18/02/2014

Financiamento do ensino superior

Investimento público e a cobrança de taxas em universidades financiadas publicamente

Não se pode concluir que a existência de taxas escolares envolva, necessariamente, redução do investimento público, nem níveis de investimento público/total abaixo da média

Renato H.L. Pedrosa
Matemático, pesquisador do Departamento de Política Científica e Tecnológica – Instituto de Geociências da Unicamp e membro do conselho editorial da revista Ensino Superior Unicamp
Humboldt-Universität
Artigo de Howard Hotson[1], historiador da Universidade Oxford (Inglaterra), publicado pelo Times Higher Education, comenta as mudanças recentes promovidas pela Alemanha nas políticas de cobrança de taxas escolares pelas instituições de ensino superior financiadas pelo governo[2]. O artigo tem o sugestivo título "U-turn of the century", que significa "Meia-volta do século ", (onde a letra U está relacionada à palavra universidade).
 
Hotson relata que a Alemanha, através dos estados, estabeleceu a cobrança de taxas nas instituições financiadas pelo governo em meados da década passada, mas recentemente, devido à reação negativa da população, voltou atrás e, a partir deste ano, todas os estados voltam à situação anterior, sem cobrança de taxas nas universidades financiadas pelo governo. Faz vários comentários também sobre o sistema de cobrança introduzido no Reino Unido, no mesmo período.
 
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O artigo inclui, ao final, uma tabela com os dados de investimentos totais e públicos em ES para alguns países europeus. Nessa tabela, observa-se que o investimento público dos países onde não há cobrança de taxas, como Dinamarca, Suécia e Finlândia, está acima de 1,5% do PIB, e são basicamente o total do investimento, indicando que o setor privado inexiste ou é mínimo. Naqueles onde a cobrança vem sendo introduzida, como Itália e Reino Unido, o investimento público está abaixo de 1% do PIB, sendo o do Reino Unido o que menos investe, publicamente, no ES, entre os incluídos.
 
Buscando-se a fonte dos dados utilizados, que são os relatórios anuais sobre a educação da OCDE[3], observa-se que a média dos países-membros da OCDE, em investimentos totais em ES, é da ordem de 1,7% do PIB, sendo 1,1% do PIB oriundo do setor público, para 2010 (ver tabela abaixo, com os valores para países escolhidos, anos 2000, 2005 e 2010).
 
O Brasil, listado entre os países associados, apresenta 0,9% do PIB em investimentos públicos (sem dados para investimentos privados). Há países com mais de 2% de investimentos totais, como Canadá (2,7), Chile (2,4), Coreia (2,6), Estados Unidos (2,8). Exceto o Canadá, esses países apresentam mais investimentos privados do que públicos, o Japão (1,5) sendo o único outro país da OCDE onde isso acontece. Nos demais, o investimento é majoritariamente público, cerca de 65%, como indica o valor médio dos países. De todos os países da OCDE, o mínimo em intensidade do investimento público é de 0,5% do PIB, o valor para o Japão, vindo em seguida Chile, Coreia, Reino Unido (e República Eslovaca, não listada na tabela abaixo), com 0,7% (2010).
 
Tabela - Investimento em ensino superior (% do PIB)
Fontes: Education at a Glance, OCDE, 2003, 2008, 2013
 
 
2000
2005
2010
 
Público
Privado
Total
Público
Privado
Total
Público
Privado
Total
Alemanha*
1,0
0,1
1,1
0,9
0,2
1,1
1,1
0,2
1,3
Canada
1,6
1,0
2,6
1,4
1,1
2,6
1,5
1,2
2,7
Chile
0,6
1,7
2,3
0,3
1,5
1,8
0,7
1,7
2,4
Coreia do Sul
0,6
1,9
2,6
0,6
1,8
2,4
0,7
1,9
2,6
Espanha
0,9
0,3
1,2
0,9
0,2
1,1
1,1
0,3
1,3
EUA
0,9
1,8
2,7
1,0
1,9
2,9
1,0
1,8
2,8
França
1,0
0,1
1,1
1,1
0,2
1,3
1,3
0,2
1,5
Itália
0,7
0,1
0,9
0,6
0,3
0,9
0,8
0,2
1,0
Japão
0,5
0,6
1,1
0,5
0,9
1,4
0,5
1,0
1,5
México
0,8
0,2
1,1
0,9
0,4
1,3
1,0
0,4
1,4
Reino Unido
0,7
0,3
1,0
0,9
0,4
1,3
0,7
0,6
1,4
Suécia
1,5
0,2
1,7
1,5
0,2
1,6
1,6
0,2
1,8
Média OCDE
1,0
0,3
1,3
1,1
0,4
1,5
1,1
0,5
1,7
Brasil
0,8
-
-
0,8
-
-
0,9
-
-
 
