12/02/2014

revista Ensino Superior nº 12 (janeiro-março)

Além das fronteiras: a interdisciplinaridade para a interação entre (novos) conhecimentos

Ao mesmo tempo em que a concepção e a compreensão de interdisciplinaridade evoluem, o ensino em geral, na graduação , mas também na pós-graduação, ainda é fortemente disciplinar

Maria Beatriz M. Bonacelli
Professora Livre-Docente do Departamento de Política Científica e Tecnológica e do Programa de Pós-Graduação em Política Científica e Tecnológica (IG) / Unicamp
A interdisciplinaridade no ensino e na pesquisa nunca esteve tão em voga. Esse fato assim se coloca devido à própria evolução da construção do conhecimento contemporâneo, cada vez mais complexa(o), que rompe mais insistentemente fronteiras disciplinares e territoriais e transforma a forma de se fazer ciência e se buscar a inovação. Acompanhar esse movimento, o qual, ao mesmo tempo, é influenciado pela compreensão dos fenômenos, é o desafio hoje – no ensino, na pesquisa, na economia, na sociedade.
 
A interdisciplinaridade pressupõe um passo à frente da multi e da pluridisciplinaridade – seria “a integração entre disciplinas, metodologias e teorias para dar conta de um problema, de uma reflexão”, mais do que a agregação ou a sobreposição de diferentes áreas do conhecimento em torno de um tema em que cada área preserva suas premissas metodológicas, teóricas, conceituais ... (Alvarenga et al., 2011)[1]. De forma mais explícita, “é a convergência de duas ou mais áreas do conhecimento, não pertencentes à mesma classe, que contribua para o avanço das fronteiras da ciência e tecnologia, transfira métodos de uma área para outra, gerando novos conhecimentos ou disciplinas e faça surgir um novo profissional com um perfil distinto dos existentes, com formação básica sólida e integradora”. ... “A interdisciplinaridade pressupõe uma nova forma de produção do conhecimento, porque implica trocas teóricas e metodológicas, geração de novos conceitos e metodologias, e graus crescentes de intersubjetividade, visando a atender a natureza múltipla de fenômenos com maior complexidade” (Capes, 2014).
 
Essa percepção é recente, dada a importância das disciplinas ao longo da evolução científica, econômica e social da humanidade. A organização do conhecimento científico em torno de disciplinas[2] – lá no século XIX – e das áreas do conhecimento baseadas nestas foi de grande valia para o avanço do ensino e da pesquisa naquele momento histórico, pois introduziu mais fortemente a figura do método científico e das provas argumentativas – da verificação e experimentação –, assim como a profissionalização das atividades de ensino e investigação. Ou seja, naquele ambiente fazia sentido a criação das “caixinhas do saber”; ou, até mesmo, elas foram essenciais para o avanço do conhecimento e da sociedade em geral[3].
 
Quando o desconforto com tal rigidez foi se impondo e mesmo sendo um obstáculo ao avanço do conhecimento, em meados do século XX, especialmente a partir dos anos 60, ainda assim houve certa reticência em relação à interdisciplinaridade, dado que, segundoAlvarenga et al. (2011), para alguns existiria um vazio de realidades entre as fronteiras disciplinares do conhecimento. A ideia de “vazio de realidade” é interessante, pois representa a incapacidade de se conceber o conhecimento permeado por distintos olhares e saberes, por distintos métodos e conceitos.
 
Há ganhos importantes com a superação desta postura, permitindo que a formulação, solução ou resolução de problemas a partir de variadas interações se dê de forma mais rica, interessante e, por que não, eficiente. Mas é verdade, por sua vez, que nem tudo tem que ter um caráter interdisciplinar para ser validado como ciência ou para que seja consistente e “moderno”.
 
Mas, insistindo-se na interdisciplinaridade como forma de se traçar caminhos para o avanço do nosso entendimento sobre fenômenos humanos, sociais, físicos, científicos e outros, há muito que se fazer no contexto do ensino e da pesquisa, em especial no Brasil.
 
