14/10/2011

Currículo

Educação geral na Universidade Harvard: a atual reforma curricular

Publicado originalmente no livro Universidade e currículo: perspectivas de educação geral (editora Mercado de Letras, Campinas, 2010, organizado pela autora)

Elisabete Monteiro de Aguiar Pereira
Professora livre docente da Faculdade de Educação da Unicamp (FE)
Mestre pela Universidade de Sheffield (Inglaterra) e doutora pela FE
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O objetivo do reitor Lawrence Summers foi desencadear na revisão que ocorre de 5 em 5 anos um comprometimento alicerçado na importância de abraçar mudanças, correr riscos e manter Harvard jovem Neste texto apresentamos a estruturação básica da atual reformulação curricular da Universidade Harvard cujas discussões iniciaram-se no ano de 2002, com implantação em 2007. A universidade empreendeu a reestruturação curricular por meio de um processo democrático de discussão entre os quatro principais grupos que a compõem: professores, alunos, ex-alunos e administração. Harvard é uma universidade de grande relevância no cenário da educação superior no mundo e a intenção de apresentar sua reformulação foi a de deixar explícitas as ênfases curriculares tidas como as mais adequadas para a formação do estudante universitário para o tempo presente.
 
Priorizamos na análise conhecer os princípios e objetivos dos aspectos curriculares tidos como relevantes nessa reformulação e apresentamos o contexto que fomentou o processo de reformulação e os desafios que a Universidade Harvard considerou imprescindível enfrentar para uma adequada formação do estudante nos primeiros 25 anos deste milênio.
 
A UNIVERSIDADE E A ATUAL REFORMA CURRICULAR
O processo de reforma curricular da Universidade Harvard iniciou-se quando seu então reitor, Lawrence H. Summers, num discurso pronunciado em 2001, solicitou ao corpo docente da Faculdade de Artes e Ciências (FAS)[1] prioridade para "pensar cuidadosamente sobre o que nós ensinamos, sobre como ensinamos, reconhecendo que cada currículo, curso de estudos ou forma pedagógica pode sempre ser melhorada" (J.H.J. - John Harvard's Jounal, 2002, p. 55). O objetivo do reitor era desencadear, no procedimento de revisão curricular que ocorre na Universidade Harvard de cinco em cinco anos, um comprometimento alicerçado, segundo ele, "na importância de abraçar as mudanças, de correr riscos e de manter a Universidade Harvard jovem" (J.H.J. p. 56).
 
Segundo o core curriculum, um indivíduo educado não pode ser ignorante sobre outras culturas e culturas de outros tempos e deve ser capaz de pensar e escrever clara e efetivamente A afirmação de Summers – buscar por meio da revisão curricular manter Harvard sempre jovem –, tem sido, na visão de Gomes (2006, p. 4), o dinâmico esforço de administrações para planejar formas efetivas de avançar e atualizar a educação que a universidade desenvolve no sentido de "encontrar as necessidades de uma sempre mutável ideia de sociedade próspera".
 
É tradição na Universidade Harvard que as revisões curriculares sejam desencadeadas por estímulo de seus reitores. Tomando apenas o século XX, a Universidade teve cinco grandes reformulações no período de famosos reitores como Charles W. Eliot (de 1869 a 1909), Laurence Lowell (de 1909 a 1933), James B. Conant (de 1933 a 1953) e Derek C. Bok (de 1971 a 1991). É importante realçar que as reformulações curriculares empreendidas, além de buscar manter a universidade atualizada, colocavam para os professores a necessidade de refletir sobre a diferença da mudança na formação do estudante. Esse procedimento trazia para os professores a responsabilidade da discussão sobre o currículo em desenvolvimento, a necessidade de interação entre eles, a importância de refletir sobre cada aspecto a ser reformulado e o entendimento das finalidades da direção pretendida pelas alterações propostas ao currículo.
 
A atual reestruturação curricular representa a mais completa em 30 anos: imprimiu um novo e amplo entendimento do que é ser educado para as primeiras décadas do século XXI O currículo que a FAS vinha desenvolvendo foi estabelecido em 1978, no período do reitor Derek Bok. Apesar de passar por revisões periódicas, seu núcleo curricular (core curriculum) não havia sofrido alteração. Em Harvard, e em algumas universidades americanas, todo estudante recebe uma formação geral antes de iniciar os estudos de uma área de especialidade. O objetivo da formação geral é dar aos estudantes uma preparação cultural como base fundamental para atuar como cidadão-profissional. Ao contrário dos currículos de cursos estritamente profissionalizantes e que objetivam uma formação especializada, o de formação geral busca trabalhar conhecimentos amplos que permitam aos estudantes uma visão ampliada das questões sociais, culturais, biológicas e físico-naturais. Sobre esse amplo conhecimento é que é desenvolvida a formação específica.
 
A preocupação com a formação geral do estudante é tradição em muitas universidades (inglesas, americanas e australianas principalmente). As atividades curriculares desenvolvidas para essa formação modificam-se de época em época, buscando responder às mudanças do entendimento do que é ser um indivíduo educado para aquele determinado tempo histórico. Para Dahl (1979), a diferença entre um indivíduo educado e outro não educado está no grau de compreensão das questões do mundo presente, tanto no contexto próprio de sua vida como nos contextos sociais, culturais, econômicos e políticos mais amplos. O que integra um currículo de formação geral também não é o mesmo em toda instituição de educação superior, e cada instituição determina o que deve ser desenvolvido.
 
A discussão sobre questões curriculares é uma das formas pelas quais os docentes adquirem um maior entendimento da responsabilidade pela formação dos estudantes Harvard teve algumas alterações substanciais na estruturação curricular durante o século XX. Charles W. Eliot, no seu longo período como reitor, da segunda metade do século XIX até a primeira década do XX (de 1869 a 1909, 40 anos), foi quem transformou Harvard em uma universidade moderna de pesquisa segundo o modelo alemão da universidade humboldtiana[2] e introduziu os cursos eletivos. Laurence Lowell sucedeu Eliot por um período de 24 anos (de 1909 a 1933) e introduziu os cursos relacionados aos estudos de "concentração" em uma área de conhecimentos especializados[3]. James B. Conant foi reitor no período de 1933 a 1953 e empreendeu uma grande reformulação curricular publicada no famoso livro General Education in a Free Society, mais conhecido como Red Book[4]. No período em que Derek C. Bok foi reitor, entre 1971 e 1991, foi estabelecido o core curriculum como referência para as atividades curriculares de formação geral na graduação – dentre elas a participação dos estudantes em programas de serviços públicos. Em 1990, mais de 60% dos estudantes estavam desenvolvendo alguma atividade nessas instituições.
 
