24/10/2013

revista Ensino Superior nº 11 (outubro-dezembro)

O método científico nos primórdios da Universidade: o caso de Andreas Vesalius de Bruxelas

A obra anatômica de Vesalius (1514 – 1564) constitui um dos maiores tesouros da civilização e da cultura ocidentais

Por Manoel Tosta Berlinck
Ph.D. pela Cornell University, EUA; professor titular aposentado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp; psicanalista; professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), onde dirige o Laboratório de Psicopatologia Fundamental; editor responsável da Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental; presidente da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental (AUPPF)
A publicação em 1543 do De Humani Corporis Fabrica assinala o início da ciência moderna
 
A Universidade é uma organização social milenar voltada para a produção, a transmissão e a difusão da cultura. Como toda organização social, a Universidade passa por mudanças ao longo do tempo.
 
Até o início do século XVI, muito pouco havia sido descoberto sobre anatomia e fisiologia. O fato de não haver na Escola de Medicina de Paris mestres de anatomia prática que satisfizessem as exigências do ambicioso e impaciente estudante levou-o a procurar novas informações diretamente Segundo o grande medievalista francês Etienne Gilson (1998, p. 483), Universitas, Universidades, não designa, na Idade Média, o conjunto das faculdades estabelecidas numa mesma cidade, mas o conjunto de pessoas, mestres e alunos, que participam do ensino dado nessa mesma cidade. Portanto, nem sempre se tem o direito de concluir, da palavra universitas, a existência de uma universidade organizada num lugar determinado; basta que se tenha tido a necessidade de se dirigir ao conjunto de mestres e alunos residentes no mesmo lugar para que a expressão tenha sido naturalmente empregada. Um studium generale, ou universale, ou ainda commune, não é um lugar em que o conjunto dos conhecimentos é estudado, mas um centro de estudos onde alunos de origens bastante diversas podem ser recebidos. Ainda segundo Gilson (1998), a expressão se aplicava sobretudo às escolas abertas pelas ordens religiosas nas cidades que podiam ser centros importantes do ponto de vista da ordem, mas que não possuíam universidade; eram mandados ao studium particulare de uma província os alunos dessa mesma província e ao studium generale de uma província da ordem alunos de todas as províncias. Um studium solemne era um centro de estudos particularmente importante, célebre e frequentado, embora não fosse necessariamente generale.
 
A primeira universitas a se tornar um corpo regularmente organizado e um ser coletivo análogo a nossas universidades modernas é a de Bolonha, Itália. Fundada em 1088, ela foi, antes de tudo, um centro de estudos jurídicos (de direito canônico) e só obteve uma faculdade de teologia regular em 1352, do papa Inocêncio VI. É bom lembrar que mestres e alunos desse centro foram, em sua grande maioria, canonizados pela Igreja, tornando-se santos. Em outras palavras, a Universidade de Bolonha era um centro de formação jurídico/teológica visando a santidade. (Gilson, 1998, p. 483)
 
Do ponto de vista filosófico e teológico, foi a Universidade de Paris, fundada aproximadamente em 1170, a primeira a se constituir. Sua influência no século XIII foi tamanha, que eclipsou completamente Bolonha, sua irmã mais velha, e parcialmente Oxford, sua irmã mais nova. (Gilson, 1998, p. 483)
 
Até o século XIV, a universidade empenhava-se nos estudos das línguas clássicas – grego, latim e hebraico –, na transmissão da cultura grega e latina e, principalmente, no ensino catedrático da tradição cristã.
 
Sua obra-prima, o De Humani Corporis Fabrica, e o texto que a acompanha, o Epitome, editados em Basileia em 1543, estabeleceram o início da ciência e da pesquisa modernas com base na observação direta dos fenômenos Segundo Lacouture (1994), a universidade de Paris reunia, no século XIV, cerca de doze mil alunos, a metade dos quais estrangeiros. Era uma república de mestres composta por quatro faculdades – teologia, medicina, direito e artes (que hoje chamaríamos de letras e ciências). "Detalhe revelador da evolução provocada pelo progresso do humanismo: esta última predomina sobre as outras três, cujo reitor é escolhido entre seus mestres, na igreja de Saint-Julien-le-Pauvre, e passa a ser obedecido pelo conjunto de professores e estudantes como um soberano". (Lacouture, 1994, p. 57)
 
Os alunos se diferenciavam por sua origem geográfica e por categoria de certo modo social, determinada em todo caso pela contribuição que pagavam ao diretor. (Lacouture, 1994, p. 58)
 
O sino da Universidade tocava às quatro horas da manhã e a primeira aula iniciava uma hora mais tarde. Somente após a missa, celebrada às sete, era distribuído um pão tirado do forno. Das oito às dez, a "grande aula" era seguida por "exercícios" até o almoço, servido às onze horas. No fim da refeição, eram lidas as admoestações públicas e anunciados os castigos corporais. O jantar era às seis horas e depois havia nova sessão de arguições, "saudação" na capela e toque de recolher às nove horas. (Lacouture, 1994, p. 59)
 
A recreação era prevista apenas duas vezes por semana, às terças e quintas-feiras após a aula da tarde: os jovens então eram conduzidos à ilha de Notre-Dame, atual ilha Saint-Louis, na época desabitada, onde podiam praticar livremente jogos e exercícios corporais. Os feriados, numerosos, eram dedicados às cerimônias religiosas. (Lacouture, 1994, p. 59)
 
