06/03/2014

revista Ensino Superior nº 12 (janeiro-março)

"Ciência sem Fronteiras pode romper tradição aulista da universidade brasileira", diz secretário de educação superior do MEC

"O que temos observado nas melhores universidades do mundo é que são cada vez maiores os incentivos para que os alunos trabalhem individualmente e de forma independente, com orientação mínima de professores", afirma Paulo Speller

Por Marion Lloyd
Coordenadora de projetos da Diretoria-Geral de Avaliação Institucional da Universidade Nacional Autônoma do México (Unam), e membro do Seminário de Educação Superior na mesma instituição. Durante 15 anos, como jornalista, foi correspondente no Sul da Ásia e na América Latina de vários jornais dos Estados Unidos, entre os quais The Boston Globe, Houston Chronicle e The Chronicle of Higher Education. Fez licenciatura em Letras (inglês e espanhol) na Universidade Harvard e mestrado em Estudos Latino-Americanos pela Unam. Atualmente cursa o doutorado em Sociologia na Unam, pesquisando as políticas de ação afirmativa no Brasil. Marion também é membro do Conselho Editorial da revista Ensino Superior Unicamp
Líder estudantil na década de 1960, Paulo Speller foi preso e torturado por mais de um ano sob a ditadura militar brasileira. Depois de recuperar a liberdade, foi para o exílio no México – país que, apesar de travar a sua própria "guerra suja", deu asilo a milhares de exilados de regimes autoritários em outras partes da América Latina. Durante seus oito anos no país, Speller graduou-se na Universidade Veracruzana e concluiu mestrado em psicologia na Universidade Nacional Autônoma do México, onde também lecionou.
 
Depois de passar dois anos em Moçambique como voluntário da Unesco, Speller retornou ao Brasil por alguns anos, beneficiado pela Lei de Anistia (1979). Mais tarde, obteve um Ph.D. em Governo pela Universidade de Essex, na Inglaterra, antes de retornar como administrador e, em seguida, reitor da Universidade Federal de Mato Grosso. Em 2010, tornou-se reitor fundador da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab, autarquia vinculada ao Ministério da Educação, com sede na cidade de Redenção, Ceará). A instituição faz parte dos esforços do ex-presidente Lula para fortalecer os laços com outras antigas colônias portuguesas e com os países em desenvolvimento em geral.
 
 
Desafio agora é decidir o que fazer com o dinheiro dos royalties do petróleo. A questão não é apenas continuar fazendo as mesmas coisas, só que com mais dinheiro. Speller assumiu seu posto no Ministério da Educação num momento muito particular do sistema de ensino superior brasileiro. Em 2011, o governo federal anunciou o plano de enviar 101 mil estudantes de graduação e pós para estudar ciência, tecnologia, engenharia e matemática (as chamadas áreas STEM, na sigla em inglês) em universidades estrangeiras. O programa Ciência sem Fronteiras (CsF) é, de longe, o mais ambicioso do tipo na América Latina, e colocou o Brasil no radar de universidades de todo o mundo. Atualmente, Speller recebe visitas semanais de altos funcionários de muitas instituições que querem atrair bolsistas brasileiros. Pelo balanço mais recente, mais de 54 mil estudantes tinham ido para mais de 30 países, sendo a maioria – cerca de 16 mil – para os Estados Unidos.
 
Speller também está supervisionando a implementação de ambiciosas políticas de ação afirmativa. A Lei de Cotas, assinada pela presidente Dilma Rousseff em agosto de 2012, determina que, até 2016, as 63 universidades federais reservem metade de suas vagas para afro-brasileiros, indígenas e egressos de escolas públicas com baixa renda. A legislação consolida anos de políticas de ação afirmativa na educação superior brasileira, as quais beneficiaram mais de um milhão de estudantes de grupos tradicionalmente desfavorecidos.
 
Um terceiro marco para o ensino superior brasileiro é a nova lei federal aprovada em agosto de 2013 que destina 75% dos royalties e outras receitas derivadas da exploração de petróleo e gás para uso na educação pública. Estima-se que a Lei 12.858 vai injetar um adicional de R$ 135 bilhões no sistema de ensino até 2022.
 
