dele os professores Alaor Silvério Chaves (UFMG), Carlos Alberto Aragão de Carvalho Filho (UFRJ), Francisco César de Sá Barreto (UFMG), Gilberto Cardoso Alves Velho (UFRJ), João Alziro Herz da Jornada (UFRGS e Inmetro), Luiz Bevilacqua (LNCC), Moysés Nussenzveig (UFRJ) e Ri-cardo Gattass (UFRJ e Finep). Começamos os trabalhos, fizemos reuniões preliminares, elaboramos documentos preliminares sobre a reforma. Desde o início, pensávamos que dar o título ao documento de reforma universitária não era o mais apropriado – de fato, deveríamos pensar em educação superior, um tema muito mais amplo.  

Havia a ideia de que “educação superior” não é idêntico a “universidade”?
No grupo de trabalho, sim, embora o governo falasse em reforma das universidades. Antes da finalização do documento, o então ministro da Educação, Tarso Genro, veio à Academia com assessores. Expusemos ao ministro as principais linhas do documento e ele demonstrou interesse. Discutimos muito, em particular a questão das cotas raciais – a Academia é frontalmente contrária a cotas raciais, embora seja favorável a um sistema que tenha preocupação social, nos moldes, por exemplo, do que faz a Unicamp, atribuindo um bônus a estudantes oriundos de escolas públicas. Ele gostou de várias das propostas; esse foi um momento importante do debate sobre a reforma da educação superior. Participamos também de várias reuniões promovidas pelo MEC com representantes de setores associados à educação superior – instituições privadas, universidades públicas, escolas técnicas federais, União Nacional dos Estudantes, Andes [Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior], funcionários – para elaborar a proposta do governo. Nesses debates houve participação intensa de todos os setores, em particular da ABC [Academia Brasileira de Ciências] e da SBPC [Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência]. O professor Enio Candotti representava a SBPC e eu representava a Academia; entre ambas as entidades havia acordo sobre várias questões, o que foi muito útil. Um levantava um problema, o outro apoiava, aprofundava a discussão. Conseguimos levantar pontos importantes e influenciar. No início, a discussão centrava-se muito na estrutura de poder das universidades – digo universidades porque a sensibilidade em relação à amplitude maior da questão era muito pequena naquele momento. Falava-se muito de reforma universitária e muito pouco de educação superior. O que havia eram questões sobre como os reitores deveriam ser escolhidos – diretamente ou não, que proporção de estudantes e funcionários, etc. Levantamos a seguinte questão preliminar: como discutir a estrutura de poder na universidade antes de discutir o objetivo das instituições de educação superior? A estrutura de poder visa a satisfazer esses objetivos; e os objetivos devem ser colocados pela sociedade como um todo, e não apenas pelos membros das instituições de educação superior.  

E quem participava das discussões eram somente pessoas ligadas a elas?
Isso. Considerávamos muito mais importante discutir essa outra questão. Em particular, atentar para o fato de que a estrutura programática, curricular, das nossas instituições de educação superior era muito antiga e obsoleta. A última reforma universitária no Brasil havia ocorrido em 1968, na época da ditadura militar – reforma essa com pontos positivos: criou a estrutura departamental, implantou o tempo integral e o apoio à pós-graduação; estávamos discutindo quase 40 anos depois! Mencionei na ocasião uma entrevista do presidente da Universidade Harvard, o economista Larry Summers [presidente de 2001 a 2006. Em março de 2010, era assessor econômico da Casa Branca.], que, na época, comandava uma reforma curricular1. Havia já documentos sobre a reforma de Harvard na internet; a reforma foi no sentido de adiar a especialização até pelo menos a metade do segundo ano, tornar a estrutura dos programas mais interdisciplinar, uma abordagem mais hands on para todos os estudantes. Por exemplo, estudantes da área de ciências sociais fariam estágio no laboratório de biologia. A biologia tem repercussões éticas importantes na saúde, na filosofia, nas ciências sociais. Nessa entrevista, o repórter perguntou se o fato de se fazer a reforma queria dizer que o currículo de Harvard estava ruim. O Summers respondeu: “Não se trata disso. É que toda invenção humana deve ser revista a cada 25 anos, especialmente à luz das transformações trazidas pela ciência e pela globalização”.  