O núcleo curricular foi descrito por Dahl (1979) como mais enfático no domínio do pensamento do que no de conteúdos disciplinares. Com base nesse entendimento foi delineado o que um estudante deveria desenvolver para assegurar as condições básicas de um indivíduo educado para o final do século XX:
 
Segundo o core curriculum, um indivíduo educado deve:
 

• ser capaz de pensar e escrever clara e efetivamente

• ser capaz de uma apreciação crítica sobre as formas de adquirir e aplicar conhecimento, sobre o entendimento do universo, da sociedade e de si mesmo

• ter um julgamento informado que o capacite a fazer escolhas criteriosas

• não ser ignorante sobre outras culturas e culturas de outros tempos

• alcançar conhecimento aprofundado em um campo de conhecimento

 
Segundo Pereira (2000), o propósito dessa organização curricular foi assegurar que todos os estudantes, independentemente de seu campo de concentração, adquirissem conhecimentos, habilidades e hábitos de pensamento para uma apreciação crítica dos modos de conhecimento existentes, de como os conhecimentos são criados, como são usados e o que o conhecimento pode significar para o indivíduo pessoalmente.
 
Debater questões curriculares entre colegas docentes é uma prática que ocorre em poucas universidades brasileiras No entendimento de Rudder (1997) o núcleo curricular buscava expor os estudantes a várias formas de obter e aplicar conhecimentos. Para Ruder (1997, p.1), o core curriculum "abraça a crença de que educação geral e educação especializada têm importante papel em desenvolver o poder mental de homens e mulheres educados".
 
O processo da atual revisão curricular, desencadeado por Summers, começou por dois procedimentos: revisão dos requisitos que os professores julgavam necessários estarem contemplados no núcleo curricular dos cursos, e tomar as decisões para garantir o oferecimento daquilo que consideravam aspectos essenciais para uma formação atualizada. O atual processo de reestruturação curricular representa o mais completo em 30 anos, pois não apenas alterou partes ou aspectos curriculares, mas imprimiu um novo e amplo entendimento do que é ser educado para as primeiras décadas deste século XXI. À preocupação em manter Harvard sempre jovem somou-se a preocupação de delinear as atuais necessidades da sociedade e dos cidadãos de um tempo histórico marcado, entre outros fenômenos, por um mundo de comunicação em tempo real, pela integração das culturas, pelas necessidades humanas globais, pelo cuidado com o meio ambiente e pelas novas formas de produção de conhecimento.
 
A reformulação curricular de Harvard foi desenvolvido por quatro grupos temáticos compostos por estudantes de graduação, docentes e egressos, assegurando participação democrática e ativa Para Summers (Harvard, 2004), uma revisão curricular está assentada na discussão empreendida por um corpo docente ativo e atuante. Para ele, são os professores os responsáveis por pensar uma forma de, conjuntamente, melhorar o ensino e a cultura acadêmica. Summers afirma que os docentes devem sempre considerar que a maior obrigação ética que têm é a de fazer um bom e consciente trabalho no processo de ensino (Harvard, 2004). Essas colocações apontam que, para ser efetiva uma reestruturação curricular, é imprescindível ocorrer uma discussão entre o corpo docente da instituição (e não apenas por uma comissão designada para esse fim), pois é evidente a importância que os docentes assumem na sua dinamização[5].
 
Da mesma forma que Summers, entendemos que a discussão sobre questões curriculares é uma das formas pelas quais os docentes adquirem um maior entendimento da importância e da responsabilidade para com o processo de formação dos estudantes. Debater questões curriculares entre colegas que compõem o corpo docente de uma instituição é uma prática que ocorre em poucas universidades brasileiras. A prática nunca foi incentivada no período em que a educação superior estava regida pela legislação autoritária (lei 5540 ou Lei da Reforma Universitária de 1968). O longo período de centralização e autoritarismo governamental deixou marcas profundas na dinâmica da educação superior e a atual LDB (Lei 9394/96) pouco tem estimulado tais debates, uma vez que a discussão curricular que solicita às instituições deve ser norteada por aquilo que estabelecem as Diretrizes Curriculares.
 
Uma das premissas da revisão é assegurar que os estudantes não se superespecializem prematuramente, nem tratem as questões da área específica sem relacioná-las às demais áreas do conhecimento O processo de reformulação curricular da Universidade Harvard foi desenvolvido através de discussão em quatro grupos de trabalho temáticos compostos por estudantes de graduação, docentes e egressos, assegurando uma forma de participação democrática e ativa. Inicialmente as discussões tiveram o propósito de definir o que significava "ser educado" no atual tempo histórico. O entendimento da necessidade de discutir esse tema parece ser uma tradição quando se deseja uma reestruturação curricular. O resultado dessa discussão e da amplitude intencionada pela revisão gerou grande interesse dos grupos participantes, direcionando as reflexões para o que estava dando certo e deveria ser conservado, para os valores que deveriam ser preservados e para o que deveria ser beneficiado com uma mudança.
 
Os quatro grupos de trabalho estavam voltados para quatro áreas temáticas: educação geral, estudos concentrados, pedagogia e experiência acadêmica. Todas as ideias e considerações dos grupos de trabalho foram apresentadas e debatidas com toda a comunidade acadêmica durante os quatro anos do processo de reestruturação (esse tempo extrapolou o inicialmente previsto por Summers).
 
Harvard vê a finalidade dos estudos em 'áreas de concentração' não como o domínio de um campo disciplinar, mas meio pelo qual os estudantes desenvolvem maior grau de sofisticação em seu pensamento O documento "Relatório sobre a Revisão Curricular da Universidade Harvard", de abril de 2004, esclarece o entendimento da necessidade da reestruturação curricular e sua relação com as mudanças do mundo: "assim como o mundo e a forma como o percebemos e o estudamos muda, é responsabilidade da Faculdade de Artes e Ciências rever tanto a estrutura como o conteúdo da educação que provê aos estudantes" (p.1). Assim, o objetivo principal da atual reestruturação curricular é o de buscar uma forma de atualizar o core curriculum ao tempo presente.
 
