01/11/2010

Vannevar Bush

Ciência, a Fronteira Sem Fim: o documento que ajudou a moldar a pesquisa na segunda metade do século XX

Science, the Endless Frontier, A Report to the President by Vannevar Bush, director of the Office of Scientific Research and Development, July 1945

Science The Endless Frontier
A Report to the President by Vannevar Bush, director of the
Office of Scientific Research and Development, July 1945

Ciência, a Fronteira sem Fim
Um relatório para o presidente, por Vannevar Bush, diretor do
Escritório de Pesquisa Científica e Desenvolvimento, julho de 1945

O documento que Ensino Superior Unicamp publica em sua seção Histórias fez 55 anos em julho de 2010; e sua citação pelo reitor da Universidade Yale, no discurso publicado na página 26 desta edição, é mais um indicador de sua influência. Ciência, a Fronteira sem Fim surgiu de uma encomenda feita por Franklin Delano Roosevelt, o presidente que levou os Estados Unidos da Depressão à vitória na II Guerra Mundial, a seu braço direito para assuntos de ciência – Vannevar Bush, engenheiro elétrico do Massachusetts Institute of Technology (MIT) desde a década de 1920, pioneiro da computação e do apoio profissionalizado à pesquisa científica e tecnológica. Durante os anos de guerra, Bush organizou e articulou a cooperação dos engenheiros, cientistas e pesquisadores civis. Saiu-se bem na tarefa: o aperfeiçoamento do radar e a invenção da bomba atômica, por exemplo, se deram sob sua influência e proteção. O papel desempenhado pelos civis nesses projetos foi decisivo; e quem fez a ligação entre eles, os militares e o comandante em chefe Roosevelt foi Bush.
Em sua encomenda a Bush, Roosevelt assinala de saída o sucesso do assessor: “O Escritório de Pesquisa e Desenvolvimento Científico [...] representa uma experiência única de trabalho [...] na aplicação do conhecimento científico existente para a solução de problemas técnicos fundamentais na guerra”. Isto posto, continua o presidente, por que não aplicar as lições da experiência à pesquisa em tempos de paz?

Oito meses depois da carta de encomenda, datada de novembro de 1944, e duas semanas depois da explosão da bomba de Hiroshima, Bush entregou em resposta o documento que publicamos a seguir. Mas não a Roosevelt, que morrera em abril de 1945. Quem o recebeu foi o presidente Harry Truman. Há, no pedido da Casa Branca, e na formulação apresentada por Bush, que a elaborou a partir do trabalho de comissões, uma tranquila certeza sobre o poder da ciência e o papel decisivo que ela já desempenhava e, na visão de seu autor, continuaria a desempenhar para o emprego, para a guerra contra a doença, para a segurança nacional. A confiança no futuro que caracterizou as décadas de 50, 60 e 70 do século XX pousava também sobre a ciência; e, ao mesmo tempo, constituía sua sustentação.

Do documento, Ensino Superior Unicamp publica: a carta de encaminhamento do relatório, assinada por Bush; a carta em que o presidente Roosevelt encomenda a elaboração do relatório; o Sumário; e o capítulo introdutório. Estudiosos dizem encontrar nele a manifestação de uma visão ingênua – e, dizem os críticos, ultrapassada: a de que basta o Estado financiar a pesquisa básica e desinteressada na academia para a aplicação desses conhecimentos chegar espontaneamente às empresas. Atribui-se a ele, também, ter dado impulso à expressão “pesquisa básica”. Em artigo de agosto de 2010, a revista Nature publicou o gráfico ao lado, que mostra a disseminação de seu uso.

USO DA EXPRESSÃO “PESQUISA BÁSICA”

Mas a leitura do documento contra o fundo do perfil de pesquisador e articulador de Bush enfraquece spaço para a discussão da fronteira entre a chamada ciência básica e sua aplicação. Dividiu as tarefas de pesquisa e desenvolvimento do esforço de guerra com os laboratórios industriais das grandes corporações norte-americanas. Fundou companhias de sucesso a partir de seus inventos.

