01/05/2010

Relatório Flexner

Análise do ensino médico pela Fundação Carnegie faz um século

Neste 2010, o relatório Educação Médica nos Estados Unidos e no Canadá, elaborado por Abraham Flexner (1866-1959) para a Fundação Carnegie, completa um século de existência. O documento – do qual Ensino Superior Unicamp publica aqui o texto de introdução – chega ao centésimo aniversário considerado por estu-diosos como a mais influente e mais citada referência sobre o tema. Subsequentemente à sua publicação, as informações reunidas por Flexner sobre as 155 escolas médicas que visitou na América do Norte (em 180 dias, no ano de 1909) fortaleceram mudanças já em curso e levaram à consolidação de um modelo cujos rastros chegaram ao presente: o de escolas médicas integradas a universidades, ligadas a hospitais-escola, e onde a experimentação, o ensino das ciências básicas e a prática clínica têm lugar proeminente. Flexner, na época educador relativamente obscuro, ganhou fama internacional a partir do relatório; produziu outro, sobre o ensino da medicina na Europa, em 1912; e fundou, em 1930, o Instituto de Estudos Avançados de Princeton, que dirigiu até 1939, para o qual contratou Albert Einstein.

Para relembrar sua importância e seu impacto, Ensino Superior Unicamp escolheu publicar a introdução ao relatório. Quem a escreveu foi Henry Smith Pritchett (1857-1939), professor de astronomia e diretor do observatório da Universidade Washington, de St. Louis, de 1893 a 1897; presidente do Massachusetts Institute of Technology (MIT), de 1900 a 1906; e presidente da Fundação Carnegie por 25 anos, desde a criação até 1930. Andrew Carnegie (1835-1919), pioneiro da indústria siderúrgica nos EUA, elevou o padrão de qualidade do aço norte-americano quando trouxe químicos para trabalharem em suas fábricas, que desenvolveram tecnologia própria. Fez fortuna como fornecedor do aço para os trilhos da expansão ferroviária que marcou o crescimento do país no final do século XIX. A questão de Carnegie era como gastar seu dinheiro; em 1906, dotou a Fundação que Pritchett foi chamado a dirigir com US$ 10 milhões, “para serem usados em benefício dos colleges e universidades dos Estados Unidos, Canadá e Terranova”, como conta a introdução. Na posição de presidente da Fundação, Pritchett também encomendou relatórios sobre o ensino do direito e da engenharia, similares ao que pediu a Flexner em seu objetivo e repercussão. A introdução relata a situação encontrada pelos trustees da Fundação no ensino superior da América do Norte: confusão entre colleges e o ensino secundário; e também entre colleges, escolas profissionais – entre as quais as de medicina – e universidades.

Pritchett reconhecia já haver, nas décadas de 1890 e 1900, a “tendência marcante” de se “estabelecer alguma conexão entre universidades e escolas de medicina avulsas”; para ele, diante do fato de “as ciências fundamentais das quais a medicina depende” terem avançado nas décadas precedentes – “o laboratório passou a fornecer ao médico e ao cirurgião um novo sentido no diagnóstico e no combate a doenças”, comenta –, a relação entre o ensino da medicina e o sistema existente de educação superior exigia ser “claramente definida”. Para isso, explica, a Fundação encomendou a Flexner o relatório, como o primeiro passo para chegar à desejada definição.

Com base no trabalho de Flexner, Pritchett afirma serem a “superprodução de profissionais de medicina não educados e mal treinados”, a proliferação de “escolas comerciais”, a falta de laboratórios, cuja necessidade “passou a ser sentida com mais força” e a ausência de hospitais “sob completo controle educacional” alguns dos principais achados do relatório; e as principais condições para a superação dos problemas encontrados a conscientização da opinião pública e a tomada de posição das universidades no sentido de garantir o uso de padrões científicos no ensino da medicina.