Falei com Speller durante o III Congresso das Américas sobre Educação Internacional, realizado na cidade mexicana de Monterrey em outubro do ano passado. Ele estava otimista com a perspectiva de que as novas políticas ajudariam a democratizar o ensino superior brasileiro e ao mesmo tempo aumentar as capacidades científicas e tecnológicas do Brasil. Speller também apontou com franqueza os principais desafios que o sistema educacional do país como um todo enfrenta, em especial no ensino médio.
 
Não é suficiente que os cotistas sejam lutadores, que tenham garra e sejam estudiosos. Estão em desvantagem real, porque vêm de escolas públicas altamente deficitárias, que os prepararam precariamente. Como vai o programa Ciência sem Fronteiras (CsF)?
O programa está indo muito bem. Tivemos que fazer alguns ajustes, no caso de Portugal, por exemplo. Havia uma enorme demanda para estudar em Portugal, que acabou eliminando o país na lista de opções para alunos matriculados em cursos de graduação-sanduíche. Havia 30 mil inscritos, e a ideia é que os alunos tenham a oportunidade não só de viver em outro país, mas também de desenvolver fluência em outro idioma, em particular, embora não exclusivamente, em Inglês. Percebemos que um grande número de alunos não tem a necessária fluência em Inglês, por isso criamos um novo programa chamado Inglês sem Fronteiras (IsF), que está atualmente funcionando em todas, ou quase todas, as universidades federais. Existem 63 universidades federais, incluindo quatro que foram recentemente criadas.
 
O programa tem três componentes. O primeiro é um teste de inglês, obrigatório para todos os estudantes que querem ir para o estrangeiro. Temos também um programa de educação a distância e outro que é oferecido no campus. Os resultados de todos os três têm sido fantásticos. Todo mundo quer participar dos programas, incluindo professores e funcionários. Além disso, criamos uma alternativa para que os alunos passem por três ou seis meses de estudo intensivo de inglês nas universidades estrangeiras onde planejam se inscrever. Assim, com esses ajustes importantes, acho que o programa está indo muito bem . Nosso objetivo é oferecer bolsas de estudo para 101 mil estudantes.
 
Quando o programa começou exatamente?
Nós começamos em 2011, que é muito recente. E termina em 2015.
 
É um prazo firme?
Para este programa, em particular, é. O Brasil já tem uma série de programas para estudos de doutoramento, pós- docs etc., embora em escala muito menor. Estamos agora nos preparando para fazer um balanço dos resultados, e é claro que não pretendemos simplesmente encerrar tudo. Vários componentes, embora talvez de uma forma diferente, vão continuar.
 
As universidades têm de estar prontas, não só com programas de tutoria, mas também com bolsas de estudo que ajudem a sobreviver e permanecer. Estamos falando de estudantes muito pobres, muitos dos quais vêm de áreas distantes das universidades. Qual percentual está estudando nos Estados Unidos?
A maior parcela. Há uma longa tradição de estudantes brasileiros indo aos Estados Unidos para realizar estudos de pós-graduação, em especial Ph.D.'s. Não vamos enviar mais para estudar em nível de mestrado, mas vamos começar a enviar os alunos para passar por mestrados profissionais, um modelo que é particularmente bem estabelecido nos Estados Unidos. Vamos começar com os Estados Unidos, que oferecem programas de um ano, um ano e meio ou dois anos no máximo, mas que não são mestrados acadêmicos. São para as pessoas que trabalham na indústria, ou ligadas a universidades mas que estão trabalhando no desenvolvimento tecnológico, nas engenharias.
 
Você deve saber que o CsF tem como alvo as chamadas áreas duras. Humanidades não estão incluídas. Os programas existentes para Humanidades vão continuar, mas no CsF estamos priorizando as ciências exatas.
 
O programa tem atraído muita atenção por sua magnitude. Mas o quanto pode realmente mudar o panorama da educação superior no Brasil? Quão grande será o impacto, para além dos números?
Deve ter um impacto muito grande. O ensino superior brasileiro é atualmente muito "aulista", muito centrado na sala de aula. Mas o que temos observado nas melhores universidades do mundo é que são cada vez maiores os incentivos para que os alunos trabalhem individualmente e de forma independente, com orientação mínima de professores. Essa é uma diferença muito importante.
 