O papel vigoroso da atividade empresarial na apropriação e na geração do conhecimento científico não é, no entanto, o tema do documento. A ênfase está na criação das condições para que a produção de conhecimento continuasse a acontecer na velocidade e com a relevância do tempo da guerra. Para isso, Bush propõe a criação de uma agência independente de fomento à pesquisa, uma espécie de marco zero da poderosa National Science Foundation, que nasceu em 1950. “O progresso científico é essencial [...] para a guerra contra as doenças [...] para nossa segurança nacional [...] e para o bem-estar da população”, nos dizem os intertítulos programáticos do sumário do documento. Mais de cinco décadas depois, o mundo nos autoriza a dizer que não?


CARTA DE ENCAMINHAMENTO
ESCRITÓRIO DE PESQUISA E DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO

1530 P Street, NW - Washington 25, D.C.
25 de julho de 1945


Caro Senhor Presidente,

Em carta datada de 17 de novembro de 1944, o presidente Roosevelt solicitou minhas recomendações a respeito dos seguintes pontos:

(1) O que pode ser feito, respeitada a segurança militar e com a aprovação prévia das autoridades militares, para anunciar ao mundo, tão logo seja possível, as contribuições ao conhecimento científico feitas durante nosso esforço de guerra?

(2) Com referência à guerra da ciência contra as doenças em particular, o que pode ser feito neste momento para organizar um programa que dê continuidade no futuro ao trabalho feito em medicina e nas ciências relacionadas?

(3) O que o governo pode fazer, agora e no futuro, para ajudar as atividades de pesquisa de organizações públicas e privadas?

(4) É possível propor um programa eficaz para a descoberta e o desenvolvimento de talentos científicos na juventude americana, para que o futuro da pesquisa científica neste país fique assegurado num nível comparável ao dos tempos de guerra?

A carta do presidente Roosevelt deixa claro que, ao falar em ciência, ele tinha em mente as ciências naturais, inclusive a biologia e a medicina, e foi assim que interpretei suas perguntas.

O progresso em outros campos, como as ciências sociais e humanas, é igualmente importante; mas o programa para a ciência apresentado em meu relatório requer atenção imediata.

Na busca de respostas para as perguntas do presidente Roosevelt, tive a ajuda de comissões ilustres com qualificação especial para aconselhamento sobre esses assuntos. As comissões dedicaram a eles a cuidadosa atenção que merecem; de fato, para elas foi uma oportunidade de participar da formulação da política do país em relação à pesquisa científica. Reuniram-se muitas vezes e entregaram relatórios formais. Mantive-me próximo ao trabalho das comissões e de seus membros o tempo todo. Examinei todos os dados que elas reuniram e as sugestões que fizeram sobre os pontos levantados na carta do presidente Roosevelt.

Embora o relatório que aqui envio seja de minha autoria, os fatos, as conclusões e as recomendações estão baseados nas constatações das comissões que estudaram essas questões. Como meu relatório precisa ser breve, incluí como anexos os relatórios completos feitos por elas.

É essencial um mecanismo único para a implantação das recomendações das várias comissões. Ao propor tal mecanismo, afastei-me um pouco delas, mas assegurei-me de que o plano que proponho é inteiramente aceitável para seus membros.

O espírito de pioneirismo ainda é vigoroso neste país. A ciência oferece um território quase inexplorado para o pioneiro que possui as ferramentas para cumprir sua tarefa. As recompensas dessa exploração, para a Nação e para o indivíduo, são muito grandes. O progresso científico é um elemento essencial para nossa segurança como nação, para uma saúde melhor, para mais empregos, para um melhor padrão de vida e para nosso progresso cultural.

Respeitosamente,

V. Bush, diretor

 

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CARTA DO PRESIDENTE ROOSEVELT
CASA BRANCA

Washington, D.C.
17 de novembro de 1944
Caro Doutor Bush,

O Escritório de Pesquisa e Desenvolvimento Científico, do qual o senhor é diretor, representa uma experiência única de trabalho em equipe e de cooperação na coordenação da pesquisa científica e na aplicação do conhecimento científico existente para a solução de problemas técnicos fundamentais na guerra. Seu trabalho tem se desenrolado com o máximo sigilo e sem nenhum tipo de reconhecimento público; mas resultados tangíveis podem ser vistos nos comunicados que chegam das frentes de batalha do mundo inteiro. Algum dia a história completa de seus feitos poderá ser contada.