O tom cáustico do relatório, na avaliação das escolas de medicina visitadas por Flexner – das quais, de acordo com suas conclusões, apenas 31 ofereciam treinamento adequado a futuros médicos, com destaque para a modelar Escola de Medicina da Universidade Johns Hopkins – chamou a atenção do público. Em 24 de julho de 1910, o New York Times publicou com destaque um resumo do relatório, em duas páginas – que intitulou “Fábricas para formar médicos igno-rantes”. A repercussão fez a fama de Flexner e do relatório; as fábricas de médicos ignorantes gradativamente fecharam; e o convite que recebeu para integrar, a partir de 1912, o General Education Board (Conselho Geral de Educação) da Fundação Rockefeller – a primeira das fundações de milionários norte-americanos a se concentrar exclusivamente em educação – ampliou a influência e consequência de seus achados e opiniões. Mas qual a substância do relatório, para além das informações que Flexner recolheu nas rápidas visitas às escolas de medicina? Kenneth M. Ludmerer, historiador da medicina, professor da Universidade Washington, oferece clara síntese no artigo “Understanding the Flexner Report”, publicado em fevereiro de 2010 na revista Academic Medicine. No entender de Ludmerer, os pontos de vista expressos por Flexner na parte I do seu relatório, em especial no capítulo II, The Proper Basis of Medical Education (As bases apropriadas para o ensino na medicina), mostram influência das ideias de John Dewey – em especial quando advoga que, na formação do médico, é essencial o “aprender fazendo”. “Do lado pedagógico”, escreveu Flexner, “a medicina moderna, como todo o ensino científico, é caracterizada pela atividade. O estudante não mais meramente observa, escuta, memoriza – ele faz”. É pelo fato de o estudante de medicina só aprender pela prática que o custo do ensino não poderia mais ser suportado pelas pequenas “escolas comerciais” que se multiplicaram durante a segunda metade do século XIX, criadas e levadas adiante, com objetivo de lucro, por grupos de oito a dez professores. Nelas, o ensino se dava com base em livros e aulas teóricas; contra elas se insurgiram
o relatório e a Fundação Carnegie.

A exigência de fazer para aprender vinha em consequência da visão expressa por Flexner e Pritchett sobre o recentemente adquirido caráter experimental da medicina. Como decorrência, a utilização de experimentos bem planejados para a solução de problemas da prática médica passava a se mostrar necessária. O relatório também advoga que, antes do ingresso, o estudante de medicina tenha cursado no mínimo dois anos de college – para estudos de química, biologia e física; é essa a articulação da escola de medicina dentro do sistema geral de educação a que se refere Pritchett na introdução. Finalmente, outra postulação de Flexner é a necessidade de que “pesquisa original” faça parte da vida das escolas de medicina.

Da leitura da introdução e do relatório, emergem pontos de contato do passado norte-americano com o presente brasileiro. Há dados preocupantes. De 1996 a 2010, o número de faculdades de medicina no País subiu de 82 para 161, de acordo com o ex-ministro da Saúde Adib Jatene. Em abril, o Ministério da Educação decidiu extinguir 570 vagas em 9 cursos médicos de baixa qualidade; no exame (não obrigatório) que o Conselho Regional de Medicina de São Paulo aplicou em 2008 a sextanistas de medicina, a reprovação chegou a 61%. Daí a atualidade, passados cem anos, do levantamento da Fundação Carnegie.


Ensino médico nos EUA e no Canadá
Introdução
por Henry S. Pritchett

Este relatório sobre o ensino médico é o primeiro de uma série de papers sobre escolas profissionais a serem editados pela Fundação carnegie. o preparo desses papers surgiu naturalmente a partir da situa-ção que os curadores (trustees) encontraram ao assumirem a curadoria.

Quando o trabalho da Fundação começou, há cinco anos, os curadores receberam uma dotação a ser usada em benefício dos colleges e universidades dos estados unidos, do canadá e da terranova. um rápido exame bastou para mostrar que há pouca unidade de propósitos ou de padrões, entre os milhares de instituições na américa do Norte anglófona com o nome de college ou universidade. uma grande maioria de todas as instituições nos estados unidos que levam o nome de college dizia respeito, na verdade, ao ensino secundário.

Nessas condições, os curadores se sentiram compelidos a dar início a um estudo crítico do trabalho do college e da universidade em diferentes partes dessa vasta área, e a recomendar a colleges e universidades a adoção de padrões tais que relacionariam inteligentemente o college à escola secundária e à universidade. embora a Fundação tenha cuidadosamente evitado tentar se tornar uma agência de padronização, sua influência foi lançada no sentido de uma diferenciação entre a escola secundária e o college, e entre o college e a universidade. ela é, efetivamente, somente uma entre vários agentes, incluindo os colleges e as universidades mais fortes, que buscam trazer para a educação americana uma concepção razoável de unidade e, em última análise, chegar a um sistema de escolas relacionadas inteligentemente umas com as outras e com as ambições e necessidades da democracia.

