17/05/2012

Debate

Contribuição e desafio das Ciências Humanas para o Brasil atual

Este artigo, redigido colaborativamente a partir das discussões entre quatro dos alunos intercambistas e uma das coordenadoras do programa, ilustra a importância da participação de alunos de graduação da área de Humanas em programas de intercâmbio internacional

Gustavo Carlos Macedo, aluno da licenciatura em Ciências Sociais da Unicamp
Liliam Nogueira Rolim, aluna de graduação em Economia da Unicamp
Filipe Martone de Faria, aluno de graduação em Filosofia da Unicamp
Mateus Leme de Souza, aluno de graduação em História da Unicamp
Gabriela Celani, assessora da pró-reitoria de graduação da Unicamp (professora doutora do curso de Arquitetura e Urbanismo)
Nas áreas exatas, biológicas e tecnológicas existe maior uniformidade de conteúdos, mesmo comparando-se países de maior e menor desenvolvimento. São chamadas de "áreas de alto consenso" A constatação é de que os países desenvolvidos vivem neste momento um processo de mudanças sociais e econômicas que muito provavelmente irá nos afetar em breve. Poderíamos antecipar as soluções para essas mudanças se nossos estudantes, de todas as áreas, tivessem mais oportunidades de vivenciar a situação de um intercâmbio acadêmico e cultural e refletir criticamente sobre ele. O momento econômico pelo qual o Brasil está passando atualmente é certamente uma etapa em um processo de grandes mudanças. Contudo, não é possível prever os efeitos sociais desse crescimento para as próximas décadas. Neste sentido, aprender com as experiências dos países industrializados é fundamental para revermos criticamente as diretrizes de nosso crescimento e seus prováveis impactos socioeconômicos. Certamente, enquanto cidadãos brasileiros, essa nova geração de pesquisadores será responsável por administrar o desenvolvimento do país nas próximas décadas.
 
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As humanidades, mais ligadas às culturas específicas de cada local, são áreas de grande diversidade de opiniões, métodos e teorias Cada vez mais o Brasil se insere no cenário internacional como um ator fundamental nas instâncias políticas e econômicas. Quando enviamos nossos estudantes para o exterior estamos permitindo a eles que vivenciem lá fora o que é ser um brasileiro no século XXI. Esta experiência reafirma suas identidades pessoais e com o país de origem, além de criar um sentimento de cidadania internacional.
 
É preciso que estudantes de humanidades, exatas e biológicas entendam que um modelo de nação econômica e socialmente desenvolvida só se mantém sobre instituições sólidas. O valor democrático da cidadania é a base dessas instituições. Martha Nussbaum[1] adverte sobre o perigo de se direcionar desde cedo a educação exclusivamente para as áreas produtivas, excluindo as áreas críticas e reflexivas. A autora relaciona a ausência cada vez maior das ciências humanas nos currículos à perda de uma "alma" que nos torna humanos, e chama a atenção para o fato de que o sistema educacional na maioria dos países busca cada vez mais o lucro e se esquece de desenvolver habilidades que são fundamentais para a garantia da democracia. Segundo ela, “se esta tendência continuar, nações do mundo inteiro logo estarão produzindo gerações de máquinas utilitárias, ao invés de cidadãos completos capazes de pensar autonomamente, ter uma postura crítica a respeito dos valores tradicionais, e entender o significado dos sofrimentos e conquistas do outro”.
 
A exposição a outras culturas contribui para a formação de uma visão comparativa da cultura original do intercambista com a de seu local de destino, bem como uma reflexão, sob um novo ponto de vista, de sua própria cultura Em outras palavras, as humanidades perdem espaço na educação em favor das habilidades que garantem a obtenção do lucro no curto prazo. Para Nussbaum, a tendência que ela chama de “education for profit” (educação para o lucro, para o crescimento econômico) está impondo uma visão empobrecida e distorcida da formação básica e universitária em diversos países do mundo. Ela chega a afirmar que o pensamento crítico não seria uma parte importante da educação para o crescimento econômico: “a liberdade de pensamento dos estudantes é perigosa quando o que se deseja é um grupo de trabalhadores obedientes treinados tecnicamente para colocar em prática os planos de uma elite que tem como objetivo o investimento estrangeiro e o desenvolvimento tecnológico”. Um exemplo disso é a política adotada na província de Guajarat na Índia, famosa por seu desenvolvimento tecnológico e a docilidade de seus trabalhadores.
 