Não existe, entretanto, nenhuma razão para que as lições aprendidas nessa experiência não sejam aplicadas vantajosamente em tempos de paz. As informações, as técnicas e a experiência em pesquisa desenvolvidas pelo Escritório de Pesquisa e Desenvolvimento Científico e por milhares de cientistas em universidades e em indústrias privadas devem ser utilizadas nos dias de paz que temos à frente para melhorar a saúde nacional, criar novos empreendimentos que trarão novos empregos e elevar o padrão de vida nacional.
É com esse objetivo em mente que gostaria das suas recomendações nos seguintes grandes tópicos:

Primeiro: O que pode ser feito, respeitada a segurança militar e com a aprovação prévia das autoridades militares, para anunciar ao mundo, tão logo seja possível, as contribuições ao conhecimento científico feitas durante nosso esforço de guerra? A difusão desse conhecimento deve nos ajudar a estimular novos empreendimentos, a proporcionar empregos – para nossos soldados que regressam e para outros trabalhadores, e tornar possível grandes avanços para a melhora do bem-estar nacional.

Segundo: Com referência à guerra da ciência contra as doenças em particular, o que pode ser feito neste momento para organizar um programa que dê continuidade no futuro ao trabalho feito em medicina e nas ciências relacionadas? O fato de as mortes anuais causadas por apenas uma ou duas doenças superarem em muito o número total de vidas perdidas por nós durante a guerra atual deve fazer-nos conscientes do nosso dever para com as gerações futuras.

Terceiro: O que o governo pode fazer, agora e no futuro, para ajudar as atividades de pesquisa de organizações públicas e privadas? O papel adequado da pesquisa pública e da privada e sua inter-relação devem ser levados em conta cuidadosamente.

Quarto: É possível propor um programa eficaz para a descoberta e o desenvolvimento de talentos científicos na juventude americana, para que o futuro da pesquisa científica neste país fique assegurado num nível comparável ao dos tempos de guerra?

Novas fronteiras para a mente estão diante de nós. Se forem exploradas com a mesma visão, arrojo e ímpeto com os quais empreendemos esta guerra, poderemos criar melhores empregos, mais frutíferos; e uma vida melhor e mais frutífera.

Espero que, depois das consultas que julgar aconselháveis àqueles que trabalham consigo e com outras pessoas, o senhor me informe assim que possível o seu respeitável julgamento sobre esses assuntos – informando-me sobre cada um deles quando estiver pronto em vez de esperar que seus estudos sobre todos estejam terminados.

Sinceramente,
Franklin D. Roosevelt


O RELATÓRIO

Ciência, a Fronteira sem Fim
“Novas fronteiras para a mente estão diante de nós. Se forem exploradas com a mesma visão, arrojo e ímpeto com os quais empreendemos esta guerra, poderemos criar melhores empregos, mais frutíferos; e uma vida melhor e mais frutífera.”

Franklin D. Roosevelt
17 de novembro de 1944

SUMÁRIO DO RELATÓRIO

O progresso científico é essencial...

O progresso na guerra contra as doenças depende de haver um fluxo de novos conhecimentos científicos. Novos produtos, novas indústrias e mais empregos requerem contínuos acréscimos no conhecimento das leis da natureza e sua aplicação à prática. Da mesma forma, nossa defesa contra a agressão exige novos conhecimentos, para que possamos desenvolver armas novas e melhores. Tal conhecimento novo e essencial só pode ser alcançado por meio da pesquisa científica básica.
A ciência é eficaz para o bem-estar nacional somente se for parte de um todo, sejam as condições de paz ou de guerra. Mas sem progresso científico nada que for conquistado em outras direções poderá assegurar nossa saúde, prosperidade e segurança como nação no mundo moderno.

... para a guerra contra as doenças...

Fizemos grandes avanços na luta contra as doenças. A taxa de mortalidade de todas as doenças no Exército, incluindo as Forças no exterior, foi reduzida de 14,1 por 1.000 na guerra anterior para 0,6/1.000 no atual conflito. Nos últimos 40 anos, a expectativa de vida aumentou de 49 para 65 anos, em grande parte em consequência da redução da mortalidade infantil. Mas estamos longe do objetivo. O número anual de mortes causadas por uma ou duas doenças é muito maior que o total de americanos mortos no campo de batalha no atual conflito. Uma grande parcela dessas mortes em nossa população civil abrevia a vida útil de nossos cidadãos. Aproximadamente 7 milhões de pessoas nos Estados Unidos sofrxem de doenças mentais, e o cuidado com elas custa US$ 175 milhões ao ano. Está claro que existem muitas doenças para as quais ainda não se conhecem meios de prevenção nem de cura.