A princípio, a Fundação naturalmente dirigiu seu estudo para o college, como a parte do nosso sistema educacional a ser mais diretamente beneficiada por sua dotação. inevitavelmente, no entanto, a investigação do college levou à consideração das relações entre o college ou a universidade e as escolas profissionais que se desenvolveram em seu entorno ou foram incorporadas a eles. a confusão encontrada aqui foi tão grande quanto a que existe entre as áreas do college e da escola secundária. descobriu-se todo tipo de relação entre colleges e universidades e suas escolas profissionais de direito, medicina e teologia. em alguns casos, a textura dessas relações era frágil e esgarçada, constituindo-se praticamente em uma simples licença do college que autorizou uma escola de medicina particular ou uma escola independente de direito a funcionar sob seu nome. em outros casos, a escola de medicina foi incorporada ao college ou à universidade, mas se manteve como um imperium in imperio, com o college não assumindo qualquer responsabilidade nem por seus padrões nem por seu sustento. em outros casos, o college ou a universidade assumiu a obrigação parcial de sustentá-la, mas não a responsabilidade pelos padrões da escola profissional; enquanto que somente em um número relativamente pequeno de casos a escola de direito ou de medicina se tornou parte integral da universidade e recebeu dela padrões universitários e manutenção adequada. Nas últimas duas décadas, houve uma tendência marcante de se estabelecer alguma conexão entre universidades e escolas de medicina isoladas, ainda que sob a estrutura extremamente frouxa já mencionada.

Enquanto isso, as exigências do ensino médico aumentaram enormemente. as ciências fundamentais das quais a medicina depende ampliaram-se bastante. o laboratório passou a fornecer ao médico e ao cirurgião um novo sentido no diagnóstico e no combate a doenças. a educação do profissional de medicina sob essas condições novas traz demandas inteiramente diferentes com respeito ao treinamento preliminar e ao treinamento profissional.

Nessas circunstâncias, e diante do avanço dos padrões das melhores escolas de medicina, tornou-se claro que é chegada a hora de definir claramente a relação entre o ensino profissional de medicina e o sistema geral de educação. o primeiro passo em direção a esse claro entendimento foi apurar os fatos que dizem respeito ao ensino médico e às escolas de medicina propriamente ditas nos dias de hoje. portanto, de acordo com a recomendação do presidente e do comitê executivo, os curadores da Fundação carnegie, em sua reunião de novembro de 1908, autorizaram um estudo e um relatório sobre as escolas de medicina e de direito nos estados unidos e alocaram a verba necessária para esse empreendimento. o relatório preparado pelo sr. abraham Flexner, sob a direção da Fundação, é o primeiro resultado dessa ação.

Não se pouparam esforços na busca de informações precisas e detalhadas quanto a instalações, recursos e métodos de instrução das escolas. elas foram visitadas separadamente e cada afirmação referente a cada detalhe foi cuidadosamente verificada com os dados de posse da associação Médica americana, também obtidos por meio de inspeções pessoais, e com os registros mantidos de seus membros pela associação de Colleges Médicos americanos. os detalhes aqui relacionados foram aprovados por dois observadores, no mínimo; com frequência, por mais de dois.

Na elaboração deste estudo foram incluídas as escolas de todos os ramos médicos. está claro que, se um homem vai praticar a medicina, o público também está interessado em seu correto preparo para exercer essa profissão, não importa o nome pelo qual ele se define – alopata, homeopata, eclético, os-teopata ou seja lá o que for. está igualmente claro que ele deve estar firmemente ancorado nas ciências fundamentais sobre as quais a medicina se ergue, independentemente da denominação sob a qual ele a pratica.

Que fique claro desde logo: o trabalho envolvido na visita a 150 dessas escolas é grande. dado o imenso número de detalhes com os quais se lidou, é simplesmente impossível ter-se certeza se cada mínimo fato que diga respeito a essas instituições foi apurado e anotado. ainda que a Fundação não possa esperar conseguir em um empreendimento tão vasto abrangência absoluta em cada aspecto, exerceu-se tal cuidado. o trabalho foi revisado tão minuciosamente por autoridades independentes que as afirmações feitas aqui podem ser aceitas com confiança como estabelecendo os fatos essenciais quanto ao ensino médico e às instituições relacionadas a ele.

Nesse sentido, talvez seja desejável acrescentar mais uma palavra. as instituições de ensino, particularmente as vinculadas a um college ou uma universidade, são peculiarmente sensíveis a críticas externas; em especial a qualquer depoimento sobre circunstâncias de sua conduta ou de seu equipamento que lhes pareça desfavorável em comparação às de outras instituições. como regra geral, o único conhecimento que o público tem de uma instituição de ensino é proveniente de depoimentos da própria instituição – informação que, mesmo nas melhores circunstâncias, é colorida por esperanças, ambições e pontos de vista locais. um número considerável de colleges e universidades assume a lamentável posição de, por serem instituições privadas, considerarem direito do público conhecer apenas as operações que elas decidam comunicar. No caso de muitas escolas de medicina, a aversão à publicidade é tão marcante quanto se acredita ser a de certos conglomerados industriais de grande porte. algumas poucas instituições questionaram o direito de uma agência externa recolher e publicar os fatos concernentes às suas escolas de medicina. pediu-se à Fundação que respondesse à pergunta: deve uma agência como a Fundação, dedicada à melhora da educação americana, tornar públicos fatos relacionados às escolas de medicina dos estados unidos e do canadá?