Sim, e as universidades federais já estavam sem reforma havia 35, 36 anos.
Exato – sem reforma, sem nenhuma revisão. Pelo contrário: o que ocorreu desde a reforma de 1968 foi o aumento da especialização prematura, da setorização dos cursos na universidade, a ponto de jovens de 17 anos terem de fazer a opção de carreira já ao se inscreverem no vestibular. Houve um retrocesso, imposto pela própria academia, em relação às ideias que prevaleciam até a década de 50 – exploramos também esse fato, de que o Brasil já tinha uma tradição de discussões muito amplas sobre o objetivo da universidade, que, de uma certa forma, havia se perdido no tempo. Em 1960 houve um simpósio importante, organizado pela SBPC, em que se discutiram quais os objetivos da “nova” universidade brasileira. Um dos ideólogos era o Anísio Teixeira; outro, o Darcy Ribeiro. Em consequência dessa discussão, foi fundada a Universidade de Brasília, que representou um esquema inovador mesmo em nível internacional. Segundo Darcy Ribeiro, tratava-se de criar uma “universidade necessária” para o desenvolvimento do País, integrando ensino e pesquisa e fugindo ao “modelo tradicional de ensinar e cultivar a erudição clássica”. O estudante de engenharia que entrasse na UnB poderia fazer um curso de cinema com o Nelson Pereira dos Santos ou entrar na orquestra do Claudio Santoro. Aquela era uma verdadeira universidade. O retrocesso ao qual me referi foi impulsionado por interesses próprios da comunidade acadêmica, interesses que eu diria corporativos, na direção de uma especialização cada vez maior, a ponto de alunos que ingressam na universidade já cursarem cadeiras específicas das várias áreas. Isso vai na contramão do processo internacional, que já está de novo sendo revisto. Em abril de 2007, a re-vista Nature2, em editorial, afirmou que é necessário rever a universidade americana, no sentido de torná-la mais interdisciplinar. Há também um movimento de renovação na China, eles estão dando um salto imenso em desenvolvimento e precisam de uma nova universidade – uma universidade interdisciplinar. Em artigo disponível na internet, Yang Zhong, professor e vice-presidente da Northeast Normal University3, conta que, na época da economia planejada, o governo colocava os estudantes formados na China em empregos preestabelecidos, o que não é mais possível com as mudanças econômicas em curso. Eles perceberam então que só 50% dos jovens formados na China trabalhavam no que se formaram. Isso está motivando a reforma chinesa, no sentido de que o estudo seja muito mais interdisciplinar, permitindo ao estudante formado uma flexibilidade maior – porque ele não sabe de antemão onde é que vai trabalhar. Essas foram as questões que apresentamos no MEC, naquelas imensas mesas-redondas com participação de vários setores. Por isso defendemos uma estrutura de ciclos para o ensino superior, um ciclo fundamental, mais geral – o que não impede o estudante de adiantar sua formação, se já tiver se decidido –, com um diploma, e depois o ciclo de especialização. Isso permitiria aos estudantes, no ciclo fundamental, conhecer melhor a universidade e as carreiras e tomar uma decisão mais bem fundamentada, quando fizer a opção profissional.  

O documento da ABC aponta também que essa decisão mais bem fundamentada ajudaria a combater uma das ineficiências do sistema atual.
Corrigiria uma ineficiência do sistema – o aluno é formado com alto grau de especialização, são gastos recursos com isso. Mas ele não vai trabalhar naquilo em que se especializou. Há uma tabela do Observatório Universitário4 mostrando o percentual de formados que trabalham na área de formação. Na engenharia, são 35%.

É um desperdício óbvio de recursos. Outro desperdício é o vestibular. Por causa da especialização do vestibular, estudantes muito bons não conseguem entrar na universidade, por se candidatarem a cursos muito concorridos, mais competitivos; enquanto estudantes piores entram na universidade por terem escolhido cursos menos competitivos. Dessa forma, o vestibular joga fora bons alunos. Outra ineficiência que esse tipo de estrutura permite resolver está ligada à questão mais ampla da educação superior. Nos EUA, cerca de metade dos alunos está matriculada nos colleges, de duração curta, dois ou três anos. Lá a estrutura é flexível. Por exemplo, o estudante que se gradua em um college do estado da Califórnia pode entrar no terceiro ano de um curso da Universidade de Berkeley se participar de um processo seletivo. Ele pode seguir uma universidade. Se a universidade se organiza nesses ciclos, essa flexibilidade horizontal fica facilitada. Se tivermos uma universidade que se especializa desde o primeiro semestre, não há flexibilidade possível. Um indivíduo que foi para o college não poderia entrar no terceiro ano dessa universidade por não ter seguido os cursos especializados dados antes.  


