25/07/2012

Opinião

Travas culturais e desenvolvimento da sociedade do conhecimento no Brasil

Luiz Bevilacqua
Professor emérito do Instituto Alberto Luiz Coimbra (Coppe), Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi reitor da Universidade Federal do ABC, secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia e presidente da Agência Espacial Brasileira
Luiz Bevilacqua, ex-reitor da UFABC
O inalienável peso da cultura sobre o comportamento das pessoas integrantes de um determinado grupo social não pode ser minimizado. Não se trata de uma influência superficial. Trata-se, sobretudo, de uma tomada de posição que marca um lugar na relação entre pessoas e sociedades. A cultura herdada e transmitida de geração a geração define o limite da própria capacidade de um povo e revela a sua identidade. As estratégias das relações internacionais contemporâneas são definidas levando em conta as características culturais. Portanto, é muito importante que os programas de desenvolvimento em todos os níveis, instituições, empresas e governos levem em conta esse fator, sem o que correm o risco de fracassar. No Brasil, no entanto, o fator cultural, se não é esquecido, é mal avaliado. Por essa razão vou procurar levantar alguns pontos que me parecem críticos para definir programas de ação com chance se sucesso.
 
Os traços culturais mais críticos manifestam-se mais claramente quando estamos diante da tomada de grandes decisões. Como escolher o caminho numa encruzilhada? Como responder a um desafio? Ser atrevido ou ser submisso? Ser ousado ou ser medroso? Ter a coragem de assumir liderança ou optar pela integração na confortável caravana dos seguidores?
 
O fator cultural, a sentinela que nos proíbe de tomar certas ações, é tão poderoso que muitas proposições, atos, recomendações e leis não “colam”, como se costuma dizer. Quando se apresenta uma proposta que requer a tomada de posição, não se pode esquecer que a escolha do caminho depende da sentinela cultural. Não se pode esperar que a adoção de medidas importadas de outros povos, e lá bem-sucedidas, funcione aqui com igual eficiência. Até mesmo o conceito, ou melhor, a ideia mais fundamental que sustenta um determinado conceito depende de fatores culturais.
 
Um fator cultural que prejudica as soluções para os vários problemas nacionais é a síndrome da obsolescência precoce (SOP): planos de desenvolvimento muito bem elaborados são totalmente ignorados quando se passa de uma administração para a outra Tomemos como exemplo o conceito de empresário/industrial. Quando se fala de alguém que dirige um determinado setor industrial em países centrais do Ocidente, e do Japão, Coreia e China no Oriente, entende-se alguém que tem como objetivo principal fabricar algum objeto, recorrendo à inteligência e engenhosidade de seus pares e funcionários para inventar e produzir. Um empresário/industrial nesses países tem o orgulho de ser pioneiro na fabricação de algum produto antes do que ser bem-sucedido financeiramente. Um empresário/industrial nesses países é uma pessoa com “engenho e arte”, antes de ser uma pessoa com polpuda conta bancária. No entanto, esse conceito não se aplica no Brasil. Os heróis dos nossos jovens engenheiros podem até ser o senhor Gates ou o senhor Jobs, porém menos pelo que inventaram e mais pelo que ganharam. A grande concentração na preferência por cargos administrativos de gestão em comparação com a baixa opção por cargos de projeto de engenharia denuncia a prioridade por ganhos financeiros, o que infelizmente vem sendo estimulado pelas empresas que pagam mais a gestores do que a engenheiros. Os empresários/industriais brasileiros são na verdade, com as honrosas exceções, comerciantes antes de tudo. Portanto, ao se implementar medidas que pressupostamente irão estimular o crescimento industrial, é preciso que se tenha em conta esse fator. Medidas que são eficazes nos países industrializados não surtem o mesmo efeito no Brasil. Existem vários exemplos que demonstram essa atitude. Talvez o mais evidente seja a reserva de mercado na área de informática, que apesar de ter permanecido em vigor por sete anos e com forte investimento governamental, não contribuiu em nada para o desenvolvimento da indústria brasileira nesse setor. Os empresários/comerciantes interessaram-se mais em fazer fortuna do que em criar uma indústria nacional. Outro dado muito concreto é o número pífio de patentes registradas no Brasil em comparação com outros países. Em 2009 o Brasil registrou 480 patentes e a empresa chinesa Huawei Technologies, sozinha, registrou no mesmo ano 1.800 patentes.  Portanto, sem levar em conta a condição natural dos empresários brasileiros, em que prevalece a mentalidade do comerciante sobre a do industrial, nenhum projeto de estímulo ao desenvolvimento será exitoso.
 