É mais “fácil” ser disciplinar. É mais “confortável” replicar o que se aprendeu. É mais “cômodo” usar referências bibliográficas de cursos (muitas vezes “disciplinares”) e práticas aprendidas quando da formação anterior, geralmente disciplinar. Em 1999, a Capes constituiu a área interdisciplinar (antes denominada multidisciplinar, que depois se transformou em grande área) entre suas áreas de conhecimento, aliás, uma iniciativa praticamente sem precedentes em nível internacional. Abriu-se um espaço para que programas de pós-graduação que não se encontravam “dentro das caixinhas disciplinares” se agrupassem e passassem a formular questões e a realizar reflexões que justamente permitissem outros olhares para a compreensão e o avanço da ciência. De 46 PPGs (Programas de Pós-Graduação) participantes originalmente, a área interdisciplinar abriga hoje 297 PPGs, subdivididos em 4 câmaras – e é a área que mais cresce na Capes (Capes, 2014)[4].
 
Sinal de maturidade da nossa pós-graduação? Certamente sim, mas temos que considerar, por sua vez, que ainda não há curso com conceito 7 e apenas 7 PPGs têm conceito 6 na avaliação da Capes. Ou seja, mesmo com números crescentes e já bastante altos, o conjunto de elementos para a formulação de PPGs, de disciplinas e de pesquisa interdisciplinares impõe condições que muitas vezes estão além da nossa capacidade de superar os limites e as fronteiras do conhecimento.
 
Mesmo em programas de graduação e de pós-graduação criados como interdisciplinares, sofre-se com a cultura disciplinar e com a acomodação dos profissionais, isso tudo aliado à estrutura da Universidade, fechada em departamentos e faculdades relacionadas às grandes áreas do conhecimento. Por essa ótica, o PPG do Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp foi pioneiro e contribuiu fortemente para consolidar o campo da PCT (e do Planejamento e Gestão em PCT e dos Estudos Sociais da Ciência) no país, assim também como o ensino e a pesquisa interdisciplinares. Com 26 anos de existência e atingindo a maturidade sob a percepção da comunidade acadêmica e da Capes (com conceito 6 também na última avaliação trienal), o PPG-PCT assumiu riscos desde sua criação, mas estes sempre estiveram bem embasados por conta da origem do líder da iniciativa e da formação do corpo docente – tanto no que respeita o curso de origem (engenharia, sociologia, economia, filosofia, geologia...), como o (pós-) doutoramento junto a grupos (especialmente na Inglaterra) que proporcionassem as ligações necessárias para as construções e as descobertas científicas em meados dos anos de 1980. Tendo à frente a figura de Amílcar Herrera, geólogo de formação e interdisciplinar na sua atuação acadêmica, elaborou-se um programa que sempre foi interdisciplinar, permitindo a expressão de várias representações para a abordagem de temáticas voltadas à Política da Ciência e Tecnologia, no Brasil e em outros países e culturas, para dar conta das diferentes manifestações em que estas poderiam ser percebidas e analisadas – C&T e desenvolvimento, C&T e agricultura, C&T, atores e tecnologias sociais, C&T e gênero, C&T e meio-ambiente, mudança técnica e dinâmicas de mercado, novas tecnologias e emprego e trabalho, entre outros[5].
 
Mas, ao mesmo tempo em que a concepção e a compreensão de interdisciplinaridade evoluem, o ensino em geral, na graduação[6], mas também na pós-graduação, ainda é fortemente disciplinar. E isso por vários motivos.
 
É mais “fácil” ser disciplinar. É mais “confortável” replicar o que se aprendeu. É mais “cômodo” usar referências bibliográficas de cursos (muitas vezes “disciplinares”) e práticas aprendidas quando da formação anterior, geralmente disciplinar... Mesmo em programas de graduação e de pós-graduação criados como interdisciplinares, sofre-se com a cultura disciplinar e com a acomodação e a inércia dos profissionais, isso tudo aliado à estrutura da Universidade, especialmente no Brasil, fechada em departamentos e faculdades relacionadas às grandes áreas do conhecimento.
 