O processo da revisão estabeleceu primeiramente um grande entendimento sobre os princípios que o estariam orientando, os quais buscaram responder à questão: o que desejamos alcançar na educação que provemos aos estudantes no Harvard College[6]? Os princípios estabelecidos tiveram o seguinte entendimento:
 

♦ a Universidade busca graduar indivíduos amplamente educados, ainda que os encoraje a desenvolver uma mais profunda compreensão de um ou outro campo, isto é, assegurar que os estudantes não se superespecializem prematuramente, nem que tratem as questões da área específica sem as devidas relações com as demais áreas do conhecimento.

♦ a Faculdade de Artes e Ciências (FAS) deve exercer sua responsabilidade em definir o que os estudantes precisam saber e como podem melhor aprender uma série de tópicos de forma que tenham conhecimento e confiança para continuar sua aprendizagem como cidadãos cultos quando confrontados com novas questões e dilemas éticos.

♦ a Universidade vê a finalidade dos estudos em um campo ou área especializada, denominada "área de concentração", não como a do domínio de um campo disciplinar, mas como um meio pelo qual os estudantes desenvolvem maior grau de sofisticação em seu pensamento.

♦ os requisitos da área de concentração devem ser desenvolvidos não para treino de especialistas, mas para promover o pensamento rigoroso e criativo.

 
As recomendações feitas no estabelecimento dos princípios têm como aspiração alargar o alcance da educação geral e deixam claro o que esperam de uma educação geral neste novo milênio: "Nós acreditamos que a educação geral deveria capacitar os estudantes a desenvolver múltiplas perspectivas sobre si mesmos, sobre o mundo e dar-lhes conhecimento, treino e habilidades para imprimir um sadio fundamento para as suas vidas" (Harvard, 2004, p.2).
 
Expressão artística passou a ter maior espaço curricular, tanto na formação geral como nos estudos concentrados, deixando de ser apenas atividade extra-curricular O estabelecimento dos princípios demonstra que, para a FAS, a finalidade do currículo é educar os estudantes para que tenham um pensamento reflexivo, disciplinado e independente. Com esse amplo entendimento, a reforma buscou favorecer aos estudantes uma maior flexibilidade curricular para explorar novas áreas, descobrir novos interesses intelectuais, transitar entre vários campos de estudos. Sendo a educação geral reafirmada como ponto central da formação do estudante para este novo século, é interessante conhecer como se processou historicamente essa ênfase curricular em educação geral na Universidade Harvard. Faremos isso apresentando um breve histórico.
 
EDUCAÇÃO GERAL NA UNIVERSIDADE HARVARD
Whitehead (1996) definiu que "educação liberal[7] é aquilo que permanece depois de esquecidos os fatos aprendidos na universidade" (p. 56). Whitehead sugere focar a educação liberal como princípio geral da formação universitária, pois, para ele, nas ações humanas é mais provável saber usar os princípios do que os detalhes. Concordando com Whitehead, Domingues (2006) escreve que essa forma de ver a formação universitária tem sido a "pedra fundamental" da estruturação curricular de Harvard.
 
A Universidade Harvard, como muitas das universidades americanas, sempre desenvolveu a formação do estudante universitário tendo como base um currículo cultural que permita ao estudante obter uma ampla formação geral sobre a qual possa embasar a formação da área específica.
 
Whitehead definiu 'educação liberal' como aquilo que permanece depois de esquecidos os fatos aprendidos na universidade; para ele, é mais provável saber usar princípios do que detalhes Os primeiros currículos do séc. XVII e XVIII[8] tiveram cursos prescritos entendidos como essenciais para um indivíduo daquela sociedade. No final do século XIX, uma reestruturação curricular promovida na gestão do reitor Charles W. Eliot (1869-1909) estabeleceu uma organização oposta, inserindo um sistema eletivo que permitia ao estudante escolher livremente seus cursos. Em 1909, no período do reitor Laurence Lowell (1909-1933), nova modificação introduziu o conceito de "concentração e distribuição", fundamentando-se na ideia de que os estudantes deveriam ser amplamente educados e ter um campo do conhecimento estudado mais profundamente. Essa forma de organizar o currículo influenciou a maior parte das instituições de educação superior americana.
 
Em 1945, na gestão do reitor J. B. Conant (1933-1953), após a Segunda Grande Guerra, foi por ele designada uma comissão "para estudar e propor uma educação apropriada para uma sociedade livre e para articular e unificar um conceito de educação geral não só para Harvard, mas para toda educação americana" (Harvard, 1945, p.16). Iniciava-se o período de paz e era necessária uma nova forma de educar os universitários. O relatório desse estudo com as propostas elaboradas resultou na publicação do famoso "Red Book de 1945". Nessa obra, educação geral foi conceituada como "aquela parte da educação do estudante que olha primeiro para a sua vida como um ser humano e cidadão" (p.51). Uma nova estruturação curricular organizou então um número de cursos nas áreas de humanas, ciências sociais e ciências naturais, dos quais os estudantes deveriam escolher um em cada área e frequentá-lo por um ano. Esse sistema tornou-se bastante influente quer nas universidades americanas, quer em universidades europeias e australianas.
 
Uma das ênfases é a internacionalização, considerando um mundo integrado pela tecnologia mas ainda definido por diferentes culturas; os estudantes devem ser cidadãos do mundo intelectualmente sensíveis Em 1978, no período do reitor D. C. Bok (1971-1991), após a Guerra do Vietnã, o currículo foi reformulado em termos de "aproximações ao conhecimento" em vez de "domínio de corpo específico de conhecimento". Esse currículo de educação geral, denominado core curiculum, é o que está sendo reformulado na atual reestruturação. O core teve várias alterações menores, como a de 1997, com a introdução da Análise Quantitativa como nova área de estudos. Em 1998, no período do reitor L. H. Summers (1992-2006), esforços foram despendidos para considerar os estudos feitos no exterior como uma parte importante da formação para os tempos atuais e institucionalizados com a criação do Office of International Programs. A partir daí, a universidade começou a reconhecer com crédito curricular os estágios no exterior. No ano acadêmico de 2000-2001, os requisitos do core foram reduzidos de oito para sete áreas e foi introduzido o Programa de Seminários para Calouros.
 