Dados para Alemanha em 2010 são de 2009 (OCDE, EaG 2012)
 
 
É interessante notar que a intensidade de investimentos em ES (% do PIB) vem subindo, computando-se a média para dos países da OCDE. Era de 1,2% em 1995 (EAG 2003), passou a 1,3% em 2000, 1,5% em 2005 e em 2010 atingiu 1,7% (valores totais). No caso do investimento público, no entanto, o crescimento é mais lento, e a participação vem caindo lentamente, de 79% em 1995, para 77% em 2000, 73% em 2005, e 65% em 2010.
 
Retornando ao tema do artigo de Hotson, voltando a 2005, o ano anterior ao início das mudanças na Alemanha e também um pouco antes da introdução de taxas escolares no Reino Unido, a divisão para a Alemanha era de 0,9%/0,2% (público/privado), e para o Reino Unido, era 0,9%/0,4%. Em 2010, esses números haviam se alterado para 0,7%/0,6% no caso do RU, denotando uma queda no investimento público, que se transfere para investimento privado, relativamente ao PIB, consequência da cobrança crescente de taxas escolares pelas universidades daquele país e redução do investimento público (as taxas pagas são consideradas investimento privado). Para a Alemanha (utilizando-se os dados de 2009), observa-se que não houve queda do investimento público, entre 2005 e 2009, em relação ao PIB, mas crescimento, de 0,9% para 1,1%. As médias para todos os países da OCDE eram de 1,1% em investimentos públicos e 0,4% em investimentos privados, em relação ao PIB em 2005, o que indica que entre 2005 e 2010 não houve variação no setor público, mas o investimento privado apresentou expansão (para um valor acima de 0,5%).
 
Concluímos esse comentário com algumas observações. Primeiramente, o percurso da Alemanha quanto à cobrança de taxas no ensino superior financiado com verbas públicas, como nota Hotson em seu artigo, indica que a tendência de que isso seria adotado eventualmente em todos os países pode não ser irreversível, como se previa há algum tempo; e que um crescimento muito grande do investimento privado, representado pela cobrança de taxas escolares, pode levar o Estado a reduzir seu compromisso com esse setor, como vem ocorrendo no Reino Unido, onde a participação do investimento público caiu em relação ao PIB (de 0,9% para 0,7%), e também em relação ao total do investimento no ES (de 70% para 55%, aproximadamente).
 
Por outro lado, se observarmos um país como os Estados Unidos, onde a cobrança de taxas em instituições com financiamento público vem de longa data, os dados não indicam retração do investimento público, que se mantém, desde meados dos anos 90, em torno de 1% do PIB daquele país (de fato houve um pequeno crescimento de 0,9% em 2000 para 1,0% em 2005 e 2010). Este nível é o mesmo, por exemplo, que o de países com longa tradição de um sistema essencialmente público de educação superior, como a França, onde o investimento público também vem girando em torno de 1% do PIB (mas sem o investimento privado que existe nos Estados Unidos, que adicionou 1,8% do PIB em 2010). O Canadá é outro país que utiliza a cobrança de taxas nas universidades, porém, tem um setor público altamente participante, com cerca de 1,5% do PIB em investimentos, complementados por 1,2% do PIB pelo setor privado. De fato, os únicos países da OCDE (Canadá, Chile, Coreia e Estados Unidos) em que a intensidade do investimento em ES supera 2% do PIB são aqueles em que há cobrança de taxas e onde o investimento privado atinge valores significativos. Assim, não se pode concluir que a existência de taxas escolares envolva, necessariamente, redução do investimento público, nem níveis de investimento público/total abaixo da média. A decisão sobre isso passa pelas tradições locais e pelo comprometimento do poder público em relação à ES.

 



[2] Não se deve identificar, internacionalmente, as instituições financiadas com verbas públicas como sendo instituições públicas. Em alguns países, como a Inglaterra ou o Japão, as universidades são instituições privadas; porém, são majoritariamente financiadas com verbas públicas.
 
[3] Education at a Glance 2013, OECD Indicators. Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Paris, 2013.