Somos interdisciplinares para ensinar? Quanto contribuímos para a permeabilidade / porosidade do (nosso) conhecimento? Qual o grau de disposição e de interesse para a interação? Como sair da zona de conforto e romper com inércias enraizadas? A reflexão também é válida para a avaliação de projetos e trabalhos que não se encaixam nas “caixinhas” dos comitês de assessoramento e de avaliação das agências de fomento e das revistas científicas. É o caso do CNPq que, diferentemente da Capes, não tem uma área do conhecimento interdisciplinar, o que prejudica em muito os programas de pós-graduação não-disciplinares no momento da submissão de solicitações de auxílio para a agência[7]. O contexto é reforçado por concursos públicos que ainda exigem a formação disciplinar para a inscrição de candidatos em editais de seleção e, ainda mais grave, pelas associações e confederações de classes que exigem fidelidade dos cursos superiores às profissões – muitas delas ultrapassadas e que já não refletem a realidade da sociedade e nem as transformações curriculares. Ou seja, há respaldo à disciplinaridade na própria comunidade acadêmica e científica e para além dela.
 
Repensar a estrutura da Universidade e do ensino em todos os níveis – inclusive os ensinos médio e da graduação – e a postura das agências de fomento e financiamento e das revistas científicas deve fazer parte de um movimento maior e de fóruns de discussão que ajudem a pensar em práticas que valorizem comportamentos mais plurais e diversificados, outros arranjos curriculares e outras práticas de ensino. Promover e estimular (dando condições institucionais e estruturais) a pesquisa interdisciplinar é, sim, um dever da Universidade do século XXI.
 
Os PPGs, por sua vez, devem se debruçar sobre aspectos que remetam a novas perspectivas para a identificação das questões de pesquisa, para outros possíveis caminhos teórico-conceituais, metodológicos e analíticos, para a produção da ciência, para dar conta das novas formas de geração e difusão do conhecimento e para construir pontes para um novo saber.
 
Finalmente, o mesmo deve ser pensado quanto à nossa própria postura frente à interdisciplinaridade: somos interdisciplinares para ensinar? Quanto contribuímos para a permeabilidade / porosidade do (nosso) conhecimento? Qual o grau de disposição e de interesse para a interação? Como sair da zona de conforto e romper com inércias enraizadas? Quais as competências necessárias para o ensino e a investigação interdisciplinares? (Bonacelli, 2013 e Carta de São Bernardo, 2013).
 
Os desafios são de diversas ordens, mas os resultados certamente superam em muito os esforços para a constituição de novos conteúdos que permitam o entendimento de fenômenos que cercam o desenvolvimento da ciência e da sociedade contemporâneas.
 
Referências
Alvarenga, A. et al. “Histórico, fundamentos filosóficos e teórico-metodológicos da interdisciplinaridade”,in A. Philippi & A. Silva Neto (ed.) Interdisciplinaridade em Ciência, Tecnologia & Inovação, Editora Manole, com apoio da Capes, 2011, 998 p.
 
Andrade, C. Y.; Gomes, F.; Knobel, M. ; Pedrosa, R.; Pereira, E.; Carneiro, A. M.; Velloso, L. “ProFIS: A New Paradigm for Higher Education in Brazil”. Widening Participation and Lifelong Learning, vol. 15, n. 2, The Open University, 2013.
 
Bonacelli, M. B. M. “Os Desafios da Interdisciplinaridade na Pós-Graduação (e na pesquisa e na graduação e na ...)”. Comunicação no evento Encontro Acadêmico da Região Sudeste: Interdisciplinaridade – ampliando fronteiras do saber. Universidade do ABC, 11-13 novembro de 2013, São Bernardo do Campo. UFABC/FORPROP/Capes.
 
Carta de São Bernardo. Documento resultante do Encontro Acadêmico da Região Sudeste: Interdisciplinaridade – ampliando fronteiras do saber. Universidade do ABC, 11-13 novembro de 2013, São Bernardo do Campo. UFABC/FORPROP/Capes.
 