A atual proposta de reformulação é o resultado da atenção aos déficits que cada uma das mudanças sinalizava e da necessidade de revisar o currículo como um todo. O documento do Relatório de 2004 aponta esse entendimento afirmando que era preciso rever os enfoques da educação geral para o tempo presente, pois "embora haja uma reconhecida atemporalidade nos princípios da educação geral, o que nós ensinamos e como ensinamos tem a significação dada pelo mundo que habitamos e no qual nossos estudantes viverão" (p.7). A comissão que assina o relatório afirma ainda que "a educação liberal deve desenvolver a capacidade de análise em nossa juventude, ampliar sua mente, cultivar sua moral e infundir neles os preceitos de virtude e ordem", como já afirmava Thomas Jefferson (1989).
 
A ATUAL REESTRUTURAÇÃO CURRICULAR
É dentro desse entendimento que a revisão curricular se iniciou e a primeira afirmação a que chegaram, a partir da qual estabeleceram as discussões em torno da estruturação curricular, foi:
 
"Em uma era de crescente especialização, profissionalização e fragmentação tanto na educação superior como na sociedade mais ampla, nós reafirmamos nosso compromisso com uma educação liberal nas artes e ciências. Nosso objetivo é o de prover os estudantes com conhecimentos, habilidades e hábitos de mente que os capacitem a se beneficiar de uma vida de aprendizagem e a se adaptar a mudanças circunstanciais" (Harvard, 2004 p.6).
 
Para os proponentes da revisão curricular, os estudantes devem ser capazes de compreender os princípios da ciência, avaliá-los e discuti-los, mesmo que não seja para aplicá-los empiricamente Seis temas guiaram a revisão curricular. Três relacionados à forma como o mundo mudou desde a última grande alteração curricular da Universidade e três relacionados à melhor forma de ensinar os estudantes e expandir as oportunidades abertas a eles.
 
Quanto aos três primeiros temas, um se refere à ênfase na internacionalização para auxiliar os estudantes a viverem como cidadãos de uma sociedade global em um mundo que se torna pequeno e integrado pela tecnologia, mas ainda definido por diferentes culturas e todas em constantes mudanças. Como resultado da análise sobre o tempo presente, os proponentes da revisão curricular acreditam que há cada vez mais probabilidade de os estudantes trabalharem em diferentes partes do mundo ou com colegas que tenham diferentes culturas. Assim, um currículo que tenha a internacionalização como um de seus aspectos educará os estudantes para serem intelectualmente sensíveis cidadãos do mundo e isso é, para eles, uma responsabilidade moral dos tempos atuais. Para isso, o currículo deve oferecer a condição de um mais profundo entendimento das tradições nacionais, de como elas são vistas por outras tradições (e outros povos) e de como cada uma das tradições culturais dos povos do mundo está estruturada. É uma perspectiva de compreender a América e o mundo.
 
A revisão rejeita a ideia de que alguns estudantes são incapazes de aprender ciência, ou que outros são incapazes de trabalhar as questões das humanidades Um segundo tema refere-se à dinâmica da revolução científica e tecnológica. Em uma aula inaugural de 2003, Summers enfatizou: "porque a ciência prospera em todos os domínios, a ciência e o pensamento científico estão, cada vez mais, atingindo amplos aspectos das atividades humanas" (Harvard, 2003 p. 2). Para ele, esse fato é particularmente importante para ser observado pelo currículo da universidade, que deve preparar não apenas os estudantes que seguirão currículos científicos, mas todos os alunos para que saibam trabalhar com os elementos científicos e tecnológicos das políticas públicas e a relação destes com os aspectos éticos das questões que enfrentarão em suas vidas. O alcance e a evolução das descobertas biológicas sobre a infraestrutura da vida, os desafios dos novos conceitos de vida humana e de universo físico são exemplos de como as conquistas e descobertas da ciência estão mudando a nossa forma de pensar e estão influenciando um maior número das nossas atividades. Tais questões estarão afetando a vida de todos e a preparação para elas não deve ser somente para os estudantes das áreas científicas.
 
Para isso, os proponentes da revisão curricular apontam que um currículo de educação geral precisa desenvolver o conhecimento básico da ciência e de seus métodos para que os estudantes tenham entendimento dos princípios das ciências físicas e da vida e um conhecimento dos meios pelos quais esses princípios são usados em crescentes inovações tecnológicas. Para eles, os estudantes devem ser capazes de compreender os princípios da ciência, avaliá-los e discuti-los, mesmo que não seja para aplicá-los empiricamente. Acreditam que não é mais possível aceitar a proposição de que alguns estudantes são incapazes de aprender ciência, como aceitar que outros são incapazes de trabalhar as questões das humanidades ou das ciências sociais.
 
Outro objetivo é estimular intenso engajamento intelectual dos estudantes com as pesquisas desenvolvidas pelos professores, para que não as conheçam apenas por exposição oral dos docentes Terceiro, como o corpo docente da Universidade vem, cada vez mais, pesquisando temas que ultrapassam os limites de suas áreas e estão frequentemente necessitando do enfoque de múltiplas disciplinas para dar conta da temática estudada, acreditam que esse enfoque deva ser dado por meio de uma ênfase interdisciplinar do currículo. Reconhecem que as pesquisas nas áreas das ciências exatas, da vida e de humanidades têm cruzado as tradicionais fronteiras disciplinares e é imperativo que o currículo atual encoraje os estudantes a explorar tópicos que cruzem as bordas das disciplinas e os levem a questionar as controvérsias intelectuais que existem entre elas.
 
Os proponentes da reforma curricular entendem que, embora o departamento ainda seja estruturado com base em disciplinas e áreas, e que essa forma ainda seja apropriada para o desenvolvimento do rigor intelectual requerido pelos trabalhos de um campo de conhecimento, outras formas de explorar as aproximações entre os campos e as disciplinas devem ser encontradas.
 