Outro fator cultural que prejudica sobremaneira as propostas que tentam encaminhar soluções para os vários problemas nacionais é a síndrome da obsolescência precoce (SOP). Esse mal acontece em períodos de quatro ou oito anos. Planos de desenvolvimento muito bem elaborados, após um exaustivo estudo envolvendo tempo e dinheiro, são totalmente ignorados quando se passa de uma administração para a outra. Isto acontece na administração federal, estadual, municipal, nas universidades federais e estaduais e até em setores privados.
 
Na esfera pública, esse fenômeno está intimamente associado com outro: o do salto súbito de competência (SSC). Funcionários de carreira competentes e experientes são substituídos por outros que muitas vezes nunca estiveram em posições administrativas, mas que aparentemente são iluminados a partir do momento em que assumem novas responsabilidades para as quais nunca foram preparados. Uma das razões que explicam tanto a SOP como a SSC é a falta de confiança mútua, uma praga cultural que prejudica muito o progresso do Brasil. Alguns testes relativamente recentes mostram que os índices de confiança interpessoal são muito baixos aqui (aproximadamente 10%) em comparação com outros países como a Noruega (aproximadamente 65%)[1]. De qualquer forma, para os fins a que me proponho nesse trabalho, a experiência mostra que a substituição regular das equipes de administração até quase à raiz e o abandono de projetos elaborados em governo anterior para recomeçar tudo de novo são fatos plenamente comprováveis. Que fique claro que as mudanças nos altos escalões de governo, assim como revisões de planos de governo, são com certeza admissíveis e até desejáveis em muitos casos, mas essas medidas deveriam ter alcance limitado.
 
Na esfera pública, esse fenômeno está intimamente associado com o do salto súbito de competência (SSC): funcionários de carreira competentes e experientes são substituídos por outros que muitas vezes nunca estiveram em posições administrativas, mas que aparentemente são iluminados quando tomam posse A falta de ousadia para enfrentar grandes desafios é outro fosso cultural que nos impede de avançar. A solução de problemas tecnológicos complexos que exigem competência e muito trabalho em geral é repassada para fora do país. As nossas empresas não são capazes, muitas das vezes, nem de tentar a busca de soluções. A atitude padrão tem sido procurar consultores internacionais. É curioso o impacto da palavra consultor internacional: tem um efeito mágico de garantia incondicional de qualidade (e se pressupõe que não existam consultores internacionais brasileiros). Tentei sem sucesso que uma grande agência de fomento fizesse um levantamento de aplicativos de engenharia usados pelas empresas de consultoria brasileiras e incentivasse a produção de aplicativos no Brasil. A minha experiência anterior indica que perto de 100% dos programas de computação para projeto de engenharia são importados. Essa circunstância dificulta muito a solução de dúvidas sobre os resultados e dos requisitos a que devem obedecer os dados de entrada. Caso fossem desenvolvidos no Brasil, esse problema estaria superado. Aumentaria a confiança no uso dos aplicativos e estimularia a disposição de enfrentar problemas novos. Mas as empresas, na sua maioria, preferem encomendar as soluções dos grandes problemas de engenharia fora do Brasil, para se concentrar na gestão.
 
Essa falta de ousadia vem atrelada a uma tendência atávica de deslumbramento por tudo que vem do exterior. E aqui quero me concentrar especialmente na área acadêmica. De fato é extraordinária a força do nosso complexo de inferioridade, o complexo de “cachorro vira-lata” a que se referia Nelson Rodrigues. A coordenação de programas de pós-graduação em engenharia (Coppe) que hoje chama-se Instituto Alberto Luiz Coimbra, em homenagem a seu fundador, completa 50 anos em 2013. Deu origem à grande expansão da pós-graduação em todas as áreas do conhecimento com suporte de agências de fomento federais e estaduais. O número de doutores formados no Brasil vem crescendo consistentemente e a presença dos pesquisadores brasileiros na comunidade científica mundial está consolidada. Não obstante essa conquista, feita a custa de sacrifícios de muitos, o reconhecimento que a comunidade brasileira presta a si própria é muitas vezes ridículo. Vários encontros, seminários e congressos realizados aqui programam as palestras de destaque só com pesquisadores de fora do Brasil, enquanto que aqui existe competência equivalente e em muitos casos até superior. Mais uma demonstração de subserviência ao mundo exterior.
 