As férias frequentemente eram chamadas vindimas, por se confundirem com a época em que ocorriam – do final de agosto ao início de outubro – o cuidado com os vinhedos. (Lacouture, 1994, p. 60)
 
As salas de aula, com exceção da cátedra, não tinham bancos nem cadeiras de espécie alguma; estavam juncadas de palha durante o inverno e de grama fresca no verão. Os alunos tinham que chafurdar nessa cama de palha "para praticar ato de humildade". Seu uniforme, que consistia numa veste longa amarrada na cintura por uma corda, servia para recolher a imundície e também para cobri-la. (Lacouture, 1994, p. 60)
 
Mencionamos há pouco os castigos corporais. Perderam um pouco da ferocidade depois do fim da Idade Média. Mas no capítulo XXVI, denominado "Da educação das crianças", dos Ensaios escritos em meados daquele século, Montaigne falará ainda dos "gritos de crianças supliciadas e dos mestres cegos de ira". (Montaigne, 2000, p. 216-265)
 
Exatamente na época em que o humanismo desabrochava, os mestres sobem na cátedra de palmatória na mão. Toda "falta grave" – como falar em francês em vez de latim – é punida, no refeitório, com o açoite. Um pedagogo do tempo queixa-se dos "progressos da indulgência", e declara que a juventude estará perdida se se renunciar a domar sua arrogância por meio de pancadas. E Du Boulay assim resume o princípio predominante: "Martirizar a carne para melhor gravar as coisas no espírito e no coração". (Lacouture, 1994, p. 61)
 
Gilson (1998) admite que é possível discernir três ordens de causas entre as que contribuíram para a fundação e o desenvolvimento da Universidade de Paris.
 
A ilustração, o texto e o aspecto tipográfico mesclam-se para compor um inigualável trabalho de arte criativa: a personificação do espírito da Renascença com sua nova ênfase voltada para o futuro Em primeiro lugar e antes de tudo, a existência de um meio escolar extremamente florescente desde o século XII. O ensino ministrado por mestres como Abelardo, cuja reputação era universal, contribuiu por muito tempo para atrair para Paris um grande número de alunos originários da Itália, da Alemanha e particularmente da Inglaterra. Desde o fim do século XII, as escolas haviam se agrupado nas ilhas da Cité e nas encostas da montanha Sainte-Geneviève, sendo incontestável que, sob a pressão dos interesses comuns que os uniam e dos perigos comuns que os ameaçavam, mestres e alunos começaram a tomar, por si mesmos, consciência de sua unidade. (Gilson, 1998, p. 484)
 
Por outro lado, dois poderes, nem sempre coincidentes e cada vez mais diversos em seus interesses, tinham a preocupação em proteger essa massa de homens de estudo para melhor dominá-la: os reis de França e os papas.
 
Os reis de França não podiam deixar de ver o quanto a contínua circulação daqueles provincianos e daqueles estrangeiros que vinham de todas as partes do reino e da Europa, a fim de se instruírem em todas as ordens de ciência, conferia brilho à sua capital e aumentava a influência deles fora desta. Para que o studium parisiense fosse próspero, era preciso garantir a tranquilidade dos estudos, logo a salvaguarda corporal e a independência espiritual de seus membros; numa palavra, era preciso organizá-lo.
 
Mas parece que, nessa obra de organização, as circunstâncias favoráveis que o meio e as boas disposições dos reis de França propiciavam representaram apenas um papel secundário.
 
A fim de obter peças ósseas, Vesalius tornou-se assíduo frequentador de Montfaucon, um aterro onde se encontravam as melhores forcas do reino e para o qual eram levados os corpos de todos os criminosos executados em diversos pontos da cidade O verdadeiro fundador da Universidade de Paris é Inocêncio III, e os que garantiram seu desenvolvimento ulterior dirigindo-a e orientando-a são os sucessores desse papa e, antes de todos, Gregório IX. A Universidade de Paris ter-se-ia constituído sem a intervenção dos papas, mas é impossível compreender o que lhe assegurou um lugar único entre todas as universidades medievais se não se levar em conta a intervenção ativa e os desígnios religiosos nitidamente definidos do papado. (Gilson, 1998, p. 484/485)
 
De qualquer forma, a existência de dois poderes – o religioso, através do papado e o estatal, através do reinado – constituiu a principal força para a emergência paulatina do humanismo.
 
A caminho de Montfaucon, Vesalius passava pelo Cemitério dos Inocentes, antigo local de sepultamento das vítimas de praga. Nos ossários, Vesalius e seus colegas encontraram "um abundante suprimento quando começamos a estudar os ossos" A palavra Universidade evoca, de fato, em nossos espíritos, a ideia de um edifício ou de um conjunto de edifícios em que mestres e alunos efetuam o ensino e o estudo de certas ciências por amor a essas mesmas ciências. É certo que o ideal dos que ministram esse ensino, bem como dos que o recebem, não se limita à sua própria especialidade e que suas curiosidades de especialistas não excluem interesses universais e humanos. Pelo menos, esses interesses são rigorosamente homogêneos às curiosidades científicas sobre as quais se apoiam e que subordinam a si. Nossas universidades modernas são organizadas antes de tudo com vista à transmissão e ao desenvolvimento das diversas disciplinas que nelas são ensinadas. O mesmo não se dá no que diz respeito à Universidade de Paris no século XIII. Ao contrário, ela se caracteriza por estar continuamente dividida entre duas tendências contraditórias, uma das quais teria levado a fazer dela um centro de estudos puramente científicos e desinteressados, enquanto a outra buscava subordinar esses estudos a finalidades religiosas e a pô-los a serviço de uma verdadeira teocracia intelectual. (Gilson, 1998, p. 485)
 
Essa situação contraditória e, muitas vezes, conflituosa, vai abrindo espaço para a pesquisa voltada para o mundo que se distancia do divino, ou seja, com o humanismo, o mundo passa a atrair o interesse e o divino vai se circunscrevendo.
 