O novo currículo implanta cursos desenvolvidos por diferentes professores numa perspectiva integrada ou por um professor que tenha perspectiva ampla; o modelo de cursos de responsabilidade de um departamento específico foi abolido Quanto aos três aspectos pedagógicos, uma primeira importante necessidade de mudança é apontada para o grande número de estudantes em sala de aula. O grande número interfere na forma de ensinar e na falta de integração entre estudantes e professores. Os dados estatísticos de 200-2001 (Harvard, 2004) dão conta de que 48% dos estudantes na universidade estão em cursos com mais de 50 estudantes em sala de aula. Em alguns cursos do core curriculum, 62% são desenvolvido em salas com mais de 100 estudantes.
 
Os membros do grupo de trabalho apontaram que o grande número de alunos dificulta uma maior interação entre estudantes e professores e isso dificulta o desenvolvimento de um processo avaliativo argumentativo, de diálogo nos comentários dos trabalhos, a troca de impressões sobre as apresentações de trabalhos e os debates sobre os resultados dos trabalhos desenvolvidos nos laboratórios. Sugerem uma nova forma metodológica de ensinar através das "comunidades de aprendizagem", onde os alunos formam pequenos grupos de instrução tendo um professor como responsável, o qual interagirá com seus membros em todo o processo de aprendizagem, comentará seus trabalhos, suas apresentações e experiências laboratoriais e agirá diretamente na avaliação. Acreditam que a metodologia provocará uma mudança no processo da aprendizagem, passando o estudante a desempenhar um papel mais ativo tanto na sua formação como na discussão direta com os professores em seminários e em outras formas didáticas.
 
É proposto não só o domínio de língua estrangeira como também aumentar o conhecimento sobre a cultura a fim de ampliar a preparação dos estudantes para trabalhar em diferentes países Outro ponto sobre os aspectos pedagógicos é o de estimular um intenso engajamento intelectual dos estudantes com as pesquisas desenvolvidas pelos professores. Entendem ser importante a contribuição dos estudantes na produção do conhecimento desenvolvido por esses trabalhos, e não apenas os conhecer através da exposição oral dos professores ou da participação em seminários de discussão. O Relatório Harvard (2004) informa que em 2003, 29% dos estudantes participaram em projetos de pesquisa com o corpo docente contabilizando créditos curriculares e 31% participaram sem ter os créditos contabilizados. Entre os estudantes, os de ciências são os que têm maiores oportunidades.
 
Um último aspecto apontado foi o da importância de planejar a cooperação entre os professores das diferentes faculdades profissionais para o enriquecimento das atividades desenvolvidas pelo currículo da FAS, o que, para os propositores, beneficiará tanto estudantes como os próprios docentes.
Tendo delineado e discutido os seis aspectos das alterações curriculares, acima expostos, os diferentes grupos de trabalho propuseram modificações específicas no todo da educação geral, conforme apresentamos a seguir.
 
EDUCAÇÃO GERAL: PROPOSIÇÃO CURRICULAR PARA O PRIMEIRO QUARTO DO SÉC. XXI
Com o entendimento de que para educar os estudantes amplamente é preciso levar em conta os campos do conhecimento que sejam relevantes aos estudantes no primeiro quarto do século XXI, os revisores do currículo da Universidade Harvard buscaram propor o que focar na reestruturação do currículo estabelecido como educação geral.
 
Não encontrando seus interesses nos cursos oferecidos, estudantes podem organizar, com a orientação de um professor, uma estrutura curricular especial para obter a formação desejada As recomendações para o novo currículo foram as decididas pelos professores e estudantes, depois que os Grupos de Trabalho apresentaram suas conclusões como resultado final do processo de discussão empreendido. O programa de educação geral foi pensado para satisfazer dois aspectos tomados como básicos: flexibilidade, para que os estudantes definam e explorem seus interesses intelectuais; orientação, para auxiliá-los na escolha da área dos estudos "concentrados".
 
RECOMENDAÇÕES PARA UM NOVO PROGRAMA DE EDUCAÇÃO GERAL
O novo currículo de educação geral de Harvard assenta-se antes em um alto padrão de formação do que apenas na solicitação de determinados requisitos. Há a clareza de que com a acelerada expansão do conhecimento não é possível cobrir, em quatro anos, tudo o que um estudante precisa e de que a finalidade da educação geral no início deste novo século é a de prover uma base para um mundo de incertezas e mudanças.
 
Foi recomendado que os estudos na área de concentração comecem só no 2º semestre do 2º ano para permitir mais tempo para o estudante delinear seus interesses O novo currículo, que os proponentes estão sugerindo ser denominado "Havard College Courses", está organizado por meio de múltiplas teorias, múltiplas disciplinas e tradições disciplinares. Não serão mais cursos introdutórios para disciplinas, quaisquer que sejam, nem cursos de responsabilidade de um departamento específico. Serão cursos integrados, rompendo com a perspectiva disciplinar que tem definido a vida acadêmica da universidade moderna. As razões para desenvolver essa perspectiva são apontadas no Relatório (Harvard, 2004) como sendo as que emergiram dos princípios básicos estabelecidos no processo de revisão e apresentadas anteriormente neste texto.
 
Os cursos serão planejados conjuntamente por professores de várias áreas com o objetivo de romper limites demarcados, promover a interação e o diálogo, ter uma mesma linguagem e passá-la para os estudantes. O planejamento conjunto intenciona definir os mais importantes conceitos e atitudes que os estudantes devem adquirir sobre cada área do conhecimento. Esses cursos podem ser desenvolvidos por diferentes professores numa perspectiva integrada ou por um professor que tenha uma perspectiva ampla do conhecimento a ser ensinado.
 
No entanto, em uma ou outra forma, a meta principal é o fortalecimento da capacidade crítica, do pensamento reflexivo, do desenvolvimento da argumentação fundamentada, da capacidade da leitura, da escrita, da apresentação oral e da capacidade de interpretar e utilizar os métodos quantitativos quando forem apropriados. Para a efetivação desse alcance pedagógico cabe à Universidade promover as condições necessárias para essa inovadora forma de ensinar e apoio para a preparação de seus professores para esse novo desafio curricular.
 