A atitude da Fundação é que todos os colleges e universidades, não importa se sustentados por impostos ou doações privadas, são na verdade corporações de serviço público, e que o público tem o direito de co-nhecer os fatos ligados à sua administração e a seu desenvolvimento, sejam eles relacionados ao aspecto financeiro ou ao educacional. acreditamos, portanto, ao buscar apresentar um depoimento preciso e justo do trabalho e das instalações das escolas de medicina deste país, que estamos servindo ao melhor propósito possível a que uma agência como a Fundação pode servir. além disso, acreditamos que somente por meio dessa divulgação os verdadeiros interesses da educação e das próprias universidades podem ser atendidos. Nessa publicidade razoável se encontra a esperança de progresso no ensino médico.

Quero acrescentar com prazer que, apesar da relutância de certas áreas em fornecer informações, as escolas de medicina dos colleges e das universidades e as escolas de medicina particulares e independentes geralmente aceitaram a visão acima exposta e aderiram ao trabalho da Fundação, oferecendo todas as facilidades aos engajados no estudo para se informarem sobre oportunidades e recursos; e rogo expressar os agradecimentos dos cura-dores da Fundação a cada uma dessas instituições pela colaboração a um estudo que, pela sua própria natureza, deveria se encaminhar claramente em direção a críticas a muitas das instituições das quais pediu cooperação.

 

O relatório que se segue está dividido em duas partes. Na primeira metade, apresentam-se a história da educação médica neste país e sua condição atual. o que é contado ali é o desenvolvimento gradual da escola de medicina comercial, um produto nitidamente norte-americano, o movimento moderno de se transferir o ensino da medicina para um ambiente universitário, e os esforços para alcançar um controle mais rigoroso de quem quer entrar na profissão. a condição atual do ensino médico é a seguir descrita na totalidade, e uma tentativa é feita para prever seu possível progresso no futuro. a segunda parte do relatório traz uma descrição detalhada das escolas existentes em cada um dos estados da união e em cada província do canadá.

É intenção da Fundação prosseguir rapidamente com um estudo semelhante do ensino médico na Grã-Bretanha, alemanha e França, para que os encarregados da reconstrução do ensino médico nos estados unidos tirem proveito da experiência de outros países.

Os fatos impressionantes e significativos aqui apresentados têm enormes consequências para o profissional de medicina e para cada cidadão dos estados unidos e do canadá; pois é um fato singular ter o ensino médico sido organizado neste país de tal forma que não só se comercializou o próprio processo educativo, mas também se obscureceu na mente do público qualquer discriminação entre o médico bem treinado e o médico que não teve nenhum treinamento adequado. como regra geral, os americanos, quando se valem dos serviços de um médico, fazem apenas o mais ligeiro questionamento sobre que treinamento e preparação prévios ele teve. um dos problemas do futuro é educar o público de forma a ser capaz de avaliar que, nas condições atuais, muito raramente
o paciente recebe o melhor tratamento atualmente disponível; e que isso se deve principalmente ao fato de um vasto exército de homens ser admitido na prática da medicina sem treinamento nas ciências fundamentais para a profissão e sem experiência com doenças. uma educação correta da opinião pública é um dos problemas do ensino médico futuro.

Os fatos significativos revelados por este estudo são estes:

1 - Nos últimos 25 anos houve uma enorme superprodução de profissionais de medicina não educados e mal treinados. isso ocorreu em absoluto desprezo pelo bem-estar público e sem qualquer pensamento sério sobre os interesses do público. tomando-se os estados unidos como um todo, os médicos são quatro ou cinco vezes mais numerosos em proporção à população que em países mais antigos, como a alemanha.

2 - A superprodução de homens mal treinados se deve principalmente à existência de grande número de escolas comerciais, sustentadas em muitos casos por métodos de propaganda que desviam uma massa de jovens despreparados de ocupações industriais para o estudo da medicina.

3 - Até recentemente, conduzir uma escola de medicina era um negócio lucrativo, pois os métodos de instrução eram principalmente teóricos. À medida que a necessidade de laboratórios passou a ser sentida com mais força, os gastos de uma escola de medicina eficiente aumentaram muito. A inadequação de muitas dessas escolas pode ser avaliada pelo fato de que quase metade das nossas escolas de medicina tem faturamento abaixo de us$ 10 mil; o faturamento determina a qualidade da instrução que elas podem proporcionar e proporcionam. os colleges e as universidades, nos últimos 25 anos, em grande medida deixaram de perceber os grandes avanços no ensino médico e o custo crescente de transmiti-lo em moldes modernos. Muitas universidades, desejosas de uma aparente abrangência acadêmica, anexaram escolas de medicina sem se responsabilizarem por elas nem em termos de seus padrões nem de seu sustento.