"Tendo aprendido por longa observação, nós, com olhos vendados, ousávamos apostar que, em meia hora, nenhum osso nos seria apresentado sem que pudéssemos identificá-lo pelo toque. Nós, que desejávamos aprender, fazíamos isso com diligência porque era grande a falta de apoio dos mestres" A obra anatômica de Andreas Vesalius de Bruxelas (1514 – 1564) é a grande manifestação do crescente interesse humanístico existente na Universidade de Paris. Ela constitui um dos maiores tesouros da civilização e da cultura ocidentais. Sua obra-prima, o De Humani Corporis Fabrica, e o texto que a acompanha, o Epitome, editados em Basileia (Suíça) em 1543, estabeleceram, com surpreendente subitaneidade, o início da ciência e da pesquisa modernas com base na observação direta dos fenômenos. Na história da Medicina, Vesalius tem sido incluído entre os grandes médicos e descobridores, como Hipócrates, Galeno, Harvey e Lister. Essa obra de Vesalius, publicada no Brasil, em primorosa edição, por um consórcio de editoras composto por Ateliê, Unicamp e Imprensa Oficial do Estado, em 2003, além de ser um dos livros mais notáveis que a ciência já conheceu, é também um dos volumes mais preciosos e magníficos da história da tipografia. Nele, a ilustração, o texto e o aspecto tipográfico mesclam-se para compor um inigualável trabalho de arte criativa: a personificação do espírito da Renascença com sua nova ênfase voltada para o futuro.
 
Em 1528, após prévia educação adquirida em época e local desconhecidos, Andreas Vesalius ingressou na Universidade de Louvain. Ali recebeu sólida base de latim e, possivelmente, algumas noções de grego, e deu continuidade à leitura, iniciada em casa, das obras científicas dos escritores medievais. (Saunders & O’Malley, 2003)
 
Ver um mestre descer de sua cátedra acadêmica para dissecar e fazer demonstrações pessoais no cadáver era algo totalmente inusitado. Alunos, médicos e eruditos enchiam suas aulas Três anos depois, em 1531, por volta dos dezessete anos, Vesalius foi transferido para o Collegium Trilingue de Louvain, mais progressista, fundado em 1517 sob a influência do novo humanismo. Seguindo os conceitos humanísticos, essa escola tinha como objetivo transmitir aos jovens as bases daquelas que, na época, eram as três chaves mais importantes para a educação e a cultura: o latim, o grego e o hebraico. Com essas chaves seriam abertas as portas para o conhecimento universal e a cultura renasceria para uma nova vida através da restauração de um passado que se considerava morto. Se Vesalius não se tornou um erudito, na acepção universalista que esta palavra possuía no século XVI, isso se deve a suas ambições médicas e à sua mente voltada desde cedo para o caminho da ciência. Em 1533, ele se dirige à Paris para estudar medicina.
 
Não obstante seu renome e grande influência na Europa setentrional, a Universidade de Paris era uma instituição extremamente conservadora, vale dizer, teológica e voltada para as culturas grega e latina. Tal conservadorismo estendia-se a sua Escola de Medicina e colocava o estudo médico em considerável desvantagem quando comparado ao grande progresso que se fazia principalmente nas universidades italianas.
 
Atualmente, pode-nos ser difícil entender a inovação de Vesalius. Poucas obras de anatomia haviam sido ilustradas até então e, naquelas que possuíam ilustrações, os desenhos nada mais eram que símbolos ou decorações Até o início do século XVI, muito pouco havia sido descoberto sobre anatomia e fisiologia. O fato de não haver na Escola de Medicina de Paris mestres de anatomia prática que satisfizessem as exigências do ambicioso e impaciente estudante levou-o a procurar novas informações diretamente e, assim, tirar talvez melhor proveito por iniciativa própria. A fim de obter peças ósseas, tornou-se assíduo frequentador de Montfaucon e do Cemitério dos Inocentes. O primeiro desses locais era um aterro, não muito distante dos muros setentrionais da antiga Paris, onde já no século XII fora construído um patíbulo. Na época de Vesalius encontravam-se em Montfaucon as melhores forcas do reino. Não se tratava de um local comum, mas de enorme ossário, encimado por uma colunata de dezesseis pilares de pedra, com dez metros de altura, ligados por vigas de madeira. Para esse lugar assustador eram levados os corpos de todos os criminosos executados em diversos pontos da cidade, onde deviam permanecer pendurados nas vigas de madeira até que sua desintegração permitisse a colocação de seus restos no ossário. Esse lugar era frequentado por corvos e cães vadios, mas oferecia riquezas excepcionais para o ávido anatomista. A caminho de Montfaucon, Vesalius passava pelo Cemitério dos Inocentes, antigo local de sepultamento das vítimas de praga. A reconstrução do muro da cidade de Paris, em 1186, obrigou a exumação de muitos dos mortos desse cemitério e a remoção de seus ossos para uma série de ossários construídos especialmente para esse fim. Naqueles ossários, Vesalius e seus colegas encontraram, como ele mesmo descreveu, "um abundante suprimento quando começamos a estudar os ossos [ ... ] e tendo aprendido por longa e cansativa observação, nós, com os olhos vendados, às vezes ousávamos apostar com nossos companheiros que, no período de meia hora, nenhum osso nos seria apresentado [ ... ] sem que pudéssemos identificá-lo pelo toque. Nós, que desejávamos aprender, fazíamos isso com muita diligência porque era grande a falta de apoio dos mestres nessa parte da medicina". (Apud Saunders & O’Malley, 2003, p. 20-21)
 