Capes, 2014, Documento de Área 2013 (Área Interdisciplinar), http://www.capes.gov.br
 
Furtado, A. “Experiência do Programa de Pós-Graduação em Política Científica e Tecnológica da Unicamp”, in A. Philippi & A. Silva Neto (ed.) Interdisciplinaridade em Ciência, Tecnologia & Inovação, Editora Manole, com apoio da Capes, 2011, 998 p.
 
Lyall, C. et al. “The role of funding agencies in creating interdisciplinary knowledge”. Science and Public Policy, 40, 2013, pp. 62-71.
 
Pedrosa, R. H. L. “Academic production and the academic ladder”. Comunicação em Symposium on Excellence in Higher Education. Fapesp/ABC, jan 23-24, 2014.


[1] O artigo de A. Alvrenga e colegas faz parte de uma obra maior, intitulada Interdisciplinaridade em Ciência, Tecnologia e Inovação, editadaporA. Philippi & A. Silva Neto. A publicação comporta uma rica literatura sobre o tema da “interdisciplinaridade”, com elementos, questões e reflexão de primeira ordem para aqueles envolvidos e interessados na temática sob diversas óticas.
 
[2] Definição de disciplina, por Alvarenga et al. (2011): “conjunto específico de conhecimentos, com características próprias no plano de ensino, formação, métodos e matérias”.
 
[3] A discussão é bem mais complexa que essa. Pedrosa (2014) argumenta que o tema envolve a transição de um sistema mais ou menos informal, de "comunidade acadêmica", para aquele de uma "profissão". Essa transição se deu paralelamente ao estabelecimento das disciplinas, cada uma com suas especificidades. A dificuldade em transpor as fronteiras está justamente localizada nessa "identidade" que se forma ao longo de dois séculos no sistema acadêmico. O autor coloca: “a discipline is, actually, a (sub)community within the academic world. M. Henkel [...] had pointed out that 'academic disciplines "generate a steady flow of symbolic material about themselves", that enabled their members to build up dominant self-identities”.
 
[4] A Unicamp conta atualmente com 8 PPGs Interdisciplinares, quais sejam: Planejamento de Sistemas Energéticos; Política Científica e Tecnológica; Gerontologia; Divulgação Científica e Cultural; Tecnologia; Saúde, Interdisciplinaridade e Reabilitação; Bioenergia; e Ciências Humanas e Sociais Aplicadas.
 
[5] Furtado (2011) apresenta os detalhes desta iniciativa na obra de A. Philippi & A. Silva Neto.
 
[6] A Unicamp tem procurado alternativas para a visão disciplinar do ensino e criou recentemente um processo alternativo de ingresso de estudantes da rede pública na universidade – o ProFIS (Programa de Formação Interdisciplinar Superior). É um curso de caráter geral e interdisciplinar e serve como porta de entrada para os cursos de graduação da universidade – o aluno não ingressa diretamente em nenhum curso, mas na Unicamp. Durante dois anos, os alunos cursam um rol de disciplinas oferecidas por praticamente todas as unidades acadêmicas da Unicamp, beneficiando-se assim de uma formação geral e interdisciplinar, que lhes proporcionam uma visão mais abrangente dos problemas das ciências, da cultura e do mundo contemporâneo. Ao final destes dois anos, escolhe, segundo seu desempenho, o curso de graduação que pretende seguir, entre os mais de 60 oferecidos pela universidade. Uma análise e avaliação profunda do ProFIS pode ser encontrada no artigo de Andrade et al. (2013), publicado na revista da Open University. Como se sabe, há outras iniciativas no país, como a da Universidade Federal do ABC, a da Universidade Feral da Bahia e a da própria USP com a Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH - USP Leste).
 
[7] Lyall et al. (2013) tratam exatamente da questão do papel (fundamental) das agências de fomento para a criação do conhecimento interdisciplinar. Para os autores: “funders´ support is critical to achieving the potencial value-added of interdisciplinarity and these agencies therefore have key roles to play in shaping large-scale interdisciplinary research iniciatives”. Entretanto, seguem os autores, há que se aprender como acordar a estrutura e o perfil dos fundos das agências com a emergência de novos programas interdisciplinares de pesquisa e rotinizar efetivamente sistemas e estruturas para dar conta disso (e não ter que re-inventá-los a cada ocasião).