As mudanças globais estão ocorrendo não apenas em termos sociais e culturais, mas também na forma de produção de bens e na divisão do trabalho, que exigem novos tipos de habilidades e tendem a uma polarização, como descrito por estudos recentes da Sloan School of Economics[2]. De acordo com esse estudo, países industrializados como os Estados Unidos estão observando o surgimento de um fenômeno de polarização em seus postos de trabalho. O alto grau de automação de algumas indústrias reduziu drasticamente o número de postos de trabalho. Ocorre que um grande número de profissionais altamente capacitados acaba sendo subaproveitado, ocupando postos de trabalho tradicionalmente preenchidos por profissionais menos qualificados. Este é um exemplo de um fenômeno que pode afetar o Brasil nas próximas décadas e, como resultado, poderíamos ver a mesma geração de técnicos e engenheiros desempregados dentro de alguns anos.
 
Algumas evidências já podem ser observadas no Brasil, sendo apontados dois fatores desse processo: tanto a desindustrialização brasileira quanto a inovação tecnológica[3]. A desindustrialização, apesar de não ser consenso entre os analistas, seria um efeito da diminuição da participação das indústrias no PIB do país, que vem sendo observada desde os anos 1980. Num momento em que o real está supervalorizado em relação ao dólar americano e as exportações chinesas crescem e se tornam competitivas, as importações ganham espaço na pauta comercial do país, o que pode ser um obstáculo às indústrias brasileiras – culminando numa futura desindustrialização de fato. Além disso, o país tem copiado os modelos de desenvolvimento tecnológico dos países mais desenvolvidos, como os EUA, em que a tecnologia acaba por expulsar mão de obra das indústrias, como mencionado acima. 
 
Da perspectiva da organização espacial, os impactos da nova ordem econômica para o meio ambiente e as cidades podem ser desastrosos, e já começam a ser sentidos no Brasil, como apontado por Marisa Moreira Salles:
 
“São Paulo vive um dos processos mais vigorosos de desconcentração industrial em curso no planeta. Áreas urbanas previamente ocupadas por indústrias, galpões, armazéns ou entrepostos buscam novas vocações.”[4]
 
Segundo Salles, enquanto outros países implementam projetos urbanísticos que permitem ao poder público estabelecer as diretrizes sobre como lidar com esse fenômeno socioeconômico, no Brasil deixamos o problema nas mãos da iniciativa privada. Cidades como Barcelona, Londres ou Boston têm uma experiência de renovação de áreas industriais que pode servir como estudo de caso para estudantes brasileiros que serão os futuros desenvolvedores de políticas públicas para nossas cidades. A experiência bem-sucedida desses casos demonstrou o papel central que os arquitetos, geógrafos, economistas, sociólogos e historiadores, entre outros, exerceram no desenvolvimento e execução dos projetos urbanísticos. De fato, os problemas sociais, econômicos e urbanos precisam ser tratados por profissionais das ciências humanas, e não apenas por cientistas e engenheiros.
 
Nas áreas exatas, biológicas e tecnológicas existe maior uniformidade de conteúdos, mesmo comparando-se países de maior e menor desenvolvimento. Por esse motivo essas áreas são chamadas de áreas de alto consenso[5]. Já as humanidades, mais ligadas às culturas específicas de cada local, são áreas de grande diversidade de opiniões, métodos e teorias. A exposição a outras culturas contribui para a formação de uma visão comparativa da cultura original do intercambista com a de seu local de destino, bem como uma reflexão, sob um novo ponto de vista, de sua própria cultura.
 
Celso Furtado afirmava que por mais que os países da periferia tentem superar sua defasagem em relação aos países ricos, estarão sempre à margem do processo de desenvolvimento, porque a simples transposição de tecnologias vindas de outras realidades não resolve o problema local, podendo mesmo criar novos problemas. A importação de modelos tecnológicos sem uma reflexão crítica pode piorar questões sociais e ambientais, daí a importância não apenas de se incluir pesquisadores da área de humanas no processo de abertura para o mundo, mas, sobretudo, de criar oportunidades de interação entre estudantes de ciências humanas, exatas, biológicas e tecnologias, de modo que os primeiros possam compreender o fenômeno que se configura e os desafios da transferência de tecnologia.


[1] Nussbaum, M. C.. Not for profit: Why democracy needs the humanities. Princeton, N.J: Princeton University Press, 2010.
 
[2] Autor, D.; Dorn, D. The Growth of Low Skill Service Jobs and the Polarization of the U.S. Labor Market. Documento de pesquisa. Disponível em http://economics.mit.edu/files/1474. Acesso em 3 de abril de 2012.
 
[3] Nassif, André. (2008) “Há evidências de desindustrialização no Brasil?”. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rep/v28n1/a04v28n1.pdf. Acesso em 1 de maio de 2012.
 
[4] Salles, Marisa Moreira. Tendências/Debates. Folha de São Paulo, de 25 de abril de 2012.
 
[5] Hargens, Lowell L.; Hagstrom, Warren O. Scientific Consensus and Academic Status Attainment Patterns. Sociology of Education, v55 n4, p183-96, outubro de 1982.