27/10/2015

Carlos Vogt

“É preciso que a Universidade se abra para atrair pesquisadores de fora”, sugere Vogt

Para ex-reitor da Unicamp, as instituições públicas de ensino superior também devem exercer papel de liderança na adoção de tecnologias da comunicação e da informação para expandir a graduação. “Com as limitações das metodologias tradicionais, é difícil cumprir as metas do PNE."

Leia trechos da entrevista concedida por Carlos Vogt ao jornalista Manuel Alves Filho, do Jornal da Unicamp. Vogt é professor emérito da Unicamp, coordenador do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor), presidente da Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp) e membro do conselho editorial da Ensino Superior. Foi reitor da Unicamp e presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
 
Jornal da Unicamp - Com base em toda sua experiência, como você vê o futuro da universidade pública no Brasil e o da Unicamp em particular?
 
"Um dos projetos que a Unicamp poderia assumir seria um programa voltado para o pós-doutorado. Algo que se constitua em ação institucional e estratégica." Carlos Vogt - Eu tenho a impressão que a universidade pública no Brasil tem dois grandes desafios a enfrentar. Um deles está relacionado com os passos a serem dados na direção da consolidação do papel das instituições na pesquisa e na produção de novos conhecimentos. Penso que a universidade consolidou a sua capacidade de atuação na área de pesquisa, inclusive com inserção internacional. Agora é preciso que ela se abra para atrair pesquisadores de fora, que venham buscar aqui referências para o desenvolvimento dos seus estudos. Nesse sentido, penso que um dos projetos que a Unicamp poderia assumir seria um programa voltado para o pós-doutorado. Algo que se constitua em ação institucional e estratégica.
 
Pensando no ensino, acredito que a Universidade tem um grande desafio, que seria elaborar um plano de expansão de oferta de vagas na graduação. Não se trata de tarefa trivial, obviamente. Mas vamos ter que enfrentar as dificuldades. Essa tarefa pode ser facilitada se formos além dos limites impostos pelas metodologias e tecnologias tradicionais ligadas à educação. Com as limitações que temos no momento, é difícil pensar que vamos conseguir cumprir as metas contidas no Plano Nacional de Educação, que fala na inclusão de 37 milhões de alunos nos próximos dez anos.
 
Nesse sentido, penso que é fundamental que as nossas universidades públicas, a Unicamp inclusive, exerçam um papel de liderança na adoção de recursos baseados nas tecnologias da comunicação e da informação, para que seja possível desenhar um grande projeto de política pública capaz de cumprir as metas dadas. Os objetivos são ambiciosos, mas factíveis, principalmente se aproveitarmos esses novos recursos. Obviamente, eu falo isso pensando na Univesp [Universidade Virtual do Estado de São Paulo, da qual Vogt é presidente], que tem não apenas um forte relacionamento com as universidades, mas também a capacidade de, junto com elas e com o Centro Paula Souza, conduzir um processo nesse sentido. Se quisermos contribuir para o avanço econômico e social do país, isso precisará ser feito.
 
JU - Como coordenador do Labjor, de que forma você tem acompanhado a crise do jornalismo brasileiro?
 
"Nunca é demais lembrar que não há ciência sem comunicação. É sob a forma da comunicação que se dá a validação ou a refutação de testes e propostas." Vogt - Essa crise tem, em boa medida, relação com o que falei sobre a educação. Cada vez mais, surgem desafios. Ao mesmo tempo, ocorrem mudanças no cenário das comunicações. No caso do jornalismo, toda a questão está relacionada com as novas mídias, que criaram e vão continuar criando novas condições de comunicação e informação. Essas novas mídias, se não forem incorporadas, tenderão a produzir situações negativas para a atuação da imprensa dentro de um modelo tradicional. Os jornais, por exemplo, já têm uma forte presença no campo virtual, com seus sites, blogs etc. Essas novas tecnologias mudaram não somente o plano de negócio das empresas jornalísticas, mas também as condições de relacionamento entre o emissor e o leitor.
 
Tal dinâmica é muito forte. Os jornais já não têm mais o papel de informadores. Hoje, cumprem uma função muito mais analítica. Do ponto de vista do espaço de circulação, os jornais sofreram uma importante restrição. Basta ver que alguns são distribuídos gratuitamente no semáforo, trazendo ao leitor uma sinopse das notícias. Ou seja, mudou o perfil do negócio. Essa mudança foi percebida rapidamente por alguns, que se adaptaram. Outros, entretanto, levaram mais tempo para perceber. De todo modo, penso que os jornais não vão desaparecer, mas vão mudar a sua organização e as formas de relação com o público leitor.
 
JU - Qual a sua avaliação sobre a qualidade da divulgação científica no Brasil?  
 