Os nossos melhores trabalhos de pesquisa não são encaminhados para revistas brasileiras, embora várias das nossas associações científicas mantenham publicações de alto gabarito[2]. Ao avaliarmos o mérito das publicações, colocamos as nossas revistas em plano inferior e depois vamos proclamar que os cursos têm categoria internacional. Quem olha de fora no mínimo fica desconfiado. Fabricamos o pão e com orgulho dizemos que é de excelente qualidade, mas comemos o pão fabricado na padaria do vizinho. Fico intrigado com o que pensam os conferencistas de fora convidados a proferir “keynote conferences” aqui ao se depararem com uma lista que não inclui um brasileiro sequer.
 
Ciência sem Fronteiras
A falta de autoestima chegou a um ponto que põe em perigo todo o nosso esforço em implantar uma atividade universitária que praticamente era ignorada há cerca de 50 anos. Refiro-me à atividade de pesquisa com a formação de mestres e doutores. A abertura do programa Ciência sem Fronteiras corre o risco de sinalizar para o exterior que o governo brasileiro declara que o esforço de se implantar no Brasil um projeto de universidade de pesquisa fracassou. Vamos recomeçar do zero. Ora, essa premissa é falsa e felizmente muitos de nossos pesquisadores já têm reconhecimento internacional, o que evita em parte a hipótese de que nada acontece no Brasil em matéria de C&T. Ajuda a atenuar o efeito negativo a possibilidade de atrair pessoas de fora do Brasil para se integrarem na nossa comunidade de C&T. Mas, de qualquer forma, a prioridade deveria ser outra, invertendo a polaridade, mais de fora para dentro do que de dentro para fora.
 
Para começar a eliminar a falta de autoestima proponho que se mude o termo “amparo” que está incluído em todas as FAPs por “apoio”, afinal não estamos desmontando para precisar de amparo. Outra sugestão é substituir “inovação” por “invenção”. São coisas diferentes, inovar é continuar na esteira aberta por outros, inventar abre novas fronteiras. Os conceitos são diferentes e para provar basta que se considere o valor relativo das duas palavras na expressão “inventar (inovar) a roda”. Considero que o uso de inovar é muito prejudicial na definição de projetos e ações.
 
Uma das razões que explicam tanto a SOP como a SSC é a falta de confiança mútua, uma praga cultural que prejudica o progresso do Brasil Centralização e uniformização
Considere agora outro traço cultural prejudicial ao desenvolvimento do país e em particular do sistema universitário. Trata-se da ideia fixa na homogeneidade e unicidade de todos os projetos e programas no Brasil, de norte a sul, de leste a oeste. Fixar as mesmas regras, regulamentos, salários, graus, diplomas para um país com a nossa extensão e diversidade é no mínimo incompatível com o Brasil real. O ensino superior admite várias opções. No entanto, a tendência é colocar como meta para todos a universidade de pesquisa. Tentar estabelecer um modelo de universidade de pesquisa para todo o Brasil é impossível, não há recursos suficientes, nem professores com a vocação apropriada e nem estudantes interessados nesse tipo de formação.
 
É necessário que se valorize a formação profissionalizante e técnica. A formação em uma universidade profissionalizante ou em uma escola técnica não é inferior à formação em uma universidade de pesquisa, é diferente. Se considerarmos duas atividades importantes a serem estimuladas na formação superior, a saber, descobrir e inventar, o esforço criativo na universidade profissionalizante ou no instituto tecnológico concentra-se mais no inventar enquanto que na universidade de pesquisa pende para o descobrir. Ambos igualmente importantes. A insistente afirmação da indissociabilidade entre ensino-pesquisa-extensão que se aplica a uma instituição cujas atividades estão orientadas para as coisas de interesse imediato da sociedade realiza-se de modo excelente na universidade profissionalizante e no instituto tecnológico.
 
Ora, como as necessidades sociais são diversas, mormente num país com as dimensões do Brasil, as universidades profissionalizantes precisam ter perfis que atendam à sua vocação regional. Não é razoável estabelecer um programa de formação profissional universal para todo o Brasil no Conselho Nacional de Educação. As universidades, e em particular as universidades profissionalizantes e institutos, devem ser livres para definir seus próprios caminhos.
 
