30/03/2015

CT&I

Por um olhar atento à aplicação de políticas de ciência e tecnologia “no chão de fábrica”

Aspectos práticos de como a ciência e a tecnologia são constituídas dentro de laboratórios, nas empresas e "no campo" têm tido pouca visibilidade. O atrito entre a maneira como políticas são imaginadas e a forma como acabam se operacionalizando são um rico campo de reflexão.

Marko Monteiro
Departamento de Política Científica e Tecnológica – Unicamp
A reflexão sobre as políticas para ciência, tecnologia e inovação (CT&I) vem ganhando crescente relevância, especialmente no contexto brasileiro contemporâneo. Entre outras polêmicas, esse contexto vem sendo marcado por disputas em torno do papel da inovação tecnológica no crescimento econômico e nas políticas para ciência e tecnologia e como o investimento em CT&I deve ser orientado frente às demandas sociais e ambientais. A isso se relacionam muitas outras questões correlatas, que envolvem desde o ensino superior (Como ampliar o acesso à universidade? Qual o seu papel na ampliação da capacidade científica e tecnológica do país e na formação de mão-de-obra?) até as distintas formas de gerir a exploração de recursos naturais, como o petróleo (Qual deve ser o papel do estado nessa gestão? E das empresas privadas?).
 
Tais questões não dizem respeito apenas a como gastar recursos, mas referem-se a distintos projetos de como levar a cabo o desenvolvimento do país e qual o papel da CT&I nesses processos. Disputas em torno de qual é o desenvolvimento desejado são sempre presentes, pois nem todos compartilham as mesmas percepções do que é bem-estar, desenvolvimento ou mérito. Por isso mesmo, compreender tais percepções e como elas condicionam práticas concretas de tomada de decisão é crucial para podermos refletir sobre os distintos projetos de sociedade que desejamos, que envolvem formas variadas de pensar as políticas de CT&I na sua interrelação com diversas outras áreas, como a ambiental, a educacional e a econômica, entre tantas outras.
 
Uma variável desse debate que tem tido menos visibilidade são os aspectos práticos de como a ciência e a tecnologia são constituídas dentro de laboratórios, no interior de instituições científicas e governamentais, nas empresas e "no campo". As complexas questões colocadas pelo atrito entre a maneira como políticas são imaginadas e a forma como acabam se operacionalizando são um rico campo de reflexão para pesquisadores das diversas ciências sociais. Essa reflexão pode colaborar tanto com análises complexas de como emergem distintas práticas e modelos de fazer CT&I, quanto pode oferecer elementos valiosos para avaliar e até mesmo repensar políticas atuais relativas à ciência e tecnologia, sendo assim um campo potencial de atuação prática em que as ciências sociais participam ainda muito timidamente.
 
As questões colocadas pela forma como políticas são construídas e operacionalizadas na prática, sempre imbricadas em contextos socioculturais específicos, são um desafio crescente num país que tenta retomar o pensamento estratégico sobre o papel da C&T no desenvolvimento em um contexto democrático. O Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp, através do Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciência e Tecnologia[1] (GEICT)[2], vem colaborando com essa tarefa, numa tentativa tanto de contribuir para uma reflexão mais crítica sobre os desafios de se imaginar a C&T nas especificidades da sociedade brasileira atual, como para ajudar no desafio de imaginar políticas que sejam mais inclusivas, participativas e menos destrutivas ao meio ambiente.
 
A importância da dimensão prática não deve ser subestimada quando buscamos compreender os desafios envolvidos tanto na formulação quanto na implementação e avaliação de políticas. E o desenvolvimento de estudos etnográficos e qualitativos que buscam abordar essas políticas mostra o quanto ainda falta compreender no que diz respeito às variáveis socioculturais envolvidas na formatação e operacionalização de políticas de CT&I.
 
Pesquisas nessa área apontam que tais variáveis são relevantes para a compreensão dos valores e visões de mundo que permeiam diferentes políticas, permitindo uma reflexão sobre que tipo de sociedade estamos construindo ao construir sistemas de ciência e tecnologia. Além disso, podemos compreender melhor os problemas e desafios dos próprios processos coletivos e institucionais que levam ao desenvolvimento de políticas específicas (Como grupos de especialistas trabalham e se comunicam? Como seus conhecimentos circulam e são utilizados fora do ambiente acadêmico? De que forma valores e visões de mundo participam das suas práticas?).
 
Algumas pesquisas desenvolvidas no âmbito do GEICT-DPCT mostram a complexidade dessa imbricação entre variáveis socioculturais e as políticas de CT&I e prometem contribuir para o desenvolvimento de expertise científica e prática nesse campo. Essas pesquisas vêm direcionando um olhar qualitativo para, por exemplo, a implantação de indicadores de qualidade que mensuram e classificam publicações científicas, como o Qualis[3]. Nessa pesquisa, ficou claro que um indicador dessa natureza, mais do que classificar, ajuda a orientar e a formatar o que é entendido por qualidade em publicações científicas. Compreender esse aspecto do Qualis, cuja efetividade tem sido objeto de intensos debates no interior da comunidade acadêmica, pode ajudar a construir práticas de avaliação de qualidade na ciência mais reflexivas e mais efetivas.
 