4 - A existência de muitas dessas escolas de medicina desnecessárias e inadequadas foi defendida com o argumento de que uma escola de medicina pobre é justificada pelo interesse do jovem pobre. está claro que o jovem pobre não tem direito a ingressar em uma profissão para a qual não esteja pronto a receber preparo adequado; mas os fatos apresentados neste relatório tornam evidente que o argumento não é sincero – a desculpa apresentada até agora em nome do jovem pobre é, na verdade, um argumento em favor da escola de medicina de má qualidade.

5 - Um hospital sob completo controle educacional é tão necessário a uma escola de medicina quanto um laboratório de química ou patologia. o ensino de alto nível em um hospital introduz influência salutar e benéfica na rotina da escola. os curadores de hospitais, públicos e privados, deveriam, portanto, ir ao limite de sua autoridade para abrir os pavilhões para o ensino, esperando somente que as universidades, por seu lado, assegurem verbas suficientes para empregar como professores homens devotados à ciência clínica.

Diante desses fatos, o progresso para o futuro pareceria requerer, como regra geral, um número muito menor de escolas de medicina, mais bem equipadas e bem dirigidas que as nossas escolas de agora; as necessidades do público requereriam igualmente que tivéssemos menos médicos se formando a cada ano, mais bem educados e mais bem treinados. aceita essa ideia, segue-se necessariamente que a escola de medicina irá, se corretamente dirigida, se articular não só com a universidade, mas com o sistema geral de educação. exatamente a forma que essa articulação deverá assumir no futuro imediato vai variar em diferentes partes do país. em todos os estados do leste e do centro, o movimento de articulação da escola de medicina com o segundo ano do college já ganhou tal ímpeto que pode ser encarado como praticamente aceito. Nos estados do sul, por ora, pareceria que uma articulação com a escola secundária de quatro anos seria um ponto de partida razoável para o futuro. com o tempo, o desenvolvimento do ensino secundário no sul e o crescimento dos colleges permitirão às escolas de medicina sulistas aceitar como base o preparo de dois anos de college. pode-se prever que, em tempo não distante, e com o justo respeito pelos interesses do público e a necessidade dos médicos, a articulação da escola médica com a universidade poderá ser a mesma em todo o país. pois, no futuro, o college ou a universidade que aceitar uma escola de medicina deverá se responsabilizar pelo padrão universitário na escola e pelo sustento adequado do ensino médico. Foi-se o tempo em que qualquer universidade era capaz de conservar o respeito dos homens educados, ou cumprir seu dever em relação à educação, por meio de uma escola profissional de baixo nível, em nome de sua abrangência acadêmica institucional.

Se for possível deixar esses princípios fundamentais claros para o povo dos estados unidos e do canadá e para os dirigentes de colleges e universidades, podemos esperar com confiança que os próximos dez anos verão um número muito menor de escolas de medicina neste país e uma eficiência muito aumentada no ensino médico; e que durante esse período o ensino médico vai se articular e se relacionar corretamente com o sistema educacional geral do país inteiro.

Nas sugestões feitas neste relatório com vistas ao futuro desenvolvimento da medicina, é preciso destacar que não se contempla nenhuma realização visionária ou impossível. Não se espera que uma escola de Medicina Johns hopkins surja imediatamente em cidades nas quais o apoio público à educação até agora foi escasso. apesar disso, é bastante verdadeiro que não se deve sequer tentar o ensino de medicina sem um mínimo de equipamento e de exigências educacionais. até agora, escolas de medicina particulares, colleges e universidades deram pouca atenção a esse fato. estiveram prontamente dispostos a assumir a responsabilidade de despejar em uma comunidade indefesa homens com licença para praticar a medicina sem qualquer consideração sobre se receberam ou não treinamento adequado. hoje, com os métodos utilizados na medicina moderna, sabemos com certeza que uma escola de medicina não pode ser dirigida sem um mínimo de gastos e um mínimo de instalações. a instituição que tentar dirigir uma escola abaixo desse nível está claramente ferindo, e não ajudando, a civilização. Nas sugestões feitas neste relatório sobre o que constitui um mínimo razoável, nenhum ideal visionário foi perseguido; só se insistiu naquilo que, à luz da nossa civilização americana atual, toda a comunidade tem o direito de exigir de sua escola de medicina, se for para ensinar medicina.