O Relatório aponta vários aspectos que o novo currículo (o "Harvard College Courses") deve desenvolver na sua estruturação. No aspecto literário, um curso sobre a literatura mundial favorecerá a visão do estudante para as representações culturais de diferentes povos e tempos, as tradições e as hierarquias que essas representações culturais estabeleceram.
 
No conhecimento sobre a história do mundo, o novo currículo de educação geral será construído sobre "culturas e contatos", introduzindo os estudantes em momentos significativos das múltiplas culturas nos quais as civilizações interagiram em modos cooperativos ou competitivos. A finalidade é fazer com que entendam as construções culturais através dos séculos e as contingências que as diferentes localizações geográficas implicaram na formação dessas culturas, bem como os contextos históricos em que as diferentes culturas interagiram ou competiram. Os estudantes podem ser introduzidos a episódios de comércio internacional, guerras, conquistas e organização internacional.
 
Nas ciências da vida, temáticas como a do genoma devem introduzir os estudantes no trabalho dos processos da vida humana na perspectiva química, celular, orgânica, evolucionária, todas trabalhadas na dimensão ética. A questão da ética fica explícita na responsabilidade de formar moralmente os estudantes para uma atuação ética como profissionais, cidadãos e líderes, e acreditam que há um número variado de modos para que a Universidade responda a essa responsabilidade. Por estarem essas questões imbricadas em toda atividade desenvolvida, elas podem, por exemplo, ser alcançadas através de temas transdisciplinares que envolvam posicionamentos éticos, discussões sobre métodos éticos no encaminhamento de problemas e de estudos de casos.
 
O curso em ciências sociais deverá desenvolver capacidade de análise e trazer temáticas para serem amplamente analisadas, por exemplo, a pobreza deve ser interpretada em seus aspectos históricos, políticos, sociológicos, econômicos, de saúde e consequências futuras. Da mesma forma a questão do meio ambiente, da globalização etc.
 
No primeiro ano de curso será exigido o cumprimento de um termo[9] em "Expository Writing" (orientação para escrita), pois é entendido que qualquer que seja a atividade profissional a ser desempenhada futuramente pelos estudantes, sempre haverá a necessidade de comunicar ideias e expor claramente o pensamento. A escrita e a fala são ferramentas para a comunicação do pensamento humano e por elas busca-se clarificar e organizar as evidências que suportam o pensar. Assim, o programa desse curso deve envolver tanto as habilidades da escrita como a da exposição oral para que o aluno consiga expor de forma coerente, lúcida, argumentativa e lógica. As habilidades adquiridas nesse termo terão um desenvolvimento constante nos quatro anos de graduação.
 
Quanto ao ensino de línguas estrangeiras, Harvard oferece hoje cursos em aproximadamente sessenta delas. Acreditando que o conhecimento de língua estrangeira forma a base de uma competência global essencial nos dias de hoje, é proposto não só o domínio da língua estrangeira, através de curso (durante um termo), como também aumentar o conhecimento sobre a cultura da nação no sentido de ampliar a preparação dos estudantes para trabalhar e agir profissionalmente em diferentes ambientes culturais, diferentes países ou em equipes com profissionais de diferentes culturas e tradições. Assim, os proponentes apresentam como parte da formação geral o inovador aspecto de facilitar estudos no exterior para estudantes e professores. Analisando os benefícios apresentados pelos estudantes que faziam os "cursos de verão" no exterior e recebiam créditos acadêmicos por esse desenvolvimento, os proponentes concluíram que a experiência proporcionava não só aprendizagens relacionadas à língua, à geografia e à história, como também conhecimento social e reconhecimento da importância das relações internacionais.
 
O valor que estudos em outros países oferece para a complementação da formação dos estudantes foi expresso pelo diretor do Centro de Estudos Asiáticos da Universidade Harvard, Willliam C. Kirky, que, referindo-se ao progressivo aumento da complexidade global, concluiu: "Face a tal mundo, temos de auxiliar nossos estudantes dando-lhes uma educação no mundo" (J.H.J., 2004, p. 57).
 
Um outro aspecto curricular reafirmado como essencial na revisão em processo é quanto à base científica — a capacidade para interpretar dados e para usar os métodos quantitativos — tida como necessária na formação do estudante. Nos últimos tempos, a facilitação oferecida pelos programas computacionais, ao mesmo tempo em que tornou mais acessível o trabalho com dados, impôs a capacidade de trabalhar com imensas quantidades e de tomar decisões com base em rigorosa análise de informações numéricas.
 
Frente a isso, permanece importante desenvolver a base científica como requisito na formação geral. No entanto, a forma como esta tem sido desenvolvida, separando as áreas, não corresponde aos novos entendimentos epistemológicos. A ciência torna-se crescentemente interdisciplinar e trabalhos que eram desenvolvidos em áreas estanques hoje solicitam a complementação de outras áreas, rompendo com isso certas barreiras e promovendo a criação de novos e inovadores modos de trabalhar.
 
Para os proponentes está claro que, pedagogicamente, a nova forma de desenvolver a base científica ultrapassa os rígidos limites da estruturação departamental. Por isso, entendem que há a necessidade de se repensar a estruturação das unidades da Universidade, bem como a base científica, em direção a uma perspectiva mais ampliada e integrada para que os tópicos em química, matemática, física, biologia etc. sejam trabalhados de forma combinada para prover os fundamentos básicos de uma educação científica.
 
Por ser a questão da atuação ética uma das mais básicas e importantes na formação do estudante e por ultrapassar os limites teóricos e práticos, também foi proposto que fosse organizado um grupo de trabalho para estudar formas inovadoras de, pedagogicamente, abordar a questão.
 
DEMANDAS PARA O PROGRAMA DE CONCENTRAÇÃO
Os estudantes de Harvard, como os de outras universidades americanas, devem completar seus estudos de graduação com a escolha de cursos em um campo de interesse (ou mais), denominado "área de concentração"[10]. Atualmente a Universidade oferece 51 áreas de estudos concentrados (Harvard, 2006). Em termos curriculares, a área de concentração oferece ao aluno a possibilidade de cursar um programa básico ou um programa mais denso[11]. A diferenciação entre eles está tanto no número de cursos solicitados, como na forma pedagógica de desenvolver a formação – trabalhos de tutoria, seminários e a elaboração de monografia. Os estudos na área de concentração são tidos como a aquisição de conhecimentos em uma área de interesse com vistas a uma carreira, ou como a necessária preparação para estudos em uma das Escolas Profissionais Pós-graduadas da universidade, ou ainda, como preparação para estudos de pós-graduação[12].
 