Vesalius refere-se aqui a um princípio epistemológico da ciência: observar não quer dizer ver, quer dizer representar na mente o visto. Essa operação implica a passagem da sensorialidade para a imaginação.
 
Após permanecer aproximadamente três anos em Paris, Vesalius deixou a Escola de Medicina sem se graduar e retornou para Louvain. A causa dessa partida, em 1536, foi a eclosão de uma guerra e a invasão da Provence por Carlos V, e Vesalius, na condição de súdito imperial, foi obrigado a retornar aos Países Baixos. Imediatamente voltou, uma vez mais, a dedicar-se à sua disciplina favorita, na companhia de Regnier Gemma (1508 – 1555), posteriormente reconhecido como matemático, astrônomo e médico. Escreveu Vesalius:
 
Muitos dos principais médicos da época de Vesalius opunham-se fortemente à ilustração da palavra impressa, sob a alegação de tratar-se de fato inexistente na época dos gregos clássicos, por acreditarem que a figura degradaria a erudição do texto "Enquanto andava à procura de ossos pelas estradas rurais, onde eventualmente, para grande conveniência dos estudantes, todos os indivíduos executados costumam ser depostos, deparei-me com um cadáver ressecado. [ ... ] Os ossos estavam totalmente expostos, mantendo-se unidos apenas pelos ligamentos, e tinham sido preservadas somente a origem e a inserção dos músculos. [ ... ] Com o auxílio de Gemma, escalei o poste e destaquei o fêmur do osso ilíaco. Quando puxei a peça com força, o omoplata, os braços e as mãos também se destacaram, embora faltassem os dedos de uma das mãos, as duas rótulas e um dos pés. Depois de trazer secretamente para casa as pernas e os braços e após sucessivas idas e vindas (deixei para trás a cabeça e todo o tronco), permaneci durante toda a noite fora dos limites da cidade a fim de conseguir pegar o tórax, que se encontrava firmemente preso por uma corrente. Eu ardia num desejo tão grande [ ... ] que não tive medo de roubar, no meio da noite, aquilo que eu tanto queria [ ... ] No dia seguinte, transportei pouco a pouco os ossos para casa por outro portão da cidade [ ... ] e montei aquele esqueleto que está preservado em Louvain, na casa de meu mui querido e velho amigo Gisbertus Carbo". (Apud Saunders & O’Malley, 2003, p. 20)
 
Nesta passagem, Vesalius revela sua paixão pela pesquisa que alimenta a ciência.
 
Foi com essas dificuldades e perigos que Vesalius obteve seu primeiro esqueleto articulado. Por razões de discrição, anunciou que conseguira o espécime em Paris, embora, como ficou claro, o governo local não se mostrasse particularmente contrário a suas buscas anatômicas.
 
Se não os mestres, pelo menos os alunos se haviam conscientizado rapidamente do valor e do poder da demonstração anatômica gráfica A volta de Vesalius a Louvain foi marcada, de maneira geral, por relações amistosas. Houve, contudo, uma nota dissonante que terminou por ser de grande importância para sua carreira. Já em 1514, travara-se em Paris uma disputa sobre qual veia se deveria seccionar numa sangria. Em vista do uso generalizado da venissecção como procedimento terapêutico, a controvérsia tornou-se áspera e generalizada. Em termos mais simples, questionava-se se a veia a seccionar deveria ser a do lado afetado do corpo ou a do lado oposto. Isso representava, respectivamente, o ponto de vista hipocrático e o árabe. Não é de admirar que Vesalius, um humanista incipiente, aceitasse a opinião grega (hipocrática), o que o levou a uma disputa acirrada e desmedida com Jeremiah Drivère (1504-1554). Este professor, que latinizara o nome para Thriverius Brachelius, se graduara em filosofia em Louvain e se dedicara em seguida à medicina. Era considerado um professor muito capaz, de grande erudição e influência entre os médicos locais e ocupava um cargo criado pela fusão de duas das quatro cadeiras públicas de medicina da Universidade de Louvain. Em 1532 e em 1535, Drivère escreveu dois trabalhos sobre a sangria, nos quais apoiava a absurda prática árabe. Vesalius, por lealdade a seus mestres de Paris, que foram ridicularizados nessa obra, atacou incisivamente as conclusões de Drivère em assembleia pública. Tal ato foi muito mal avaliado, já que Drivère era um homem imoderado, que, como escreveu Vesalius, "costumava proclamar sem qualquer pudor que tinha de usar palavras chulas para satisfazer esses bárbaros, para que nós, ainda não candidatos, não fôssemos infectados por esse tipo de decadência pestífera". Consequentemente, Louvain não poderia oferecer nenhum futuro ao jovem aspirante a anatomista. (Saunders & O’Malley, 2003, p. 21)
 