Neste momento, estamos trabalhando para reintegrar os alunos que retornam ao campus de origem. Em alguns lugares, encontramos resistência dos coordenadores do programa, que não querem reconhecer créditos de cursos. Precisamos adotar uma visão muito mais flexível da experiência acadêmica no exterior. Isso é particularmente verdadeiro em áreas como a Medicina, onde o currículo é muito rígido. E, por conta disso, se os alunos desviam da sequência estabelecida, quando voltam para casa, as instituições dizem: "você precisa fazer isso ou aquilo". Mas estamos falando de pequenos ajustes.
 
Esse tipo de efeito é muito positivo, porque o objetivo é fazer que as universidades sejam mais flexíveis, aproveitando-se de ferramentas como a tecnologia da informação. Acima de tudo, estamos tentando incentivar os alunos a trabalhar de forma independente, evidentemente sob a orientação e supervisão docente. Trata-se de um elemento que eu acho particularmente importante.
 
Os cotistas têm de dormir, comer e comprar livros – e se divertir. Isso custa dinheiro, é caro. Estamos canalizando um monte de dinheiro em programas de assistência social. Mas precisamos gastar ainda mais. Houve um tempo, não muito distante, em que o Brasil enviou muitos estudantes ao exterior. Foi durante o regime militar, não?
Sim, porque o sistema de pós-graduação no Brasil só começa a tomar forma na década de 1950, mas sobretudo durante os anos 1960 e 1970. A partir daí, começa-se a mandar números crescentes de jovens para fora, principalmente para Estados Unidos e Europa. Eu fiz meu doutorado na Inglaterra, numa altura em que era possível a um grande número de estudantes fazer isso. Eu tinha uma bolsa de estudos de quatro anos. Nos anos que antecederam o Ciência sem Fronteiras isso não era mais possível, pelo menos em uma escala tão grande. Por quê? Porque, então, os programas de pós-graduação já estavam bem estabelecidos no Brasil. Isso é particularmente verdadeiro para os programas de mestrado, e agora temos programas de doutoramento em praticamente todas as áreas. Daí a decisão de priorizar programas que não existem atualmente no Brasil. Mas estamos revendo essa política, porque os benefícios do estudo no exterior são bem conhecidos, por isso mesmo, se não enviar os alunos para um programa de Ph.D. inteiro, pelo menos eles podem ir para o estrangeiro como parte de um doutorado-sanduíche. Estamos tentando promover a exposição internacional, o que é extremamente importante.
 
Parece que metade das bolsas concedidas pelo Ciência sem Fronteiras é paga pelo setor privado.
Não, na realidade é um número muito menor. O número total que prevemos receber do setor privado é 26 mil bolsas. Mas pode acabar consideravelmente maior do que 26 mil, porque as empresas estão realmente interessadas – ​​e é um bom negócio para elas. No final, as bolsas têm um impacto direto e positivo sobre seus investimentos, seus negócios e seus lucros.
 
Como o sistema funciona?
As empresas financiam as bolsas diretamente.
 
São os estudantes, então, obrigados a trabalhar para a empresa?
Não, isso não quer dizer que vão trabalhar para uma empresa privada, nem que vão necessariamente fazer um estágio em uma das empresas. Passam pelo mesmo processo de seleção: só precisam estar matriculados em universidades participantes, serem selecionados e capazes de falar inglês. E então determinam suas próprias vidas. Não há conexão entre uma coisa e outra.
 
Como é que a nova lei sobre royalties do petróleo afeta o ensino superior?
É uma tonelada de dinheiro. E agora, com a aprovação do Plano Nacional de Educação, os gastos com a educação serão fixados em 10% do PIB, com aumentos graduais ao longo de um período determinado. Nosso desafio agora é decidir o que fazer com o dinheiro. A questão não é apenas continuar fazendo as mesmas coisas, só que com mais dinheiro. Então é isso que nós, do Ministério da Educação, ainda estamos tentando descobrir.
 