Os Centros de Orientação aos Estudantes, mantidos pela Universidade Harvard e por quase todas as universidades americanas, prestam um grande serviço aos alunos e orientam, particularmente, a escolha dos estudos concentrados e a da carreira. Essas duas escolhas envolvem dois processos próximos, embora não se confunda a escolha da carreira com a escolha da área de concentração principal (major, ou habilitação). Qualquer área de habilitação pode preparar para diversas possibilidades de emprego, como define a Universidade de Washington em seu site: "O ensino superior ajuda a prepará-lo para o mundo do trabalho, mas não o restringe a uma carreira específica"[13]. Esse serviço tem longa existência em Harvard e foi tomado como de grande necessidade na orientação dos novos arranjos curriculares.
 
Na Universidade Harvard os estudantes podem organizar planos de estudos que integram cursos de uma ou mais áreas de estudos concentrados. Outros estudantes, não encontrando seus interesses nos cursos oferecidos, podem organizar, com a orientação de um professor, uma estrutura curricular especial para obter a desejada formação numa nova área de concentração.
 
Por serem os estudos concentrados a parte dos estudos com o maior número de créditos para a formação de bacharel e pelo fato de a revisão em processo partir da reafirmação dos princípios da educação geral, os proponentes entenderam que, no que se refere aos objetivos — formar estudantes como pensadores independentes, rigorosos com o conhecimento e criativos ─ não há diferença entre elas.  
 
Com essa perspectiva, foi recomendado que os estudos na área de concentração se iniciassem apenas no segundo semestre do segundo ano de curso. Tal decisão está alicerçada na intenção de permitir maior exploração das áreas do conhecimento pelos estudantes e maior tempo para delinear seus interesses. Levantamentos feitos na Universidade Harvard demonstraram que um terço dos estudantes mudava a área inicial dos estudos concentrados (Harvard, 2004, p. 24).
 
O grupo de revisão curricular recomendou que os estudantes pudessem ter oportunidade de desenvolver trabalhos de concentração em área tanto disciplinar como multidisciplinar: "Nós recomendamos que sejam revistos os requisitos de todos os estudos concentrados e reavaliado o equilíbrio entre o foco disciplinar e as oportunidades para estudos cros-disciplinares (disciplinaridade cruzada) tanto no nível introdutório como no avançado" (Harvard, 2004, p. 29).
 
Para os proponentes, há variadas formas de serem possibilitados trabalhos cros-disciplinares em estudos concentrados, como por exemplo: expandir o oferecimento de estudos concentrados multidisciplinares; reunir estudantes de diferentes campos para o desenvolvimento de um grande tema de interesse mútuo; produzir conhecimentos em uma temática humana abrangente como saúde global, mudança climática, segurança mundial.
 
EXPANSÃO DAS ATIVIDADES CURRICULARES
A revisão curricular reforça os princípios da flexibilidade entendendo esta como a expansão de oportunidades significativas para a escolha do estudante em ampliar o escopo de sua formação. As atividades apresentadas a seguir já são existentes, mas não se encontravam formalmente estruturadas no currículo. Os proponentes da revisão, após analisarem tanto as atividades como o significativo número de estudantes que as procuravam e as desenvolviam, consideraram que elas se somavam aos propósitos e princípios explicitados para o novo currículo.
 
EXPERIÊNCIA INTERNACIONAL COMO PARTE DO CURRÍCULO
Para enriquecer seus currículos, hoje muitos estudantes de Harvard desenvolvem estudos, pesquisas, trabalhos e até mesmo créditos em outros países. Os proponentes da reestruturação, analisando as satisfações que essas experiências têm proporcionado, recomendaram que fosse uma possibilidade para todos os estudantes e que a Universidade estruturasse as condições, inclusive com auxílio financeiro, para que a experiência se assemelhasse não a um tempo fora da Universidade, mas a um aspecto estendido da instituição. Isto é, propõem que seja uma experiência diferente da visão de um turista, pois está relacionada a um estudo temático, a uma pesquisa ou a um trabalho voluntário. Acreditam que uma experiência internacional tem a vantagem de proporcionar uma imersão em questões culturais, o que é importante como complemento do conhecimento da língua.
 
PESQUISA COMO INTEGRANTE DO CURRÍCULO
Harvard, por caracterizar-se como uma universidade que se dedica substancialmente à pesquisa, tem nesta uma parte importante das atividades curriculares. Os estudantes têm a obrigatoriedade de apresentar uma tese ou um projeto científico desenvolvido como conclusão dos estudos na área da concentração.
Além dessa obrigatoriedade, a pesquisa pode ser realizada como atividade para complementação de créditos se desenvolvida com a supervisão de um professor. Também são oferecidas oportunidades para os estudantes participarem como "assistentes" em projetos de professores. Sendo a pesquisa tomada como de grande importância na formação do aluno, a universidade prevê recursos financeiros para o desenvolvimento dessa atividade nos departamentos, nos centros, nas agências próprias da universidade e em órgãos centrais como o Student Employment Office – SEO. Segundo o Relatório de 2004, ultimamente todas as solicitações de recursos para o desenvolvimento de pesquisa e para o pagamento dos "assistentes" têm sido atendidas (Harvard, 2004, p. 42).
 
ARTE COMO INTEGRANTE DO CURRÍCULO
Embora a Universidade Harvard ofereça uma intensa atividade artístico-cultural aos estudantes com 5 orquestras, 12 corais, 19 grupos de dança, 16 grupos de teatro e duas bandas de jazz, tendo apresentado em 2003 mais de 70 peças teatrais e 450 concertos (Harvard, 2004, p.48), essas atividades permanecem como extra-curriculares.
 
Com a revisão sobre o sentido da educação geral para os tempos atuais, o valor da expressão artística passou a ter maior espaço curricular, tanto na parte de formação geral como nos estudos concentrados, deixando de ser apenas atividade extra-curricular para tornar-se componente formal dos cursos oferecidos.
 