Que papel tem o diploma no fim do ciclo mais geral?

Em nossa proposta, o ciclo fundamental tem terminalidade, um diploma. “Bacharelado em Ciência e Tecnologia”, por exemplo, como está sendo feito na Universidade Federal do ABC. Para esse diploma ganhar efetividade é necessário envolver outros ministérios. Com o diploma tem de vir a possibilidade de emprego em instituições como a Petrobras, para citar uma. Empresas importantes, na hora de lançarem concursos, têm de se abrir para isso. É preciso ampliar esse mercado de trabalho de maneira que essas instituições oficiais, governamentais, possam acolher esses jovens. É uma questão de regulamentação, a ser feita. As empresas privadas também têm de se abrir para esse processo. Precisamos seguir a tendência mundial, valorizando mais a competência que o diploma. Esse título universitário, dado por instituições públicas, seria de melhor qualidade que os títulos obtidos por esses jovens depois de quatro, cinco anos, em uma instituição privada com fins lucrativos e de baixíssimo nível – como é o caso da maioria das instituições privadas do Brasil, com honrosas exceções. É estranho que uma parcela da comunidade acadêmica reaja a esse bacharelado de ciência e tecnologia quando, para o estudante, essa alternativa é de muito melhor qualidade – em relação à alternativa à qual se tem acesso hoje. Essas instituições privadas que existem por aí estão cumprindo de maneira perversa o papel dos colleges. Elas dão cursos de ensino superior a 70% da população universitária no País. O que nós gostaríamos? Gostaríamos que esses cursos tivessem qualidade. O poder público tem um papel importante para assegurar essa qualidade, por meio do controle das instituições privadas e da oferta de cursos em instituições estaduais e federais.

Em sua opinião, o controle de qualidade atual é insuficiente?
Certamente é insuficiente. Houve uma forte pressão por vagas no ensino superior, resolvida por meio da autorização de funcionamento de grande número de instituições, sem garantia de qualidade. As consequências políticas desse erro representam alto risco para a evolução da educação superior no Brasil. No momento em que 70% da população universitária está matriculada nessas instituições, elas ganham grande poder político. No Congresso Nacional, essas instituições têm um poder de lobby importante. Considero essa situação anô-mala e prejudicial ao desenvolvimento do País. Nos EUA, apenas 1,5% da população de estudantes no nível superior está em instituições privadas com fins lucrativos. O resto frequenta instituições públicas ou comunitárias – regidas por um conselho comunitário, o chamado Board of Trustees. No documento da ABC está presente a necessidade de um controle de qualidade também para instituições públicas. No caso delas, propusemos a formação de uma “Comissão de Acompanhamento do Desenvolvimento Institucional”, que acompanhasse a autonomia de gestão financeira e definisse os critérios de alocação de recursos às universidades federais em função da avaliação – como já acontece na pós-graduação. A composição dessa comissão envolveria as agências financiadoras e representantes da comunidade científica e tecnológica. Isso traria um certo distanciamento. Atualmente, a distribuição de recursos é feita pelo Conselho de Reitores, seguindo uma matriz que segue índices históricos. Dizíamos, no documento, que a distribuição não pode ser feita pelos próprios interessados; e que não deve ser congelada, deve ter uma evolução que represente a evolução do sistema, o desenvolvimento desejado pela sociedade. O assunto chegou a ser discutido, mas não caminhou.

Qual é a sua avaliação dos resultados do documento da ABC?
Influenciamos o governo. Uma repercussão do que defendemos está no artigo 2º do decreto do Reuni5 [Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais, instituído em abril de 2007]. O primeiro artigo fala na necessidade de aumentar o número de estudantes por professor nas universidades federais; o segundo, da reestruturação dessas universidades. Entre suas diretrizes, o decreto quis estimular novas modalidades de graduação, com currículos flexíveis, preferencialmente não voltadas à profissionalização precoce e especializada, e propiciar a construção de itinerários formativos em contraposição a currículos engessados. Houve uma reação forte da comunidade acadêmica contrária ao decreto; no final, no entanto, praticamente todos os reitores das universidades federais apresentaram propostas. Em um espírito tropical, de acomodação, essas propostas foram apresentadas; não tinham nada a ver com os objetivos inovadores do decreto e foram aprovadas. Perdeu-se ali uma oportunidade de ouro de se reestruturar a universidade federal brasileira. Quando a Universidade Harvard anuncia que vai fazer uma reforma curricular, isso sai no New York Times. A reforma de Harvard influi, contamina outras instituições. Se houvesse um movimento forte das universidades federais, para começar, e das importantes universidades estaduais paulistas, no sentido dessa reestruturação, isso contaminaria as outras instituições.  