Aqui [no México] ouvimos muito sobre o ensino secundário. Mas o que devemos fazer em relação à educação secundária no Brasil? O que vale para o México também vale para o Brasil: os jovens não querem estudar, querem trabalhar. Não têm paciência para estar em uma sala de aula só ouvindo, ouvindo, ouvindo. Na realidade, o professor está falando e o aluno está em seu telefone celular, conectado à internet, ligado ao mundo inteiro. Ele está se internacionalizando muito mais rápido do que o ensino médio. Como resultado, existe um enorme problema de evasão neste nível, e não temos jovens suficientemente qualificados para chegar à universidade. Isso é um grande problema.
 
A maioria das universidades, incluindo muitas das melhores, tem programas voltados para consolidar o conhecimento dos alunos quando chegam, porque não chegam bem-preparados como outrora. No passado, pouquíssimos de nós cursávamos uma faculdade. Éramos um grupo de elite, então esse problema não existia. Quando eu comecei a universidade, ninguém [de meu círculo social] foi para a faculdade. Havia apenas algumas universidades no Brasil na década de 1960. Hoje, há poucos alunos de ensino superior em termos proporcionais, mas ainda assim temos 7 milhões de estudantes no ensino superior, entre setor público e privado. Portanto, a educação básica é um desafio enorme, e nós temos que decidir como vamos usar todo o dinheiro que dizem que vamos receber.
 
Você acha que realmente o dinheiro vai chegar? Porque no México aprovam-se leis e definem-se metas, como no caso do financiamento para pesquisa científica, e depois não acontece nada.
Acho que sim, é para valer. E há muito petróleo, haverá portanto uma grande quantidade de dinheiro disponível para a educação, e também para a saúde, que é o outro grande desafio. Há programas igualmente ambiciosos na área da saúde.
 
Enquanto os Estados Unidos estão reduzindo ou desmantelando políticas e programas de ação afirmativa – porque seriam desatualizados ou ineficazes –, o Brasil está indo na direção oposta. O que você acha disso?
O impacto da ação afirmativa no Brasil tem sido muito encorajador até agora, especialmente quando você vê a crescente presença de estudantes negros ou egressos de escolas públicas, que tiveram de lutar para chegar à universidade. Mas as universidades precisam de mais programas, e programas mais eficazes para receber esses alunos, porque já estão chegando em ondas muito maiores. As universidades têm de estar preparadas para receber esses alunos.
 
Vi muitos estudos apontando que, ao contrário das expectativas, os cotistas estão se saindo melhor do que os não cotistas, mesmo sem passar por programas de recuperação. A que você atribui o fato de que esses alunos parecem estar se saindo bem?
Estão indo bem, mas ainda estamos no início, porque a nova Lei de Cotas [para as universidades federais] ainda é muito recente. Algumas instituições estão se movendo rapidamente. A Universidade de Brasília (UnB) tinha começado mais cedo, outras também. Mas mal começou a primeira fase, que define quotas de 12,5%. No ano seguinte, vai até 25%, depois 37,5%, depois 50% [implementação em degraus de no mínimo um quarto da meta por ano durante no máximo quatro anos[1]]. Trata-se de um grande número de alunos. Não é suficiente que sejam lutadores, que tenham garra e sejam estudiosos. Estão em desvantagem real, porque vêm de escolas públicas altamente deficitárias, que os prepararam precariamente. As universidades têm de estar prontas, não só com programas de tutoria, mas também com bolsas de estudo que ajudem a sobreviver e permanecer. Estamos falando de estudantes muito pobres, muitos dos quais vêm de áreas distantes das universidades. Têm de dormir, comer e comprar livros – e se divertir. Isso custa dinheiro, é caro. Estamos canalizando um monte de dinheiro em programas de assistência social. Mas precisamos gastar ainda mais.


[1] Art. 8º - As instituições de que trata o art. 1º desta Lei deverão implementar, no mínimo, 25% (vinte e cinco por cento) da reserva de vagas prevista nesta Lei, a cada ano, e terão o prazo máximo de 4 (quatro) anos, a partir da data de sua publicação, para o cumprimento integral do disposto nesta Lei.