A responsabilidade pela pesquisa básica em medicina e nas ciências relacionadas, tão essencial ao progresso na guerra contra as doenças, recai, sobretudo, sobre as escolas de medicina e universidades. E, no entanto, nota-se que as formas tradicionais de apoio à pesquisa médica nessas instituições – em geral dotações, subvenções de fundações e doações particulares – vêm minguando, e não há perspectiva imediata de reversão dessa tendência. Enquanto isso, o custo da pesquisa médica cresce. Se formos manter o progresso que marcou os últimos 25 anos na medicina, o governo deveria aumentar o apoio financeiro à pesquisa médica básica nas escolas de medicina e universidades.

... para nossa segurança nacional...

A terrível e perigosa luta contra os U boats foi uma batalha de técnicas científicas – e nossa margem de sucesso foi perigosamente estreita. Os novos olhos proporcionados pelo radar algumas vezes podem ser cegados por novos desenvolvimentos científicos. As V-2 foram neutralizadas somente com a captura das bases de lançamento.

Não podemos voltar a depender de nossos aliados para segurar o inimigo enquanto lutamos para nos equiparar a ele. É preciso que haja mais pesquisa militar – e mais adequada – em tempos de paz. É essencial que os cientistas civis continuem a fazer, na paz, uma parte das contribuições à segurança nacional que fizeram com tanta eficácia durante a guerra. A melhor maneira de fazê-lo é por meio de uma organização sob controle civil que tenha laços estreitos com o Exército e a Marinha, mas que receba fundos diretamente do Congresso, e com autonomia clara para dar início a pesquisas militares que vão suplementar e fortalecer a pesquisa realizada sob controle direto do Exército e da Marinha.

... e para o bem-estar da população

Uma de nossas esperanças é de que depois da guerra haverá pleno emprego. Para alcançar esse objetivo, todas as energias criativas e produtivas do povo americano devem ser acionadas. Para criar mais empregos devemos fazer produtos novos, melhores e mais baratos. Queremos muitos empreendimentos novos e vigorosos. Mas novos produtos e processos não nascem prontos. Eles se baseiam em novos princípios e novas concepções, que, por sua vez, são resultado de pesquisa científica básica. A pesquisa científica básica é capital científico. De mais a mais, não podemos mais depender da Europa como a maior fonte desse capital científico. Está claro que mais e melhor pesquisa científica são elementos essenciais para a conquista do nosso objetivo de pleno emprego.

Como aumentamos esse capital científico? Em primeiro lugar, devemos ter muitas mulheres e muitos homens treinados em ciência, pois deles dependem a criação de novos conhecimentos e sua aplicação prática. Em segundo lugar, devemos fortalecer os centros de pesquisa básica, que são principalmente as faculdades [colleges], as universidades e os institutos de pesquisa. Essas instituições proporcionam o ambiente mais propício à criação de novos conhecimentos científicos e estão menos sujeitas a pressões por resultados imediatos e tangíveis. Com algumas notáveis exceções, a maior parte da pesquisa na indústria e no governo envolve a aplicação de conhecimento científico existente a questões práticas. São somente as faculdades, as universidades e alguns poucos institutos de pesquisa que dirigem a maior parte de seus esforços de pesquisa à expansão das fronteiras do conhecimento.

Os gastos da indústria e do governo com pesquisa científica aumentaram de US$ 140 milhões em 1930 para US$ 309 milhões de dólares em 1940. As verbas destinadas a faculdades e universidades cresceram de US$ 20 milhões para US$ 31 milhões; para os institutos de pesquisa, diminuíram de US$ 5,2 milhões para US$ 4,5 milhões, no mesmo período. Se for para as faculdades, as universidades e os institutos de pesquisa corresponderem à rápida e crescente demanda da indústria e do governo por novos conhecimentos científicos, sua pesquisa básica deve ser fortalecida com o uso de dinheiro público.

Para que a ciência seja um fator poderoso em nosso bem-estar nacional, a pesquisa aplicada da indústria e do governo deve ser vigorosa. Para melhorar a qualidade da pesquisa científica no governo, passos devem ser dados para modificar os procedimentos de recrutamento, classificação e compensação do pessoal científico, de maneira a reduzir a desvantagem atual dos escritórios científicos governamentais na competição com a indústria e com as universidades pelos talentos científicos de primeira linha. Para coordenar as atividades científicas comuns dessas agências governamentais, no que se refere a políticas e orçamentos, deve ser criado um Conselho Consultivo de Ciência [Science Advisory Board], que assessorará o Executivo e o Legislativo nesses assuntos.