SERVIÇOS PÚBLICOS COMO COMPONENTE CURRICULAR
De forma geral, os estudantes de Harvard são encorajados a desenvolver atividades de responsabilidade social em instituições públicas. Essa participação tem crescido nos últimos anos: um levantamento feito em 2003 demonstrou que 47% dos estudantes reportaram desenvolver serviços voluntários na comunidade (Bol 2004). Por outro lado, os estudantes têm demonstrado maior interesse em carreiras no serviço público, o que os tem levado a buscar contextualizar, por meio de tópicos em alguns dos cursos, suas reflexões sobre atividades em serviços públicos. Embora entendendo que tais atividades por si só não sejam passíveis de créditos curriculares, os proponentes aprovam a ideia de construir laços mais estreitos entre as atividades acadêmicas e os serviços públicos para que possam ser coordenadas, supervisionadas e avaliadas pelo corpo docente e, ao mesmo tempo, para que os professores com interesse em incluir tais atividades em seus cursos possam ter respaldo institucional.
 
CONSIDERAÇÕES FINAIS
 
Apontamos, no início deste texto, que a convocatória feita pelo então reitor Summers para que uma grande reformulação curricular fosse empreendida partiu de sua constatação da necessidade de pensar sobre o que era ensinado aos estudantes, como era ensinado e sobre o reconhecimento de que cada currículo, curso de estudos ou forma pedagógica pode sempre ser melhorado. Assim, uma das dimensões revistas, discutidas e propostas refere-se às inovações pedagógicas com vistas não apenas a uma busca constante de sua adaptação às novas proposições curriculares, mas também às condições da melhora de sua qualidade. O espírito da revisão foi o de equiparar em excelência os níveis acadêmicos do ensino e da pesquisa oferecidos aos estudantes, para que a Universidade seja conhecida tanto pelo excepcional ambiente de pesquisa como pelo superior ambiente de ensino e aprendizagem.
 
Os proponentes da revisão também sugerem a criação de um órgão responsável por incentivar inovações pedagógicas, quer no desenvolvimento das aulas, quer nas formas de avaliação Como resultado do processo de discussão e análise, reconheceu-se que a FAS conta com importantes fontes pedagógicas como o Centro de Ensino e Aprendizagem Derek Bok, o Projeto de Comunicação Escrita e o Grupo de Instrução Computacional, que oferecem uma variedade de programas de auxílio a todos os docentes. Essas fontes pedagógicas focam temáticas do ensino e da aprendizagem como estratégias de ensino, habilidade de fazer e responder questões, habilidade de exposição oral, avaliação de amplos aspectos da aprendizagem, desenvolvimento de cursos para o uso pedagógico dos recursos midiáticos, tecnológicos e da web etc. Os proponentes acreditam que esses recursos estão pouco visíveis por falta de uma coordenação e por ser limitado o elo com os departamentos e com os comitês de instrução. Além destes, sugerem a criação de um órgão responsável por incentivar inovações pedagógicas, quer no desenvolvimento das aulas, quer nas formas de avaliação.
 
Quanto à estruturação das salas de aula, propõem que ao lado das atuais excelentes condições de estrutura física, humana e financeira, seja dada ênfase a salas para discussões, prática de apresentação oral, trabalhos interdisciplinares ou colaborativos e treino pedagógico, inclusive para doutorandos, entendendo a importância da formação destes também para a docência.
 
Em linhas gerais apresentamos neste texto as proposições que se encontram em processo de implementação e que, para os proponentes, representam marcos importantes como característica da excelência na formação dos estudantes.


[1] Faculdade de Artes e Ciências (FAS) é a unidade responsável pela formação geral de todos os estudantes.
 
[2] Em 1810 Humboldt organiza a Universidade de Berlim com um projeto diferenciado das universidades medievais, dando origem à universidade moderna, estabelecida na integração de ensino e pesquisa.
 
[3] Em outras universidades americanas, esse conjunto de cursos de estudos é conhecido por "major" . Major é definido como o núcleo de estudos que o estudante faz em uma área que será a mais forte em sua formação. Da mesma forma, o estudante pode ter uma segunda área de concentração de estudos com menor número de cursos e que é determinada por "minor".
 
[4] Para um melhor entendimento desse período e dessas reformas ler o capítulo "Modelos de Educação Geral na Experiência Universitária Americana ", de José Camilo dos Santos Filho, em Universidade e Currículo: perspectivas de educação geral.
 
[5] "Modelos de Educação Geral na Experiência Universitária Americana", de José Camilo dos Santos Filho, traz uma completa análise do papel dos docentes na discussão e desenvolvimento curricular.
 
[6] O Harvard College é, entre as unidades que formam a Universidade Harvard, a responsável pela formação em Educação Geral e pelos estudos do campo de concentração.
 
[7] Whitehead e outros educadores utilizam o termo educação liberal, que tem o mesmo sentido de educação geral. Para um melhor entendimento da vinculação desses dois termos ver Pereira (2007).
 
[8] A Universidade Harvard é a primeira universidade americana e data de 1636.
 
[9] "Termo" refere-se ao período de estudos e é estabelecido em horas e meses em um ano acadêmico. No caso da Universidade Harvard, ele é geralmente de um semestre.
 
[10] Área de estudos concentrados – "fields of concentration" – são formados por estudos nas áreas de interesse. Os denominados "major" são cursos feitos na área principal de interesse; os estudos feitos em uma área de interesse secundário são denominados "minor". Para uma equivalência com os termos em português, podemos traduzir por "habilitação".
 
[11] Denominado "honors program".
 
[12] Penney e Houlihan (2003), na análise que fazem sobre a universidade americana, afirmam que ela está enraizada na tradição das artes liberais, de grande importância para a educação geral. Com isso, o objetivo principal da graduação (bacharelado) é desenvolver o espírito crítico do aluno e a sua capacidade de aprender constantemente. A aquisição de conhecimento em uma área específica, com o objetivo de atuação profissional, apenas se inicia na graduação, mas completa-se em nível de estudos subsequentes nas unidades acadêmicas das universidades denominadas Escolas Profissionais.