Outra pesquisa recém-concluída pesquisou etnograficamente práticas de gestão em um projeto de pesquisa em rede liderado pela Embrapa[4], mostrando de forma detalhada alguns desafios presentes na construção de grandes projetos colaborativos por essa que é uma instituição pública de maior relevância, tanto científica quanto socioeconômica. Dentre esses desafios, podemos citar as dificuldades dos pesquisadores em atuar ao mesmo tempo como gestores e líderes de equipes científicas; as complexidades em manejar recursos, dadas as particularidades da organização da pesquisa no Brasil; os imensos desafios em promover colaborações efetivas a partir de grupos em diferentes instituições; e os elementos humanos que ajudam a promover a construção de ferramentas tecnológicas inovadoras na gestão ambiental, cuja compreensão ajudaria na promoção de outras iniciativas bem-sucedidas.
 
Outras pesquisas atuais ainda em andamento no GEICT mostram o potencial desse olhar etnográfico voltado para a prática na compreensão dos desafios colocados às políticas de C&T atuais: a controvérsia em torno do Marco Civil da Internet[5], que envolve governo, empresas e cientistas na definição de regras que podem reorientar tanto o mercado da internet quanto as próprias formas de interação na rede (envolvendo a ciência e a nossa “socialidade” mais ampla); as pesquisas relativas a modelos climáticos[6], que ao construírem uma compreensão específica de fenômenos como mudanças climáticas, informam políticas das mais diversas ordens, além de ajudar a redefinir a própria pesquisa científica em torno do clima de forma mais ampla; as políticas nucleares brasileiras no período posterior ao acidente em Fukushima[7], no Japão, que mostram a reconstrução de ideias de risco e oportunidade em torno da tecnologia nuclear, ajudando a compreender a política tecnológica dos governos recentes no seu contraste com o momento de implantação dessa tecnologia; e pesquisas sobre o papel da CT&I na arena ambiental constituída em torno da exploração do pré-sal no Brasil[8].
 
Entre outros elementos, essas pesquisas mostram os desafios que surgem quando pensamos na implementação de políticas em seu nível mais operacional, que dizem respeito também aos processos interativos (portanto “sociais”) da sua construção em termos mais conceituais e políticos. Por que não se chegam aos resultados desejados ou previstos? Como compreender por que determinados aspectos de uma política funcionam melhor do que outros, e por que isso ocorre? Quais atores e problemas são privilegiados e quais são marginalizados no momento em que uma determinada política é planejada e implantada? Como podemos entender os processos que levam à operacionalização da política no campo, no chão da fábrica ou para um usuário final de um produto ou serviço? Como se relacionam os usuários com esses artefatos, e por que muitas vezes essa relação é problemática?
 

Investir na compreensão mais qualitativa da construção de políticas de CT&I na prática é assim uma forma de promover não somente uma reflexão mais crítica e rica dos processos que ajudam a orientar a formatação de tais políticas, mas de oferecer ferramentas para a avaliação e possível reorientação de políticas de forma a que se tornem mais efetivas, mais democráticas e sustentáveis no longo prazo.



[1] http://geict.wordpress.com/category/geict/
[2] O GEICT é parte do Laboratório de Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia, ao lado do Grupo ESCT, cujas líderes são as professoras Lea Velho e Maria Conceição da Costa. O LabESCT é sediado no Instituto de Geociências.
[3] FRIGERI, Monica; MONTEIRO, M.. “Qualis Periódicos: indicador da política científica no Brasil?”. Estudos de Sociologia 19(37):299-315, 2015.
[4] GUIMARÃES, Maria Katy Anne. A gestão que não aparece: estudo etnográfico de um projeto de pesquisa em rede da Embrapa. Dissertação de Mestrado em Política Científica e Tecnológica, Unicamp. Campinas, 2013.
[5] SANTOS, Vinicius Wagner Oliveira. “Governança da internet no Brasil e no mundo: a disputa em torno do conceito de neutralidade da rede”. ComCiência, Campinas, n. 158, Maio 2014 .   Disponível em . Acessado em 26 Março, 2015.
[6] MIGUEL, Jean; MONTEIRO, M.. “Por que devemos nos interessar por modelos climáticos?”. ClimaCom Cultura Científica 1(1):6-17, 2014.
[7] CAMELO, A. P. . “Crise nuclear? Globalização de incertezas e riscos e o contexto brasileiro”. In: VII Congresso Português de Sociologia, Atas - VII Congresso - Sociedade, Crise e Reconfigurações. Lisboa/Portugal: Associação Portuguesa de Sociologia, 2012. p. 1-14..
[8] Pesquisa de pós doutorado de José Eduardo Viglio do Nepam/Unicamp em parceria com o GEICT.