As formas mais importantes de o governo promover a pesquisa industrial são aumentar o fluxo de novos conhecimentos científicos por meio do apoio à pesquisa básica e fomentar o desenvolvimento do talento científico. Além disso, o governo deve proporcionar incentivos adequados para que a indústria faça pesquisa, (a) clarificando as atuais ambiguidades nas regras do Imposto de Renda quanto à dedutibilidade dos gastos com pesquisa e desenvolvimento; e (b) fortalecendo o sistema de patentes de modo a eliminar as incertezas que hoje são um grande peso para as indústrias de pequeno porte, e a impedir abusos que causam o descrédito de um sistema basicamente sólido. Além disso, devem ser encontradas maneiras de fazer com que os benefícios da pesquisa básica atinjam setores que atualmente não utilizam novos conhecimentos científicos.

Precisamos renovar nosso talento científico...

A responsabilidade pela criação de novos conhecimentos científicos – e para a maior parte de suas aplicações – recai sobre um grupo pequeno de mulheres e homens que compreendem as leis fundamentais da natureza e são peritos nas técnicas de pesquisa científica. Nossos avanços em qualquer fronteira científica serão maiores ou menores conforme o número de cientistas altamente qualificados e treinados que a explore.

O déficit de alunos de ciência e tecnologia que, não fora a guerra, teriam terminado a graduação, é de cerca de 150 mil. Estima-se que o déficit dos que terminariam pós-graduação nessas áreas chegará a aproximadamente 17 mil em 1955 – uma vez que se passam pelo menos seis anos entre a entrada no ensino superior e o término de um doutorado ou equivalente em ciência ou engenharia. O verdadeiro limite da nossa produtividade em novos conhecimentos científicos e sua aplicação na guerra contra as doenças, no desenvolvimento de novos produtos e novas indústrias, é o número disponível de cientistas treinados.

O treinamento de um cientista é um processo longo e caro. Há estudos que mostram com clareza que existem indivíduos talentosos em todas as parcelas da população, mas, com poucas exceções, aqueles que não têm meios de pagar pela educação superior acabam por abrir mão dela. Se o que determinar quem deve receber educação superior em ciência for a capacidade, e não a circunstância de a família possuir fortuna, estaremos assegurando uma melhora constante de qualidade em todos os níveis de atividade científica. O governo deveria prover um número razoável de bolsas de estudo de graduação e pós-graduação para desenvolver o talento científico na juventude americana. Devem ser concebidos planos para atrair para as ciências apenas a parcela de jovens talentos adequada às necessidades da ciência, em relação às demais necessidades da nação por capacidades superiores.

... por meio da inclusão dos militares

A perspectiva mais imediata de superar o déficit de pessoal científico é o desenvolvimento do talento científico na geração que atualmente veste farda. Mesmo se começarmos agora a treinar a atual colheita de estudantes secundaristas, nenhum terminaria a pós-graduação antes de 1951. As Forças Armadas deveriam analisar suas fichas em busca de homens que, antes ou durante a guerra, mostraram talento para a ciência, e tomar medidas urgentes, consistentes com os atuais planos de dispensa, para determinar àqueles que permanecerem em suas fileiras que, tão logo seja militarmente possível, prestem serviço em instituições, no país ou no exterior, onde possam prosseguir sua educação científica. Além disso, devem fazer com que nossos estudantes no estrangeiro recebam as informações científicas mais atualizadas resultantes das pesquisas feitas durante a guerra.

A tampa deve ser levantada

Embora a maior parte da pesquisa de guerra tenha envolvido a aplicação, aos problemas de guerra, dos conhecimentos científicos existentes e não à pesquisa básica, acumulou-se uma vasta quantidade de informações relacionadas à aplicação da ciência a problemas específicos. Muito disso pode ser utilizado pela indústria. E também pode ser usado no ensino nas faculdades e universidades daqui e nos Institutos das Forças Armadas no exterior. Parte dessas informações precisa permanecer secreta, mas a maioria pode se tornar pública tão logo haja razões para se acreditar que o inimigo não será capaz de usá-las contra nós neste conflito. Para selecionar o que pode se tornar público, coordenar sua divulgação e definitivamente encorajar sua publicação, um Conselho composto pelo Exército, pela Marinha e por cientistas civis deve ser criado imediatamente.