Vesalius, de modo extremamente prático, tinha sempre o cuidado de dedicar suas obras a pessoas que pudessem ser importantes para sua carreira. Parece que jamais pensou em recompensas materiais imediatas, mas, sim, na influência que a pessoa pudesse vir a exercer a seu favor no futuro Universidade de Pádua
Vesalius partiu, então, para a Itália, onde acreditava, acertadamente, haver maiores oportunidades para seus estudos de anatomia e de medicina, assim como melhores possibilidades de obter o doutorado em medicina. A grande atração era a Universidade de Pádua, que, na época, reinava suprema, não apenas no âmbito das artes, da literatura e da filosofia, mas também como o centro da renascença científica. A Universidade de Pádua, quase desde sua fundação em 1222, começou a desempenhar um papel de importância crescente na vida intelectual europeia. A profunda influência exercida por Pietro d’Abano (1250 – 1316), que afetou até mesmo Dante Alighieri, prosseguiu até o início do século XVI através de Gentile da Foligno (morto em 1348), Giorgio Valla (que teve seu apogeu em 1450), Ermolao Barbaro (morto em 1493) e Alessandro Benedetti (1460 – 1525), preparando o caminho para o advento do humanismo médico. O desenvolvimento de um espírito progressista e crítico iria fazer da Escola de Medicina a maior glória de Pádua. (Saunders & O’Malley, 2003, p. 21)
 
Como Pádua estivesse sob o domínio de Veneza, era natural que Vesalius fizesse frequentes visitas a essa famosa cidade, distante pouco mais de trinta quilômetros. Foi lá que começou a visitar alguns doentes sob a tutela de J. B. Montanus (dela Monte, 1489 – 1551), professor de medicina de Pádua, que reintroduziu um tipo de instrução clínica prática quase inexistente desde os tempos de Hipócrates. É possível que Vesalius, durante uma visita a Veneza, tenha conhecido seu compatriota, o artista Jan Stefan van Kalkar, que foi mais tarde considerado o desenhista de algumas ilustrações de suas publicações. Kalkar chegara havia pouco tempo a Veneza, onde foi aluno de Ticiano. (Saunders & O’Malley, 2003, p. 21)
 
Em 5 de dezembro de 1537, a Faculdade de Medicina da Universidade de Pádua, após examinar Vesalius, agraciou-o, em reunião solene, com o grau de Doutor em Medicina cum ultima diminutione ("com a maior distinção"). No dia seguinte, após fazer uma dissecção, o "Ilustre Senado de Veneza" nomeou-o Professor de Cirurgia, título que, na época, implicava a responsabilidade de também ensinar anatomia. A que influências deveu tão precoce reconhecimento não sabemos. Certamente, a despeito de sua juventude, pois tinha apenas vinte e três anos, parece ter causado profunda impressão nos membros do Senado e em seus mestres. Pode também ter sido de valia a recomendação de amigos influentes na Corte Imperial. (Saunders & O’Malley, 2003, p. 21)
 
Vale lembrar que os primeiros mestres ensinavam o povo sobre as normas e os valores predominantes na época através da cátedra. Com o tempo, a Universidade voltou-se, também, para a preparação de profissionais, isto é, pessoas que desempenham com competência uma atividade prática. Mais recentemente, a Universidade passou, também, a formar cientistas, ou seja, pessoas capazes de realizar pesquisas científicas. (Ortega y Gasset, 1946)
 
Vesalius, porém, era um precursor. Com a energia que lhe era peculiar, o jovem e ambicioso Professor de Cirurgia, encorajado por seu amigo e mestre de filosofia Marcantonio de Genova, iniciou suas obrigações acadêmicas com sucesso acima das expectativas. Ver um mestre descer de sua cátedra acadêmica para dissecar e fazer demonstrações pessoais no cadáver era algo totalmente inusitado. Alunos, médicos e eruditos enchiam suas aulas. Muitos que chegaram a discutir as declarações desse jovem impetuoso foram convencidos pela demonstração visual. Para ilustrar seus argumentos, Vesalius passou a fazer uso de grandes desenhos anatômicos. Alguns de seus desenhos foram publicados mais tarde, separadamente ou em livro. (Saunders & O’Malley, 2003, p. 21-22)
 
Atualmente, pode-nos ser difícil entender a inovação da façanha de Vesalius. Poucas obras de anatomia haviam sido ilustradas até então e, naquelas que possuíam ilustrações, os desenhos nada mais eram que símbolos ou decorações. Muitos dos principais médicos da época de Vesalius opunham-se fortemente à ilustração da palavra impressa, sob a alegação de tratar-se de fato inexistente na época dos gregos clássicos por acreditarem que a figura degradaria a erudição do texto. A incapacidade técnica e a falta de evolução dos padrões de reprodução reforçavam essa oposição, porém era óbvio que, se não os mestres, pelo menos os alunos se haviam conscientizado rapidamente do valor e do poder da demonstração anatômica gráfica. Os impressores não ficaram atrás e procuraram copiar tanto o procedimento técnico quanto as gravuras anatômicas disponíveis, para suprir o novo e lucrativo mercado das publicações. (Saunders & O’Malley, 2003, p. 22)
 