Parece desejável também, em referência à escola de medicina e a colleges e universidades, acrescentar uma palavra quanto à relação entre suporte financeiro, eficiência e sinceridade. onde quer que se tente criticar instalações e métodos inadequados, nenhuma resposta é mais comum que esta: “nossa instituição não pode ser julgada a partir do seu sustento financeiro. ela depende do entusiasmo e da devoção de seus professores e apoiadores, e essa devoção não pode ser medida por padrões financeiros”.

Essa resposta contém um sentimento tão bom e uma verdade de tão grande alcance que muitas vezes serve para descartar as críticas mais justas. É verdade que cada college deve depender, em última análise, do espírito e da devoção de seus funcionários, mas por trás dessa afirmação nobre escondem-se a falta de sinceridade, a falsidade e o fingimento – não só da escola de medicina americana, mas do college americano. a resposta citada é dada pela assim chamada universidade que, mesmo com rendimentos insuficientes para sustentar um college decente, tenta cobrir todo o campo da educação universitária. É a mesma resposta oferecida pela escola de medicina que, com instalações inteiramente inadequadas, despeja sobre uma comunidade inocente e sofrida homens que deverão receber educação médica depois de saírem da instituição. em muitas dessas instituições mal administradas e mal equipadas se encontra um alto grau de devoção; o fato é que essa devoção é geralmente mal dirigida, e o indivíduo que a tem perde a visão dos interesses da educação e do grande público em seu afã de manter viva uma instituição sem motivo ou direito de existir.

As escolas fracas, no entanto, vão argumentar que o fato de uma instituição ser mal administrada e mal equipada é inconclusivo; que no tempo dedicado ao exame de uma única escola é impossível julgá-la corretamente. objeções desse tipo vêm de dois tipos de escolas – instituições ineficazes em grandes cidades e escolas vinculadas a colleges em cidades pequenas nas quais o material clínico é escasso. em minha opinião, a objeção não tem força. um observador treinado e com vasta experiência pode ir diretamente ao âmago de um problema desse tipo. o espírito, os ideais e as instalações de uma escola profissional ou técnica podem ser rapidamente compreendidos. em todos os níveis em que mais inves-tigações foram feitas, as conclusões obtidas pelo autor se sustentaram.

O desenvolvimento aqui sugerido para o ensino médico dependerá principalmente de três fatores: primeiro, da criação de uma opinião pública capaz de discriminar o médico mal treinado do treinado corretamente e de exigir a adoção de leis que exijam dos praticantes da medicina basearem seu exercício nos fundamentos da ciência médica; segundo, das universidades e sua atitude em relação a padrões médicos e ao apoio à medicina; por fim, da atitude dos membros da profissão médica em relação aos padrões de sua própria prática e seu sentido de honra em respeito à sua profissão.

Esses dois últimos fatores são morais, não educacionais. demandam patriotismo educacional da parte das instituições de ensino e patriotismo médico da parte do profissional. por patriotismo educacional quero dizer isto: a missão das universidades é maior que a formação de um corpo grande de estudantes ou o alcance de uma abrangência acadêmica institucional; a saber, o dever da lealdade aos padrões comuns da honestidade, da sinceri-dade intelectual, da precisão científica. uma universidade com patriotismo educacional não assumirá o trabalho do ensino médico a menos que possa cumprir seu dever para com ele; se, nos tempos de ignorância que um dia existiram, tiver se enredado em aliança com uma escola de medicina, lidará com franqueza e coragem com uma situação agora insustentável. vai ou exigir de sua escola de medicina ideais universitários e proporcionar a ela apoio universitário, ou então desistir do esforço de fazer algo que só pode fazer malfeito.

Por patriotismo profissional entre homens da medicina quero dizer aquele tipo de respeito pela honra da profissão e aquela responsabilidade por sua eficácia que permitirão ao membro dessa profissão se elevar acima da consideração do ganho pessoal ou profissional. Bacon escreveu, com propriedade: “todo homem deve uma obrigação à sua profissão”; em nenhuma profissão tal obrigação é mais clara do que na do médico moderno. talvez em nenhuma outra das grandes profissões se encontrem maiores discrepâncias entre os ideais dos que a representam. Nenhum membro da ordem social se sacrifica mais que os verdadeiros médicos e cirurgiões, e desse bom grupo nenhum merece tanto da sociedade como aqueles que aceitaram carregar sobre os ombros o peso do ensino médico. por outro lado, a profissão foi diluída pela presença de grande número de homens provenientes de escolas fracas, com ideais baixos de educação e de honra profissional. se for para o ensino médico em nosso país atingir um nível de eficiência e credibilidade no futuro imediato, aqueles que representam os ideais mais elevados da profissão médica devem assumir uma postura em favor da forma de ensino médico calculada para fazer avançar os verdadeiros interesses de todo o povo e melhorar os ideais da própria medicina.