Um programa de ação

O governo deve aceitar novas responsabilidades para promover o fluxo de novos conhecimentos científicos e o desenvolvimento do talento científico em nossa juventude. Essas são responsabilidades próprias do governo, pois afetam de forma vital nossa saúde, nossos empregos e nossa segurança nacional. Também estão de acordo com a política básica dos Estados Unidos de que o governo deve incentivar a abertura de novas fronteiras, e essa é a maneira moderna de fazê-lo. Por muitos anos, o governo vem sabiamente apoiando a pesquisa em escolas agrícolas, e os benefícios têm sido enormes. Chegou a hora de estender esses benefícios a outros campos.

O desempenho eficaz dessas novas responsabilidades demandará a total atenção de uma agência destinada a esse fim. Hoje não existe na estrutura governamental permanente uma agência que receba verbas do Congresso adaptada para suplementar o apoio à pesquisa básica nas faculdades, nas universidades e nos institutos de pesquisa, em medicina e nas ciências naturais, nem para apoiar a pesquisa sobre novos armamentos nas duas Armas das Forças Armadas, ou para administrar um programa de bolsas de estudos em ciências.

Portanto, recomendo a criação de uma nova agência com essas funções. Ela deverá ser integrada por pessoas com experiências e interesses amplos, que tenham a compreensão das peculiaridades da pesquisa e educação científicas. Deve ter estabilidade financeira para embarcar em programas de longo prazo. Deve reconhecer que a liberdade de investigação precisa ser preservada e deixar o controle interno das políticas, do pessoal, dos métodos e da abrangência das pesquisas a cargo das instituições onde elas são conduzidas. Deve ser integralmente responsável por seu programa perante o presidente da República e, por intermédio dele, perante o Congresso.

É imperativa uma ação rápida sobre estas recomendações se este país quiser enfrentar o desafio da ciência nos anos vindouros. Da sensatez com que trouxermos a ciência para participar da guerra contra as doenças, da criação de novas indústrias e do fortalecimento das nossas Forças Armadas depende em grande parte nosso futuro como nação.


CAPÍTULO 1

Introdução

O progresso científico é essencial

Todos sabemos o que essa nova droga, a penicilina, significou para nossos homens gravemente feridos nas terríveis frentes de batalha do atual conflito – as inúmeras vidas que ela salvou, o sofrimento incalculável que seu uso evitou. Foram a ciência e a genialidade prática deste país que fizeram essa conquista possível.

Alguns de nós conhecem o papel vital que o radar teve na vitória dos Aliados sobre a Alemanha nazista e na retirada dos japoneses de seus bastiões nas ilhas do Pacífico. Foram anos de pesquisa científica cuidadosa que tornaram o radar possível.

O que frequentemente nos esquecemos é dos milhões de envelopes de pagamento que são subscritos nas noites de sábado em tempos de paz porque novos produtos e novas indústrias proporcionaram empregos para incontáveis americanos. Foi também a ciência que tornou isso possível.

Em 1939, milhões de pessoas estavam empregadas em setores que nem sequer existiam no final da guerra anterior – rádio, ar-condicionado, raiom e outras fibras sintéticas e plásticos são exemplos de produtos dessas indústrias. Mas eles não significam o fim do progresso – são apenas o começo, se usarmos todos os nossos recursos científicos. Novas indústrias manufatureiras podem ser criadas e muitas antigas fortalecidas e expandidas se continuarmos a estudar as leis da natureza e a aplicar novos conhecimentos à prática.

Grandes avanços na agricultura também resultam de pesquisa científica. Plantas mais resistentes a doenças e adaptadas a um período de crescimento curto, a prevenção e a cura de doenças animais, o controle dos insetos inimigos, fertilizantes melhores e práticas agrícolas aperfeiçoadas, tudo isso vem da pesquisa científica cuidadosa.