A reestruturação proposta pela ABC só incidiria na graduação?
Começa com a graduação. Evita-se a especialização prematura na graduação e procura-se dar uma formação mais geral. Bem, isso afetaria a estrutura departamental.

A atual especialização tem a ver com a estrutura departamental e deve ser revista, certamente. Deve-se pensar em novas estruturas para essas instituições. De fato, o título do editorial da Nature que mencionei antes é “A Universidade do Futuro”; o subtítulo, “O modelo tradicional da universidade de pesquisa norte-americana – baseado na proeminência do departamento unidisciplinar – deve ser flexibilizado e desafiado”. O formato atual baseado na estrutura departamental não é mais adequado para as necessidades do desenvolvimento científico e tecnológico.  

Isso não aparece no documento.
É verdade, deixamos em aberto. Não queríamos precisar a estrutura, para permitir maior liberdade de criação e para não dar a impressão de que temos a receita do bolo – não temos. Por exemplo, na Federal do ABC o escritório de um professor de engenharia fica ao lado do de um professor de filosofia. A estrutura do prédio é feita para facilitar o contato interdisciplinar. Pode funcionar ou não. São experiências a serem acompanhadas.

Mudanças na estrutura departamental, ou mesmo a criação de estruturas ao lado dela, equivalem a mudanças profundas na base do poder estabelecido nas universidades. Como lidar com essa dificuldade?
É muito difícil mudar as instituições já existentes. Para as novas, tudo é possível. Estruturas diferentes estão sendo testadas internacionalmente, com resultados positivos. Aqui, também: nas novas universidades do Vale do Jequitinhonha há ciclos de formação. À medida que o modelo se propague podem resultar efeitos benéficos. Nas instituições existentes, reconheço, é muito difícil. O Reuni tentou fazer isso. Vimos no que deu: forte reação da comunidade; depois, a composição, com a concessão de recursos para instituições que não estavam inovando. Prometiam cumprir o primeiro artigo do decreto, que era aumentar a quantidade de estudantes. É uma coisa curiosa, muito “viva os trópicos” – nesse processo,

o segundo artigo, que preconiza maior mobilidade para os estudantes e revisão da estrutura acadêmica, foi separado do primeiro, eles que seriam inseparáveis pela própria natureza. Como aumentar o número de estudantes por professor – como pede o artigo primeiro – mantendo-se a qualidade da instituição com a estrutura atual? Como acomodar mais e mais alunos entrando na universidade com a estrutura de especialização atual? É impossível. Como conciliar cursos especializados com aumento da relação aluno/professor? Para acomodar mais alunos, mantendo a especialização atual, os cursos vão ter de se multiplicar; e, para isso, contratar mais e mais professores. Nos outros países, os departamentos de física, por exemplo, têm em torno de 30 professores, que dão conta de todo o ensino da universidade. Esse é o número na Universidade de Berkeley; um número estável há anos.

Que relação há entre essa resistência da academia e o número de doutores que o País vem formando?
Alguns setores acadêmicos argumentam que precisamos empregar os doutores que formamos. É verdade. Precisamos dos doutores, mas não necessariamente na universidade – é a estrutura industrial do Brasil que não cria empregos para os doutores. Precisamos mudar isso.  