 

A discussão dessa questão levanta um problema econômico de longo alcance ao qual a sociedade até agora deu pouca atenção; ou seja, quais salvaguardas a sociedade e a lei podem estabelecer para a admissão em profissões como o direito ou a medicina, de forma a induzir um número suficiente de ho-mens a entrar nelas, e ao mesmo tempo excluir os inadequados e os indesejáveis?

É evidente que, em uma sociedade constituída como os estados modernos, os interesses da ordem social serão mais bem servidos se o número de homens entrando em determinada profissão atingir e não exceder certa proporção. No direito e na medicina, por exemplo, se vê com clareza em pequenos vilarejos a situação criada pela superprodução de homens treinados inadequadamente. em cidadezinhas de 2 mil habitantes da maior parte dos estados serão encontrados de cinco a oito médicos onde dois homens bem treinados poderiam fazer o trabalho com eficiência e levar uma vida decente. Quando, no entanto, seis ou oito médicos mal treinados tentam ganhar a vida em uma localidade capaz de sustentar apenas dois, o nível todo da conduta profissional diminui na luta que isso enseja, cada homem passa a se concentrar em sua prática, a saúde pública e o saneamento são negligenciados, e os ideais e padrões da profissão tendem à desmoralização.

Um estado de coisas semelhante vem da presença na comunidade de um número grande demais de advogados mal treinados. Quando seis ou oito homens buscam ganhar a vida com a prática do direito em uma comunidade na qual, no máximo, dois bons advogados poderiam fazer o trabalho todo, a desmoralização perante a sociedade se torna aguda. Não só o processo legal se estende indevidamente, mas há uma grande tentação para se criar um negócio. uma proporção não pequena da falta de respeito americana pela lei provém da presença desse grande número de homens mal treinados buscando ganhar a vida por meio de um negócio que deveria, na natureza do caso, sustentar somente um número muito menor. À medida que as nações avançam em civilização, serão levadas a colocar salvaguardas em torno da entrada nessas grandes profissões de forma a limitar o número dos que nelas entram a alguma estimativa razoável do número realmente necessário. Não é preciso dizer que nenhum sistema de padronização de entrada em uma profissão consegue excluir todos os inadequados ou fornecer um corpo perfeito de profissionais; uma aplicação razoável desses padrões vai ao menos aliviar o estado de grande parte da dificuldade resultante da superprodução e salvaguardar o direito da sociedade ao serviço de homens treinados nos grandes chamados que tocam tão de perto nossa vida física e política.

O objeto da Fundação ao empreender estudos desse tipo é servir a um propósito construtivo, e não crítico. a menos que as informações aqui reunidas conduzam a um trabalho construtivo, a Fundação terá fracassado em seu objetivo. o próprio desaparecimento de muitas escolas existentes é parte do processo de reconstrução. efetivamente, no curso da preparação do relatório, já foram obtidos vários resultados do maior interesse do ponto de vista construtivo. diversos colleges, revelando-se incapazes de seguir adiante com uma escola de medicina em condições adequadas e enfrentando a situação com franqueza, extinguiram seus departamentos de medicina, o que resultou em ganho real para o ensino médico. em outros lugares, escolas de medicina concorrentes, que dividiam alunos e instalações hospitalares, se juntaram numa única escola. em outros casos, foram levantadas grandes somas de dinheiro para colocar o ensino médico sobre bases sólidas.

No preparo deste relatório, a Fundação sempre teve em vista os interesses de duas classes que, com a multiplicação excessiva de escolas de medicina, geralmente foram esquecidas – primeiro, os jovens que vão estudar medicina e se tornar os praticantes do futuro; segundo, o público em geral, que vive e morre com sua ajuda.

Ninguém é capaz de tomar conhecimento da situação sem desenvolver uma simpatia calorosa pelo jovem americano que, com muita frequência vítima de métodos de propaganda comercial, é conduzido à prática da medicina sem ter quase nenhuma oportunidade de saber a diferença entre uma escola de medicina eficiente e uma que não tem esperança de sê-lo. um balconista com salário de us$ 50 mensais no armazém rural recebe um folheto atraente que pinta a vida do médico como um caminho fácil para a riqueza. ele não tem consciência da diferença entre a medicina como profissão e a medicina como negócio nem, regra geral, tem à mão alguém que o aconselhe e lhe mostre que o primeiro requisito para o moderno profissional da medicina é ter uma boa educação geral. esse rapaz é uma vítima fácil da escola comercial de medicina, opere ela sozinha ou sob o nome de uma universidade ou um college.