Os avanços na ciência, quando colocados em prática, significam mais empregos, salários maiores, jornadas de trabalho menores, colheitas mais abundantes, mais tempo para a recreação, para o estudo, para aprender a viver sem o trabalho mortalmente fatigante que tem sido a sina do homem comum há eras. Os avanços na ciência também trarão padrões de vida mais elevados, levarão à prevenção ou à cura de doenças, permitirão a preservação dos nossos recursos naturais, que são limitados, e nos darão meios de nos defendermos de agressões. Mas, para atingir esses objetivos – garantir um alto nível de emprego, manter uma posição de liderança mundial –, o fluxo de novos conhecimentos científicos deve ser contínuo e substancial.

Nossa população cresceu de 75 milhões para 130 milhões entre 1900 e 1940. Em alguns países, crescimentos comparáveis têm sido acompanhados de fome. Neste país, o aumento foi acompanhado por mais alimentos, vida melhor, mais lazer, vida mais longa e saúde melhor. Isso é, em grande parte, resultado de três fatores: a liberdade de iniciativa de um povo sob a democracia, a herança de uma grande riqueza nacional e o avanço da ciência e sua aplicação.

Sozinha, a ciência não é uma panaceia para males individuais, sociais e econômicos. Ela é eficaz para o bem-estar nacional somente se for parte de um todo, sejam as condições de paz ou de guerra. Mas sem progresso científico nada que for conquistado em outras direções poderá assegurar nossa saúde, prosperidade e segurança como nação no mundo moderno.

É atribuição do governo
preocupar-se com a ciência

Tem sido uma política básica dos Estados Unidos o governo incentivar a abertura de novas fronteiras. Ele abriu os mares para os grandes veleiros e deu terra a pioneiros. Embora essas fronteiras tenham mais ou menos desaparecido, a da ciência permanece. É na continuidade dessa tradição americana – uma das que fizeram grandes os Estados Unidos – que novas fronteiras devem se tornar acessíveis para o desenvolvimento por todos os cidadãos americanos. Acima de tudo, como a saúde, o bem-estar e a segurança são atribuições do governo, o progresso científico é, e tem de ser, interesse vital dele. Sem o progresso científico, a saúde nacional se deterioraria; sem o progresso científico, não teríamos esperança de melhorar nosso padrão de vida nem de aumentar o número de empregos para nossos cidadãos; e sem o progresso científico não teríamos logrado manter nossa liberdade contra a tirania.

A relação entre governo e ciência –
passado e futuro

Desde cedo o governo demonstrou um ativo interesse em assuntos científicos. Durante o século XIX, criou o Levantamento Geodésico e Costeiro [Coast and Geodetic Survey], o Observatório Naval, o Departamento de Agricultura e o Levantamento Geológico [Geological Survey]. Por meio da lei dos Land Grant Colleges [referência à lei de 1862 pela qual o Estado que criasse instituição de ensino superior voltada para o desenvolvimento da agricultura e das “artes mecânicas” poderia receber terras devolutas da União], há mais de 80 anos o governo vem apoiando crescentemente a pesquisa nos Estados. A partir de 1900, um grande número de agências científicas foi criado no governo federal, chegando a mais de 40 em 1939.

Muito da pesquisa científica feita por agências governamentais é de caráter intermediário entre os dois tipos de trabalho comumente chamados de pesquisa básica e pesquisa aplicada. Quase todo o trabalho científico do governo tem fins práticos, mas em muitas áreas de amplo interesse nacional ele frequentemente envolve investigação de longo prazo de natureza fundamental. De modo geral, as agências científicas governamentais não estão tão preocupadas com objetivos práticos imediatos como os laboratórios industriais; nem, por outro lado, estão tão livres para explorar fenômenos naturais sem preocupação com possíveis aplicações econômicas como estão as instituições educativas e de pesquisa privadas. As agências científicas governamentais têm um esplêndido retrospecto de conquistas, mas suas funções são limitadas.

Não temos uma política nacional para a ciência. O governo apenas começou a usar a ciência para o bem-estar da nação. Não existe no governo um órgão encarregado de formular ou executar uma política nacional de ciência. Não existem comissões permanentes no Congresso dedicadas a esse importante assunto. A ciência tem estado nos bastidores. Ela deve ser trazida para o centro do palco – pois nela está depositada boa parte da nossa esperança no futuro.