O documento também recomenda a diversificação das instituições de ensino superior. No entanto, a política à qual as autoridades do MEC demonstram mais atenção é a criação de 17 novas universidades federais.
É verdade. Precisamos de mais universidades, mas temos também de diversificar
o sistema. Há uma iniciativa do MEC que vai na direção da diversificação, embora não seja exatamente o que propusemos: os institutos federais de educação, ciência e tecnologia. Eles suprem a necessidade por outras instituições de educação superior de qualidade. O sistema que propusemos é mais flexível e atende também à forte evasão nas instituições de educação superior. Hoje, é frequente os alunos cursarem os dois primeiros anos de um cur-so superior e irem embora, sem título nenhum. No sistema proposto pela ABC, os dois primeiros anos se abrem para grande número de estudantes. Com isso, ao invés de eles escolherem a carreira no vestibular, terão a liberdade de escolher o que vão fazer depois de uma educação superior mais ampla, de acordo com sua capacidade e sua vocação e com as possibilidades abertas por seu desempenho no primeiro ciclo. Isso também é importante: é preferível que os estudantes não se acomodem ao entrar na instituição de ensino superior. O desempenho deles no ciclo de formação importa para uma boa escolha na especialização. Alguns setores acadêmicos dizem que isso é um vestibular interno. Sim, mas muito melhor que a atual seleção. Na estrutura proposta, o aluno tem a chance de cursar dois ou três anos de ensino superior. Hoje, nem essa possibilidade o aluno tem. No entanto, infelizmente, os ciclos não foram adotados. Nisso há uma responsabilidade da comunidade acadêmica. É preciso deixar claro que a comunidade acadêmica é extremamente conservadora em termos de modelos de educação e estruturas institucionais. O conservadorismo em relação a estruturas institucionais é comum a qualquer instituição.

No caso das instituições de ensino superior, esse conservadorismo gera um paradoxo, pois, ao mesmo tempo, deve existir uma mentalidade inovadora e revolucionária em relação ao produto dessa instituição, senão ela não serve à sociedade. Então essa é uma contradição, um paradoxo. A comunidade acadêmica tem de se defrontar com esse paradoxo. É isso que está basicamente impedindo a evolução das instituições – não é
o governo, não.  

Em 2008, de acordo com o Censo do Ensino Superior, o investimento em ensino superior foi de 0,7% do PIB – ligeiramente menor que nos anos anteriores. Que avaliação você faz desse percentual?
Ampliar o ensino superior é um desafio. Para o poder público, o desafio é ocupar espaços para contrabalançar o desenvolvimento anterior, que levou 70% dos estudantes a se matricularem em instituições privadas de baixo nível. É difícil fazer passar pelo Congresso Nacional mecanismos reguladores ou de controle dessas instituições. Por outro lado, a ampliação do sistema público pode ser feita sem problemas. Assim, considero adequado expandir o sistema universitário. Também considero adequada a criação dos institutos federais de educação, ciência e tecnologia – em particular no que concerne à formação de professores, muito precária no País. Essa precariedade resulta de uma contribuição dos vários órgãos de governo encarregados do assunto e da própria comunidade acadêmica, pois a formação de professores é controlada pelas faculdades de educação. No currículo de formação de professores de ciências, por exemplo, há uma cadeira sobre método para ensinar física; mas cadeira de física, para ensinar conteúdo, isso não tem. É a nossa participação – das uni-versidades – nesse desastre que ocorre no Brasil em relação à educação básica. Então, voltando, é preciso expandir o ensino superior. Mas também é preciso diversificar. A diversificação está sendo feita? Parcialmente, pelos institutos federais de educação, ciência e tecnologia; mas não na medida que desejaríamos.  

Qual seria essa medida?
Diversificar é ter, por exemplo, instituições de qualidade que ofereçam cursos que durem dois, três anos, após os quais os estudantes formados podem ingressar no mercado de trabalho ou prosseguir seus estudos em ciclos especializados de outras instituições. Diversificar é ter um planejamento estratégico que permita flexibilidade horizontal, transferência de estudantes, entre as instituições. A diversidade também significa, dentro das instituições existentes, libertá-las das amarras da própria comunidade acadêmica para permitir uma forma-ção mais ampla dos estudantes, indispensável ao mundo atual. Estamos ainda com a mesma classificação de cursos de várias décadas atrás, anterior à reforma universitária de 1968. Será que a ciência não avançou, a tecnologia não avançou? Será que essas classificações são ainda adequadas? Será que o estudante de engenharia não deveria saber algo de biologia? De antropologia? Não deveria ter liberdade para cursar disciplinas eletivas em várias áreas? Ele vai trabalhar em um país complexo! O graduando tem de ganhar flexibilidade mental para trabalhar neste País. Não é à toa que na UnB o pessoal podia fazer curso de cinema ou entrar na orquestra. Isso dá uma formação integral.  