A fim de proteger seus interesses e evitar que os alunos utilizassem figuras de qualidade inferior, Vesalius foi levado a publicar seus desenhos. As seis gravuras impressas sem título em 1538, conhecidas agora pelo nome de Tabulae Anatomicae Sex, foram a primeira publicação anatômica de Vesalius. Obtiveram sucesso instantâneo, tendo em vista o surgimento imediato de cópias em diversos centros europeus. Na realidade, essas xilogravuras estabeleceram um novo critério para o uso da ilustração na biologia e também para as artes gráficas. (Saunders & O’Malley, 2003, p. 22)
 
Vesalius, de modo extremamente prático, tinha sempre o cuidado de dedicar suas obras a pessoas que pudessem ser importantes para sua carreira. Parece que jamais pensou em recompensas materiais imediatas, mas, sim, na influência que a pessoa pudesse vir a exercer a seu favor no futuro. (Saunders & O’Malley, 2003, p. 22)
 
A publicação, em 1543, do De Humani Corporis Fabrica assinala o início da ciência moderna. Trata-se, indubitavelmente, da maior contribuição isolada às ciências médicas, mas é muito mais do que isso: é um magnífico exemplar de arte criativa, a combinação perfeita de forma, tipografia e ilustração. (Saunders & O’Malley, 2003, p. 24)
 
Dentre as gravuras do primeiro livro que compõem essa obra duas se destacam: a gravura 21 apresenta uma representação do aspecto anterior dos ossos do corpo humano conjuntamente articulados. Esse esqueleto contém o braço direito apoiado numa pá e o esquerdo espalmado. O esqueleto apresenta, além disso, uma expressão extremamente cansada. A gravura 22 é um desenho do aspecto lateral dos ossos do corpo humano, despojado das demais estruturas que neles se fixam e colocadas numa peculiar posição. O esquelético Hamlet junto ao túmulo, em seu monólogo sobre algum pobre Yorick, constitui, talvez, a figura mais admirada da série de gravuras vesalianas referente ao estudo dos ossos. Na versão original desta gravura estava escrita, na parte lateral do túmulo, a seguinte epígrafe: "Vivitur ingenio, caetera mortis erunt" (O gênio vive para sempre, tudo o mais é mortal).
 
O significado da mensagem que Vesalius pretendia transmitir com esses expressivos desenhos está perdido no tempo. Porém, sua inusitada presença num exigente trabalho de anatomia solicita especulação sobre seu sentido.
 
É evidente que esses desenhos não foram feitos para divertir o observador. Trata-se, então, de uma importante referência sobre a "natureza" dos ossos. Vesalius parece nos dizer que são os ossos os responsáveis pela expressão, ou seja, que os ossos são o locus do afeto (pathos).
 
De qualquer maneira, a obra de Andrea Vesalius revela, de forma magnífica e exemplar, que a pesquisa científica moderna ocorrendo no início do Renascimento, antes mesmo de Leonardo da Vinci (1452 – 1519) e de Michelangelo (1475 – 1564), é uma intensa atividade laboriosa visando a obtenção de um conhecimento cada vez mais afastado da religiosidade e das diversas formas de ideologia. É, também, um afastamento do saber clássico e de suas naturais imperfeições. Entretanto, para se afastar do classicismo grego e latino era preciso conhecê-lo profundamente. O aprendizado do grego, do latim e do hebraico era necessário para o íntimo acesso desse conhecimento. A aproximação da realidade do mundo antigo ocorre através da linguagem. A realidade é, assim, fenômeno percebido inicialmente pelos sentidos. Mas, o fenômeno só se constitui pela representação.
 
Vesalius utiliza a observação como recurso para a apreensão da realidade. Desde de Hipócrates e de Galeno, a observação constitui o fundamento para se obter novos conhecimentos. Vesalius, tendo aderido ao humanismo, sai da sala de aula – o ambiente onde ocorre a relação mestre/aluno – e se dirige para o mundo: primeiro deixa Louvain dirigindo-se para Paris. O renome da Universidade francesa era um grande atrativo para ele. Lá chegando, entretanto, observa que o ensino de anatomia era baseado na relação mestre/aluno, que considerava insuficiente. Vesalius decide, então, mais uma vez, se arriscar e sai à procura de estímulos sensoriais (ossos e suas articulações), ou seja, do esqueleto.
 
A partir daí, ele se envolve num laborioso processo de representação que se denomina anatomia.
 
Aluno e mestre: até a precoce formatura
A obra de Andrea Vesalius revela, também, que o conhecimento científico pretende fornecer novas e complexas formas de relacionamento com a realidade. Neste sentido, afasta-se daquilo que já é sabido, apoiando-se nele. O cientista deve, portanto, iniciar sua formação como aluno, isto é, (do latim alumnus, alumnié) ou discente, o indivíduo que recebe formação e instrução de um ou vários mestres para adquirir ou ampliar seus conhecimentos.
 