Há áreas da ciência nas quais o interesse público é agudo, mas que provavelmente serão inadequadamente cultivadas se não receberem mais do que apoio de fontes privadas. Essas áreas – tais como pesquisa sobre problemas militares, agricultura, habitação, saúde pública, algumas pesquisas médicas e pesquisas que envolvam instalações e equipamentos tão caros que excedem a capacidade das instituições privadas – devem avançar com apoio governamental ativo. Até hoje, à exceção da pesquisa intensiva de guerra feita pelo Escritório de Pesquisa Científica e Desenvolvimento [Office of Scientific Research and Development], esse apoio tem sido escasso e intermitente.

Pelas razões apresentadas neste relatório, estamos entrando num período no qual a ciência precisa e merece apoio de dinheiro público.

A liberdade de investigação
deve ser preservada

As faculdades [colleges], as universidades e os institutos de pesquisa, mantidos pelo governo ou pela iniciativa privada, são os centros para a pesquisa básica. Eles são a fonte do conhecimento e da compreensão. Enquanto permanecerem vigorosos e saudáveis e seus cientistas forem livres para ir em busca da verdade, seja lá aonde isso os levar, haverá um fluxo de novos conhecimentos científicos rumo àqueles que podem aplicá-los a problemas práticos no governo, na indústria ou em outro lugar.

Muitas das lições aprendidas na aplicação da ciência em tempos de guerra pelo governo podem ser aplicadas proveitosamente na paz. O governo tem uma aptidão peculiar para exercer certas funções, como a coordenação e o apoio a amplos programas sobre problemas de grande importância nacional. Mas devemos proceder com cuidado ao transpor os métodos que funcionaram nos tempos de guerra para as condições muito diferentes da paz. Devemos remover os controles rígidos que tivemos de impor e recuperar a liberdade de investigação e aquele saudável espírito científico tão necessário à expansão das fronteiras do conhecimento científico.

O progresso científico num amplo espectro resulta do livre exercício de intelectos livres que trabalham em assuntos de sua própria escolha da forma ditada por sua curiosidade na exploração do desconhecido. A liberdade de investigação tem de ser preservada em qualquer plano governamental de apoio à ciência, conforme os Cinco Fundamentos listados adiante [os fundamentos são:

(1) Independentemente da extensão do apoio, é preciso que haja estabilidade no fluxo de financiamento ao longo de vários anos para que programas de longo prazo possam ser desenvolvidos.

(2) A agência que administrar tais financiamentos deve ser integrada por cidadãos escolhidos exclusivamente com base em seu interesse e capacidade para estimular o trabalho da agência. Devem ser pessoas com amplos interesses e compreensão das peculiaridades da pesquisa científica e da educação.

(3) A agência deverá fomentar a pesquisa por meio de contratos ou doações a organizações que não sejam do governo federal. Ela não deve operar nenhum laboratório próprio.

(4) O apoio à pesquisa básica em faculdades, universidades e institutos de pesquisa públicos e privados precisa deixar o controle interno das políticas, da equipe de trabalho e do alcance da pesquisa a cargo das próprias instituições. Isso é da máxima importância.

(5) Ao mesmo tempo em que assegura completa independência e liberdade no que diz respeito à natureza, ao alcance e à metodologia da pesquisa desenvolvida nas instituições que recebem dinheiro público, e, por outro lado, guarda para si o poder de decisão na alocação dos fundos entre elas, a Fundação aqui proposta deve responder ao presidente da República e ao Congresso. É somente por meio dessa responsabilidade que poderemos manter o relacionamento apropriado entre a ciência e outros aspectos de um sistema democrático. Os controles habituais de auditorias, relatórios, controle do orçamento e similares devem, é claro, ser aplicados ao funcionamento administrativo e fiscal da Fundação, mas sujeitos, no entanto, às adaptações de procedimento necessárias para atender às necessidades especiais da pesquisa.”].

O estudo das importantes questões apresentadas na carta do presidente Roosevelt foi feito por comissões capacitadas, que trabalharam diligentemente. Este relatório apresenta conclusões e recomendações baseadas nos estudos dessas comissões, que estão completas nos anexos. Apenas na criação de um mecanismo único e geral [a referência é à proposta de criação pelo Congresso de uma agência independente, voltada exclusivamente para o apoio à pesquisa científica e à educação científica avançada, que deu origem à National Science Foundation, em 1950. N. da E.], em vez de vários deles, é que este relatório difere das recomendações específicas das comissões. Os membros das comissões analisaram as recomendações no que diz respeito ao mecanismo único e concluíram que este plano é inteiramente aceitável.