A UnB é um modelo a ser perseguido?
Não mais. Estimular os estudantes a seguir disciplinas eletivas, isso sim. Temos de pensar em outros modelos. Um modelo a ser acompanhado é o da Universidade Federal do ABC, que leva em conta as necessidades atuais, de desenvolvimento científico e tecnológico. A questão das disciplinas eletivas é muito importante. Atualmente, colocamos uma carga horária assombrosa para nossos estudantes. O estudante faz sete cursos por semestre: ou é um gênio ou não está aprendendo nada. A carga horária é imensa e fecha a possibilidade de os estudantes escolherem eletivas que permitam ampliar a sua formação. A mistura entre cursos de economia, engenharia, biologia, por exemplo, produziria profissionais extremamente interessantes – é um exemplo do que pode ser feito.

Um tema em debate no exterior é o das universidades de pesquisa de classe internacional. Vários países já têm programas para fortalecer determinadas universidades. Alemanha, França, China são exemplos. Esse movimento faz parte da diversificação, não faz? Diversificar também é diversificar as universidades que existem?

Sou mais favorável a ações concretas que a nomes. Chamar uma universidade de universidade de classe internacional não a torna de classe internacional. Além disso, é preciso definir bem esse conceito. Trata-se de colocar algumas universidades brasileiras entre as 50 melhores do mundo nas listas que têm sido publicadas recentemente? Entre as 10 melhores? Em quais áreas do conhecimento? Ao mesmo tempo, uma classificação estática das universidades vai fazer com que elas se acomodem a um pa-pel. Um sistema desse tipo enseja a criação de um lobby forte; o sistema ficará estratificado e as de classe internacional ficarão de classe cada vez mais baixa por se acomodarem no papel. Por outro lado, falar em modelo único de instituição de ensino superior não tem sentido, em particular no Brasil – dada sua diversidade regional, dada sua inserção na América Latina. É preciso pensar em modelos múltiplos para as instituições. Uma universidade para a Amazônia não pode ser igual à Universidade Federal do Rio de Janeiro. Certamente deverá estar envolvida em pesquisas da mais alta qualidade; seria muito bom que ela fizesse um trabalho interdisciplinar na região que levasse em conta a importante cultura local, dos índios, por exemplo, sobre plantas medicinais... A Universidade da América Latina também terá de ser criativa e inovadora. Haverá outras instituições de ensino superior que vão se destacar em pesquisa de características mais internacionais. Falei antes também das instituições com cursos de dois ou três anos, que poderão ter tipos diferentes de conexão a universidades, se beneficiar da pesquisa nessas universidades, no momento em que existir um sistema com maior flexibilidade horizontal.  

Mas hoje em dia toda instituição de ensino superior pública almeja ter pesquisa...
A ideia não é proibir uma instituição tipo college de fazer pesquisa. Mas, para começar a existir, a instituição não precisa ter sobre si toda aquela carga da pesquisa e da extensão. Instituições que tenham apenas um ciclo inicial podem manter convênios com universidades para a pesquisa
– a questão é fazer um planejamento estratégico. Mais tarde, podem vir a desenvolver atividades de pesquisa. Prefiro colocar a questão assim. Se a questão é colocada na forma “temos de ter universidades de pesquisa de classe internacional”, há o perigo de uma estratificação. O sistema deve ser dinâmico, com planejamento estratégico.

Os programas da China, da Alemanha, da França elegem as universidades que serão fortalecidas. Não se trata de dar um nome. Trata-se de eleger universidades que serão as de destaque.