Segundo a etimologia, o termo aluno significa literalmente "criança de peito", "lactante" ou "filho adotivo" (do lat. alumnus, alumni, proveniente de alere, que significa "alimentar, sustentar, nutrir, fazer crescer"). Daí o sentido de que aluno é uma espécie de lactante intelectual; e não alguém "sem luz", como afirma uma etimologia falsificada que lê a- como prefixo de negação (note que o prefixo é grego) e lun- como proveniente do latim lumen, luminis (luz). O termo aluno aponta, portanto, para a ideia de alguém imaturo, que precisa ser alimentado na boca e exige ainda muitos cuidados paternais e maternais.
 
A própria natureza do aluno corresponde à natureza do mestre. Não há aluno sem mestre. Não há mestre sem aluno. O mestre é aquele que detém o alimento e "dá de comer" ao aluno, ou seja, detém um saber instituido e, por isso, imutável.
 
Em sentido figurado ou metafórico, porém, aluno significa simplesmente "discípulo" ou "pupilo", alguém que aprende de forma coletiva em estabelecimento de ensino pela mediação de um ou vários mestres.
 
A noção de aluno possui dupla implicação. Por um lado, aluno é visto, na sua imaturidade, como matéria, ou seja, substância sem forma e, por outro lado, é concebido, na sua passividade informal, como paixão do mestre.
 
O mestre, porque só é se tiver alunos, é apaixonado pelo aluno, existe no pathos, ou seja, nos afetos, nas emoções, no sofrimento, no martírio, no vício dominador como sinônimo de tendência – e mesmo de uma tendência bastante forte e duradoura para dominar a vida psíquica.
 
O mestre é dominado por um sentimento, gosto ou amor intensos a ponto de ofuscar a própria razão; revela um grande entusiasmo por ensinar, intensa predileção, inclinação emocional violenta capaz de dominar completamente sua conduta e afastá-la da capacidade de autonomia e escolha racional. O caso do grande mestre medieval Abelardo é um ótimo exemplo da paixão do mestre.
 
Ora, o mestre, apaixonado pelo ensino do aluno, pelo transformar matéria em forma, traz, em sua franja, o sentido etimológico de passividade (paschein, pathos), sentido lembrado por Descartes no começo do Tratado das paixões: "Tudo o que se faz ou acontece de novo é geralmente chamado pelos filósofos de paixão relativamente ao sujeito a quem isso acontece, e de ação relativamente àquele que faz com que aconteça" (Descartes 1998, p. 28).
 
Aqui, é bom lembrar mais uma vez, Descartes recorda a definição aristotélica do agir e do padecer. Esses dois conceitos são inseparáveis, mas cada um deles designa uma potência bem distinta. Aristóteles (2006) examina essa questão em De Anima, tratado sobre a vida, o movimento. Aprendemos, então, que padecer é inferior a agir por dois motivos. Em primeiro lugar, é próprio de o mestre encerrar em si mesmo um poder de mover ou mudar, do qual a ação é a atualização; o ajuste está naquilo que faz ocorrer uma forma. Diz-se aluno, ao contrário, àquele que tem a causa de sua modificação em outra coisa que não ele mesmo. A potência que caracteriza o aluno não é um poder-operar, mas um poder tornar-se, isto é, a suscetibilidade que fará com que nele ocorra uma nova forma. A potência passiva está então em receber a forma. Em termos aristotélicos, deve ser lançada à conta da matéria. Em segundo lugar, padecer consiste essencialmente em ser movido – ao passo que o mestre, na medida em que sua atividade própria está em comunicar uma forma, não é essencialmente mutável. Ocorre, decerto, que ele deve mover-se para agir sobre o aluno, mas não como agente, pois ele também é um ser que contém matéria. O aluno como tal é que é, por natureza, um ser mutável, caracterizado pelo movimento.
 
Nessa inferioridade do padecer, encontra-se assim a desqualificação da mobilidade relativamente à imobilidade que predomina na civilização ocidental.
 
Desde a Grécia Clássica até a atualidade há uma decisiva valorização da imobilidade identificada com a razão, o poder e a sabedoria e um verdadeiro desprezo da mobilidade própria do padecer. Quem padece é visto, quase sempre, como um aluno, um pobre coitado, um miserável sofredor, uma vítima e um doente. É visto como infantil que precisa sair desse estado para enfrentar o mundo, ou seja, aquilo denominado realidade.
 
Entretanto, é por conter matéria, isto é, indeterminação que um ser é aluno, que se move (de lugar, de quantidade, de qualidade) para receber uma nova determinação. Isso mostra que o aluno, sendo matéria, não possui todas as qualidades de uma só vez, e que a aparição dessas depende da intervenção de um agente exterior. Ora, este último aspecto é fundamental para a determinação do aluno, ou seja, para aquilo que se denomina formação.
 
Mestre e aluno estão, portanto, envolvidos numa relação apaixonada onde o que é afetado, o que sofre, é a matéria solicitando uma forma à matéria infantil.
 