"Nós temos uma sociedade na qual a versão caminha simultaneamente com o acontecimento. Isso retira do acontecimento a sua ontologia, que é transferida para sua representação." Vogt - O Labjor acompanhou as transformações que ocorreram nesse segmento. O Labjor foi criado em 1994. Em 1997, propusemos a criação do curso de especialização, que teve início em 1999; veio depois o mestrado em 2008 e estamos, agora, com o projeto de doutorado tramitando na Capes. A especialização foi o primeiro curso dessa natureza no país. Formamos muitos profissionais e fomos assistindo ao nascimento de várias iniciativas que mostraram quanto o jornalismo científico e a divulgação da ciência estavam se organizando, se desenvolvendo e se institucionalizando. Ao mesmo tempo, as próprias instituições de fomento foram se dando conta disso. A Fapesp criou programa de bolsas. O CNPq também tomou iniciativas importantes no sentido de valorizar a atividade de divulgação que acompanha a pesquisa. Em vários dos programas da Fapesp há o estímulo ao pesquisador para criar formas de comunicação com a sociedade. Ademais, a questão da comunicação da ciência passou a integrar uma necessidade da sociedade contemporânea. A sociedade foi formando consciência de que uma de suas características fundamentais é estar sustentada pelas tecnologias de informação e comunicação e, consequentemente, pelo desenvolvimento científico. O conhecimento, nesse sentido, é fator estruturante das relações sociais. Nunca é demais lembrar que não há ciência sem comunicação. É sob a forma da comunicação que se dá a validação ou a refutação de testes e propostas.
 
Mais que isso, o papel da ciência na sociedade é tão importante que os modelos de governança da própria ciência foram mudando. Aquilo que era algo particular dos cientistas ou dos governos passou a necessitar de uma participação cada vez mais aberta da sociedade, que por sua vez ampliou a sua influência sobre as decisões de governança da ciência. Penso que ainda há muito espaço para se trabalhar nesse campo.
                               
JU - Perguntando agora ao linguista, poeta e escritor. Quais os papéis da linguagem e da poesia num contexto em que as relações humanas são fortemente marcadas pela instantaneidade e pela efemeridade?
 
Vogt - A questão da instantaneidade constitui também um grande desafio. Uma condição que permite que alguém construa uma narrativa sobre o mundo é o distanciamento mínimo de tempo e espaço em relação ao acontecimento. Não é possível narrar o acontecimento enquanto ele está acontecendo. É possível descrevê-lo, como faz o locutor de futebol. Mas não é possível narrá-lo. Essa distância representa uma “encrenca”. Nós temos uma sociedade na qual a versão caminha simultaneamente com o acontecimento. De certa maneira, isso retira do acontecimento a sua ontologia, que é transferida para a representação do acontecimento. Isso passa a dar realidade e concretude não ao que se representa, mas à sua representação. Essa é uma questão que traz obviamente várias consequências.
 
Penso que essa reflexão precisa continuar a ser feita por diferentes áreas, como a filosofia e a literatura. Pode ser feita também pela poesia. Penso que a poesia tem um papel importante nesse processo na medida em que ela, como expressão poética do mundo, contribui para divulgar o conhecimento científico. Hoje, o conhecimento científico se faz e se produz por meio de uma linguagem altamente codificada, num nível em que apenas os iniciados conseguem estabelecer efetivamente a comunicação. Há, portanto, a necessidade de se buscar formas de comunicação da ciência que não fiquem restritas ao círculo dos iniciados.
 
Essas formas de comunicação precisam promover a abertura da linguagem. A linguagem precisa sair do nível de abstração da pura demonstração lógica para ingressar no campo da comunicação sensível. É preciso sair da expressão digital da linguagem para a expressão analógica, baseada nas metáforas, nas imagens etc. Em outras palavras, é preciso sensibilizar os conceitos para que a sociedade como um todo consiga acompanhar, tendo como referência a sua própria vivência. O desafio é sair de uma comunicação fechada para uma comunicação aberta. Trata-se de um processo de aprendizado para todos, inclusive para cientistas e jornalistas. Esse trajeto, que vai do hermético para o aberto, é o trajeto que vai da linguagem da ciência para a poesia. A poesia tem, portanto, papel-chave nesse esforço de comunicação.
 
JU - Em seu livro A Utilidade do Conhecimento, lançado em maio deste ano, o senhor estabelece conexões entre o conhecimento e os princípios da ética. Nestes tempos de atentados profundos à ética, que conhecimento nos falta para revigorarmos esses princípios?
 
Vogt - Uma das grandes conquistas do mundo ocidental teve origem na sociedade grega dos séculos VI e V antes de Cristo. Foi o momento do nascimento da tragédia grega como gênero literário e também da filosofia. Esse instante foi importante porque estava ocorrendo a transição de uma sociedade organizada sob os princípios das relações heroicas e da concepção da justiça como vingança, para uma sociedade que começa a estabelecer os parâmetros da justiça social. Os conflitos deixam de ser resolvidos pela luta para serem resolvidos pelo conjunto da sociedade, por meio dos seus representantes.
 
A tragédia é importante porque procura representar esse estado de coisas, essa transição. Desse ponto em diante, todo o processo vai sendo sofisticado com o decorrer dos séculos: as instituições vão se consolidando e a democracia vai amadurecendo. A despeito disso, ainda convivemos hoje com muitas trevas, inclusive aquelas presentes no ser humano. Recentemente, tivemos o episódio daquela chacina em São Paulo, cuja motivação foi a mais primitiva possível – a vingança. Temos um quadro em que a sociedade avança e as instituições se fortalecem, mas ao mesmo tempo continuamos convivendo com os instintos primitivos da nossa herança biológica.
 
A questão ética não é simples, e é menos simples ainda numa sociedade como a nossa, que é polifônica, multifacetada e fragmentada do ponto de vista dos valores e ideologias. Então, encontrar faróis que joguem luz sobre os comportamentos não é fácil. Quando o mundo é dividido apenas entre bem e mal, isso se torna um pouco mais simples. Entretanto, quando surgem muitos tons de cinza, as coisas se complicam muito.
 
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