A China dá facilidades de intercâmbio, viagens ao exterior, um sistema de diversificação salarial dos professores que não existe no Brasil nem na Europa. A Capes diferencia o seu apoio à pós-graduação de acordo com a avaliação dos programas, o que é ótimo e pode ser aprofundado. De fato, há uma grande dificuldade de estabelecer prioridades e metas claras no Brasil, o que frequentemente leva à dispersão de recursos. Mas um grupo de pesquisa que começa a se destacar deve ser apoiado. Nos EUA existe uma classificação geral de instituições de pesquisa, como a da Carnegie6; mas não há uma estratificação, novas instituições de qualidade despontam enquanto outras pioram sua classificação. Veja que é possível pensar em um sistema mais dinâmico. Um sistema dinâmico pressupõe também que as instituições, ao se-rem criadas, não precisam ter toda aquela bagagem de pesquisa e extensão. A ideia de que todas as instituições de educação superior devam ter pesquisa e extensão perpetuaria o sistema que existe no Brasil de instituições privadas de baixo nível, porque o poder público não tem condições de competir com elas, devido ao custo de instalação de atividades de pesquisa. Poderiam existir instituições que oferecessem apenas o ciclo fundamental, mantivessem convênio com outras instituições para transferência de créditos e cujos professores trabalhassem em pesquisa também nessas outras instituições, por proximidade geográfica. Nos Estados Unidos, professores de colleges trabalham em pesquisa nas universidades. Digamos que eles queiram fazer seu próprio grupo de pesquisa na instituição – ninguém proibiria. Eles podem ir à luta para conseguir recursos. A concen-tração de recursos de pesquisa em certas universidades é natural e já ocorre no Brasil. Considero problemático estratificar esse sistema, o que pode torná-lo estático e es clerosado. O sistema, ao contrário, tem de ser muito dinâmico.  

O Brasil precisa de universidades mais internacionais?
Certamente; e já as tem – em diferentes graus de envolvimento, de relacionamento com instituições estrangeiras. Há pesquisas desenvolvidas no Brasil, publicadas em revistas de excelente nível no exterior, que competem com pesquisas feitas em grandes centros em pé de igualdade. Temos professores plenamente inseridos na comunidade internacional, pesquisadores do Brasil são convidados para dar palestras de destaque em grandes conferências científicas.  

Gostamos de pensar assim, mas quando chega a hora do ranking de instituições... a classificação das universidades brasileiras é medíocre.
Temos aqui pesquisadores muito bons; o que ainda nos falta é massa crítica. Há uma questão de tempo a considerar. Harvard foi fundada em 1636. A primeira universidade brasileira foi fundada em 1920, se se considerar a Universidade Nacional no Rio de Janeiro. Houve uma no Paraná em 1912, uma união de escolas já existentes. A USP foi fundada em 1934. Nossa universidade é muito jovem. O Brasil sofre os efeitos de uma colonização que envolveu episódios como o de D. João V, de Portugal, que em 1747 impediu a impressão de livros no Brasil – uma herança difícil de superar. As universidades europeias têm séculos de existência. A China também tem uma tradição cultural muito importante – basta ver o Marco Polo, que foi buscar lá invenções como a pólvora, a bússola. Por força da colonização e do que veio depois, temos o sério problema da base da nossa pirâmide educacional. Vou usar uma analogia ultrabatida – tivemos Garrincha e Pelé por causa dos campos de pelada. Na área de educação, fica muito difícil conseguir pesquisadores, cientistas, tecnólogos inovadores em número suficiente quando mi-lhões de jovens estão submetidos a uma educação extremamente precária, com horizontes extremamente limitados em termos de formação. É interessante entrevistar essas crianças para perguntar quantas têm a intenção de fazer curso superior – isso não está no horizonte delas. Enquanto não estiver, vamos sempre ter o problema da massa crítica. Esse é o grande gargalo brasileiro. É perigoso imaginar atingir maiores rankings internacionais para a educação superior trabalhando somente com as nossas instituições de educação superior. O problema é muito mais embaixo – a questão educacional do Brasil tem de ser atacada em todas as frentes. Também é errado dizer que é hora de atacar a educação básica e parar de olhar para a educação superior – porque precisamos formar professores para a educação básica e para dar perspectiva de educação superior à geração que vem. Nossa presença bastante reduzida e tímida no cenário internacional de rankings está ligada a isso; poderá haver solução nos próximos 20 anos – melhorando-se a educação básica. Esse seria um grande projeto nacional, que exigiria um esforço grande: não será com 5% do PIB. É um engano comparar o investimento em educação em relação ao PIB do Brasil com o investimento dos países da OCDE. Israel investe perto de 9%; a Coreia, 9%. Se formos bem além disso, vamos figurar em posição melhor nas classificações internacionais. Criar universidades de pesquisa de classe internacional não vai resolver isso, pois o problema é de massa crítica. Investir em pesquisa ajuda, é importante fortalecer o protagonismo internacional do Brasil, mas não vai resolver. Temos de ampliar a massa de pessoas fazendo ciência no Brasil, em várias áreas da ciência.