Perdeu-se de tal forma a visão do interesse público nesse aspecto que o público em grande medida esqueceu que tem interesses a proteger. No entanto, de nenhuma outra maneira a educação toca mais de perto o indivíduo do que na qualidade do treinamento médico proporcionado pelas instituições do país. Não só o bem-estar pessoal de cada cidadão, mas o saneamento nacional, estadual e municipal dependem da qualidade do treinamento que o médico formado recebeu.

O interesse do público é ter profissionais em número suficiente para as necessidades da sociedade. de onde eles virão é assunto de menor importância.

Tendo em vista esse fato, o argumento em favor da manutenção de escolas de medicina em lugares nos quais uma boa instrução clínica é impossível vai diretamente contra o interesse público. se o argumento fosse válido, significaria que o homem doente estaria melhor nas mãos de um profissional local incompetente do que nas de um médico bem treinado em uma escola de fora. esse argumento não deve mais cegar os homens inteligentes em relação à situação atual. Qualquer estado dos estados unidos ou qualquer província do canadá estará melhor sem uma escola de medicina do que com uma dirigida com espírito comercial e abaixo de um nível razoável de eficiência. Nenhum estado, nenhuma região de um estado capaz de sustentar um bom profissional vai sofrer por seguir essa política.

O estado de Washington, que não possui escolas de medicina dentro de suas fronteiras, está indubitavelmente suprido de um corpo de profissionais médicos tão capaz e bem treinado quanto o Missouri, com suas onze escolas de medicina, ou o illinois, que tem catorze.

O ponto de vista que leva em conta as necessidades e qualificações do estudante de medicina e os interesses do grande público é bastante diferente daquele ocupado pela instituição que dirige um departamento médico. para as instituições, as maiores questões são: podemos adicionar uma escola de medicina aos nossos outros departamentos? e, se sim, onde podemos encontrar alunos? as questões que o outro ponto de vista sugere são: precisa-se de uma escola de medicina? Quem está qualificado para estudar medicina pode encontrar oportunidades em escolas já existentes? se não, os meios e as instalações disponíveis para o ensino da medicina têm os fundamentos certos?

Pelo fato de o objetivo da Fundação ter sido sempre construtivo, sua atitude em relação às dificuldades e aos problemas da situação é claramente de simpatia. o relatório efetivamente revela condições que, ao invés de serem frutíferas e inspiradoras, são em muitos casos lugares comuns, em outros locais são ruins e, em outros ainda, são escandalosas. No entanto, nenhum conjunto de homens ou nenhuma escola de medicina em particular é responsável pelo que ainda existe na forma da educação médica comercial. Nossa esperança é que este relatório esclareça de uma vez por todas: os dias da escola de medicina comercial passaram. será possível observar que, exceto por uma breve introdução histórica, cuja intenção é mostrar como se chegou às condições atuais, não se fala do passado de nenhuma instituição. a situação é descrita como é hoje, na esperança de que a partir dela, independentemente do passado, uma nova ordem possa se desenvolver rapidamente. agora não há necessidade de recriminações sobre o que já aconteceu, ou de desculpas pela defesa de um regime ob-soleto. dediquemo-nos com determinação à tarefa de reconstrução da escola de medicina americana nos moldes dos mais elevados ideais modernos de eficiência e de acordo com as melhores concepções do serviço público.

Espera-se que tanto o propósito da Fundação como o ponto de vista aqui apresentado possam ser lembrados em qualquer consideração do relatório e que esta publicação possa servir de ponto de partida para o cidadão inteligente e para o profissional de medicina, em um novo esforço nacional para fortalecer a profissão médica e para relacionar o ensino médico ao sistema geral de escolas do país.

A Fundação está em grande dívida para o preparo deste relatório com importantes representantes da medicina e da cirurgia neste país por sua cooperação e seus conselhos. os dirigentes das várias associações médicas e da associação de Colleges de Medicina Norte-americanos forneceram infor-mações inestimáveis e ajudaram da forma mais cordial possível. temos dívida, pela contribuição generosa, com o dr. William h. Welch, da universidade Johns hopkins; com o dr. simon Flexner, do instituto rockefeller; e com o dr. arthur d. Bevan, chairman do conselho de educação da associação Médica Norte-americana. além disso, devemos reconhecimento ao dr. N. p. colwell, secretário do conselho de educação da associação Médica Norte-americana, e ao dr. F. c. zapffe, secretário da associação de Colleges de Medicina Norte-americanos, pela utilíssima cooperação. Quero registrar nossa dívida com diversos homens eminentes vinculados a escolas de medicina que gentilmente leram as provas deste relatório e proporcionaram o benefício de seus comentários e suas críticas.