Entretanto, quer queira, quer não, um aluno se forma, ou seja, adquire uma forma e se desliga do mestre encaminhando-se para o mundo, a realidade. A formatura é o rito de passagem necessário para que aluno e mestre deixem de sê-lo. Na formatura, o aluno é lançado abrupta e violentamente no mundo. O rito declara que está formado, ou seja, o aluno é considerado capaz de enfrentar a beira do abismo onde o humano se encontra em sua mais completa solidão, quando deixa de ser infantil. (Berlinck, 2012)
 
Se a formatura é necessária, não é suficiente. O aluno pode perfeitamente prolongar sua condição indefinidamente. Para que deixe de ser aluno são necessários fatores outros, como bem revela o caso de Andreas Vesalius. As naturais limitações dos mestres jogam aí um papel relevante, desde que sejam percebidas e reconhecidas pelo aluno. No caso de Vesalius, são as insuficiências próprias da cátedra, afastando os mestres da realidade e encastelando o saber na prática dogmática, que estimula o aluno a sair em busca da observação. A ausência de mestres de anatomia prática na Universidade de Paris levou Vesalius a sair pela cidade à procura de fenômenos surpreendentes e enigmáticos. Observe-se, entretanto, que essa iniciativa produz uma mudança de posição: Vesalius deixa de ser aluno e lança-se no mundo em busca de algo que não só satisfaça sua curiosidade, mas também que ponha em xeque o saber instituído do mestre. Sair da sala de aula em direção ao mundo não é só um ato de coragem. É, também, colocar-se à beira do desconhecido, ou seja, de novos ambientes onde elementos se relacionam de forma nunca antes observada. Trata-se de uma disposição para encontrar o surpreendente e enigmático, ou seja, expor-se à descoberta. (Magtaz e Berlinck, 2012)
 
Pós-graduação: orientador e estudante
A Universidade, reconhecendo tanto a insuficiência da formação quanto a complexidade do mundo, criou a pós-graduação, para enfrentar a beira do abismo. Em outras palavras, a insuficiência fundamental na formação do aluno, a precocidade da formatura e a realidade como um abismo com beira conceberam a pós-graduação.
 
Nesse sentido, a missão da pós-graduação é distinta da graduação. Já não se trata, aqui, de dar forma à matéria. Não se trata de manter a relação mestre-aluno. Assim concebida, a pós-graduação seria uma continuação da graduação, desconheceria a formatura e a conclusão do alunato. Seria, em última instância, a prorrogação do curso de terceiro grau.
 
O reconhecimento da insuficiência fundamental da formação e a precocidade da formatura são reconhecidas por falhas que se referem à incapacidade do mestre e do aluno em lidarem com a realidade. As falhas na formação não permitem a competente existência para se viver com autonomia na realidade, ou seja, para se viver criativamente à beira do abismo.
 
Preparar o aluno para viver à beira do abismo requer uma mudança de posição e do caminho tanto do mestre quanto do aluno. A mudança de posição altera a percepção e abre novos horizontes.
 
A mudança de posição refere-se à uma outra condição. Diz-se, então, que, na pós-graduação, o aluno se transforma em estudante. O estudante (do latim: studium) é o que aplica a atenção e as capacidades mentais para aprender a viver criativamente à beira do abismo, diante do desconhecido, enigmático e surpreendente. O estudante é aquele que é capaz de formular um problema de investigação, isto é, uma discrepância entre aquilo que é e aquilo que deveria ser e reflete demoradamente sobre esse determinado assunto, analisando com detalhe aspectos aí envolvidos.
 
Diante do abismo enigmático e surpreendente, o estudante lê, observa, analisa, experimenta e pensa. Cada uma dessas atividades é definida por um método, ou seja, por um caminho a ser percorrido sem desvios e com o reconhecimento de limites. Pensar, por exemplo, implica em refletir sem grande afinco. Diz-se em português que pensar é banzar, um deixar se navegar pelo mar que transporta.
 
O mestre, por sua vez, na pós-graduação deixaria de sê-lo e se aproxima do estudante como orientador. Não se trata, neste último caso, de alguém que irá criar uma forma a partir da matéria e sim de alguém que indica o melhor caminho a ser percorrido, corrigindo os desvios e anunciando os limites do trajeto. O orientador não define o caminho. A escolha do caminho, ou melhor, o problema a ser pesquisado, cabe ao estudante, é sua escolha. Quando muito, o orientador pode anunciar, na formulação de um problema, algumas dificuldades a serem enfrentadas pela pesquisa, pelo caminhar em direção à sua resolução. O orientador é, assim, alguém que tem experiência no trilhar um determinado caminho e que pode indicar ao estudante o caminho que se faz ao caminhar. Mas, como orientador, ele deve respeitar os diversos tropeços que inevitavelmente ocorrem nos primeiros passos. O orientador deve levar a sério tais tropeços e deve revelá-los ao caminhante, que muitas vezes desconhece o próprio tropeço.
 
O doutorado possui essa especificidade: pretende formar pesquisadores autônomos, ou seja, que não dependem de um orientador para realizar o trabalho de avanço do conhecimento científico, através da pesquisa.
 
A noção de "pesquisador autônomo" refere-se, por um lado, a uma certa independência em relação ao orientador. Por outro lado, refere-se também à independência em relação ao mestre.
 
Isso quer dizer, em poucas palavras, que o doutorando realiza uma importante mudança de posição em relação ao conhecimento, que deixa de ser o sabido e passa a ser o desconhecido, surpreendente, enigmático. Quando alguém disso se aproxima diz-se que é cientista.
 
Bibliografia
 
ARISTÓTELES. De anima.
 
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