Que avaliação você faz do Instituto Tecnológico da Aeronáutica?
O exemplo do ITA é paradigmático: não é universidade, não tem pesquisa forte. O ITA é uma instituição que seleciona rigorosamente seus alunos; e, como acontece também com certas instituições da Coreia, faz parte de um sistema. Quem entra no ITA tem esperança forte de se empregar, e bem, ao fim do curso. O ITA está associado ao sistema da tecnologia aeronáutica do Brasil; foi concebido para formar pessoal de modo que o Brasil tivesse tecnologia na área da aviação.  

Você mencionou a Coreia...
A Coreia tem cinco universidades nacionais de educação, que formam professores para as séries iniciais. A seleção é extremamente rigorosa: os escolhidos estão entre os 5% melhores alunos do secundário. O número de vagas corresponde ao número de empregos planejado para a época da graduação dos estudantes – que, quando entram, sabem que vão ter emprego ao sair, com salário muito bom. Já a formação de professores de nível médio acontece em instituições privadas – eles não se importam muito, pois no momento em que se forma a cabeça das crianças, elas mesmas vão exigir qualidade de seus professores no futuro. O primeiro ciclo é o mais importante de todos. O governo da Coreia toma muito cuidado com essa formação. Veja só: os 5% melhores alunos vão para essas universidades nacionais. O ITA contraria a ideia de que não pode existir instituição de ensino superior, de qualidade, sem pesquisa. Como não pode? Isso é mito. O Instituto Militar de Engenharia é outro exemplo desse tipo; tem excelentes alunos e funciona muito bem. No caso dos bacha-relados de ciência e tecnologia, seria bom associá-los a sistemas, para garantir que o estudante possa trabalhar em empresas como a Petrobras – que não necessita de uma formação ultraespecializada porque os profissionais se especializam dentro da própria empresa. A Caixa Econômica Federal, a Embraer, têm cursos de especialização dentro das próprias empresas – por que as universidades deveriam competir com as empresas nesse nível de especialização? Vamos dar uma formação ampla, que permita ao estudante uma flexibilidade maior.

O tema da autonomia também aparece no documento...

É essencial. Autonomia, com avaliação.
Afirma-se no documento que a avaliação deve afetar a remuneração dos professores; que a estabilidade precoce dos doutores é nociva. Esses temas não foram adiante.

Um exemplo muito bem-sucedido de avaliação no Brasil é o da pós-graduação. A pós-graduação brasileira deve muito à Capes. No âmbito da graduação, essa avaliação não existe. No meu entender, deve-se organizar a avaliação da universidade como um todo – não se trata de avaliar a graduação e a pós-graduação. O documento não propõe formas de realizar a avaliação; deve-se pensar em formas inovadoras de avaliação. A avaliação, de fato, justifica a autonomia. Pensar a autonomia sem avaliação é um atentado à democracia – pelo fato de as universidades públicas serem custeadas pela sociedade. Quanto maior é a desigualdade em uma sociedade, mais importante se torna a avaliação dessas instituições custeadas pelo poder público. Quem paga a universidade são os trabalhadores; pagam com impostos que estão, por exemplo, no preço do feijão. A academia às vezes fala de autoavaliação. A autoavaliação é boa para a universidade; mas evidentemente não é suficiente; é necessário que haja avaliação externa, entendida como parte essencial da autonomia universitária.

As instituições privadas também devem ser avaliadas.
Há aí uma questão importante que às vezes leva a erros de análise. Lemos às vezes artigos dizendo que o mercado vai selecionar as melhores instituições, que os próprios estudantes vão usar a avaliação do MEC para escolher as instituições. Aí aparecem dois tipos de problema: primeiro, no momento em que o poder público está pouco presente, e as instituições comunitárias de boa qualidade também estão pouco presentes, a escolha é muito limitada – muitos estudantes entram em instituições privadas de baixo nível, pois são aquelas em que conseguem entrar. Este fato aumenta a responsabilidade do poder público de ter critérios mais exigentes em relação a essas instituições e incentivos fortes no sentido de que a qualidade melhore nelas. Se não satisfazem os critérios, devem ser fechadas. Além disso, existe outra questão, muito geral na sociedade, às vezes ignorada por quem defende irrestritamente o mercado – a assimetria da informação. Os candidatos não têm tanto acesso assim a essas informações; não sabem avaliar a avaliação. É responsabilidade do poder público e da sociedade levar em consideração que existe essa assimetria de informação. Esses estudantes precisam ser protegidos.