A cultura centralizadora e unificadora não serve à universidade, é diametralmente oposta à sua vocação, e pode ser usada como instrumento de entrave ao progresso científico e tecnológico. Essa liberdade que permite a definição da identidade própria da universidade ou instituto tecnológico não significa relaxamento de qualidade nem ausência de avaliação, significa que a avaliação deve ser feita contra os objetivos traçados pela própria instituição.
 
Outra distorção que tem origem também na tendência à unificação é a escala de salários que privilegia o diploma e não a competência. De fato é muito mais cômodo fixar leis e regras que associem a remuneração ao título do que deixar que o critério da competência prevaleça. Mas na realidade a melhor eficiência alcança-se com competência e não com diplomas.
 
Coragem, ousadia, recuperação da autoestima, escolha autônoma do próprio destino, reduzir aversão ao risco, estar consciente de que errar faz parte da vida assim como corrigir o erro também faz parte, conviver com a diversidade e abandonar os caminhos das esteiras e da subserviência, enfim ser responsavelmente livres. Essa reconstrução dos nossos padrões culturais é indispensável para o progresso do país. A educação em todos os níveis é indispensável para construir um país capaz de oferecer aos seus cidadãos a oportunidade de ser. A educação em todos os níveis é indispensável para contribuir na formação de um mundo pacífico mas diversificado. A educação em todos os níveis é o caminho mais eficaz não apenas para se aprender a minimizar o risco de destruição mas, principalmente, para aprender a maximizar as condições de existência.
 
Devemos continuar com espírito de esperança e trabalhar para pelo menos minimizar os efeitos negativos da nossa cultura. A Universidade, seja de pesquisa seja profissionalizante, tem um papel essencial nesse cenário. Podemos começar sem necessidade de grandes mudanças formais, mas com mudança de atitude e reformas que estão ao nosso alcance. Sugiro para reflexão:
 
1.       Inverter a prioridade do binômio ensino-aprendizado. A universidade não é sobretudo um lugar onde se ensina, mas por excelência um lugar onde se aprende.
2.       Encorajar a opção pela investigação que abre novos caminhos. A verdadeira contribuição da investigação científica – positiva ou negativa – é inversamente proporcional ao número de referências próximas possíveis.
3.       Fortalecer a presença de brasileiros como conferencistas convidados nos encontros nacionais, dividindo essa participação com pesquisadores estrangeiros.
4.       Publicar o melhor de nossos trabalhos nas boas revistas brasileiras.
5.       Reduzir carga horária e número de créditos. Os estudantes não precisam de tanta “aula”, de tantas disciplinas mas de tempo e espaço para estudar e desafios para aprender a andar com as próprias pernas.
6.       Reunir professores, pesquisadores, técnicos e estudantes numa verdadeira comunidade universitária empenhada em fazer avançar o conhecimento, valorizar as coisas do espírito e responder às demandas sociais naquilo que é parte da missão da instituição.
7.       Promover e facilitar o intercâmbio de estudantes e professores nas universidades brasileiras.
8.       Fazer uma revisão profunda na estrutura curricular compatível com a onda de choque cultural provocada pela quebra de barreiras disciplinares que tornam departamentos obsoletos, abolindo regras que atravancam o progresso científico e tecnológico.
 
Sugeri algumas ações, certamente outras são possíveis e necessárias em função das realidades locais. Tudo isso pode ser feito sem esperar por modificações na legislação, nos estatutos ou nos regimentos. Na realidade, as exigências impostas pelo extraordinário alargamento das fronteiras do conhecimento e pela velocidade com que avança não podem esperar pela lentidão dos processos deliberativos a que estamos acostumados. É sim um risco, mas se não tomarmos esse risco ficaremos para trás, a reboque dos países que sabem ousar, decidir e corrigir os erros. São tempos em que, na onda de choque cultural, gerada pela convergência do conhecimento, surfar é preciso, nadar é impossível.


[1] O neuroeconomista Paul Zak, entre outros, tem trabalhos interessantes referentes aos fatores que influenciam a confiança interpessoal.
 
[2] É preciso que se distingam as revistas publicadas sob a responsabilidade das Associações Científicas das revistas abertas por grupos pouco expressivos academicamente. Valorizar o que é nosso não significa dispensar avaliação da qualidade.