30/06/2014

revista Ensino Superior nº 13 (abril-junho)

A vulgarização do saber (1931)

A vulgarização científica bem conduzida tem por fim real mais esclarecer do que instruir minuciosamente sobre esse ou aquele ponto em particular.

Miguel Osório de Almeida
Um dos pioneiros da fisiologia no Brasil, Miguel Osório de Almeida foi pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz durante vários anos e presidente da Academia Brasileira de Ciências, entre 1929 e 1931. Escreveu muitos textos de divulgação científica, diversos deles reunidos nos livros Homens e coisas de ciência e A vulgarização do saber. Texto publicado no livro A vulgarização do saber. Rio de Janeiro: Ariel Editora Ltda., 1931. pp. 229-240.
As coleções de livros de vulgarização científica se multiplicam. As conferências e os cursos públicos sobre as questões mais árduas e difíceis, destinadas a pôr ao alcance de todo o mundo noções ou conhecimentos que eram o apanágio de grupos limitados de especialistas, secundam e completam a tarefa que visam a executar as edições populares.
 
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Por Ricardo Muniz e Carlos Orsi
 
No dia em que a maioria dos homens estiver impregnada da verdadeira significação dos fins da ciência, tiver compreendido a essência dos métodos científicos e souber se aproveitar um pouco das vantagens que a cultura científica confere, a humanidade terá dado um grande passo. Tudo isso demonstra que o público em geral tem sua atenção despertada para as coisas do saber e aspira participar do movimento incessante das idéias e compreender, pelo menos em suas linhas essenciais, as bases dos grandes fatos científicos e a essência das principais leis naturais. Essa aspiração é, sem dúvida, nobilitante. Será ela útil? Poderá ela ser satisfeita? Que resultados advirão de uma cultura popular mais extensa e, o que é fundamental, até que ponto poderão os homens de ciência corresponder a esse apelo coletivo? Enfim, terá a ciência alguma coisa a ganhar com esse movimento?
 
Difícil seria responder de um modo cabal a todas essas perguntas. Esses problemas já têm sido discutidos por sábios e filósofos e as conclusões são, em geral, contraditórias. Alguns não escondem o seu ceticismo e não crêem na possibilidade de reduzir a termos suficientemente elementares os resultados complexos de pesquisas científicas, para a compreensão dos quais é necessária uma longa preparação.
 
É fato que alguns inconvenientes podem resultar de uma difusão larga da ciência. Muitas vezes criam-se mal entendidos penosos. A ciência progride e evolui constantemente. A um conhecimento com um determinado grau de aproximação substitui-se outro mais aproximado ainda. É esse ceticismo que, conquanto não expressamente declarado, transparece do prefácio escrito por E. Meyerson para a Collection Fontenelle, dirigida por Salomon Reinach e Georges Urbain, que se iniciou recentemente com um volume intitulado Deux heures de mathématiques. O grande público conhece de sobra o nome de Salomon Reinach, historiador, arqueólogo, crítico de arte e filólogo. Georges Urbain, menos conhecido, é uma figura interessante e complexa de sábio, que, a uma competência das mais especializadas em alguns ramos da química, acrescenta uma vasta erudição científica e uma sólida cultura artística. Os que admiram suas pesquisas aprofundadas sobre os complexos não ficariam pouco surpreendidos ao saberem que é dele um livro Le tombeau d’Aristoxène, em que é analisada toda a estrutura da música, desde a Antigüidade até os nossos dias e no qual ele mostra como certos modos musicais, ainda deixados de lado, constituem reservas quase inesgotáveis para essa arte, que atravessa, agora, uma crise de renovação. Mais admirados ainda ficariam se soubessem que Urbain não se limita a estudos teóricos sobre música, mas compõe ele próprio.
 
Emille Meyerson é hoje dos mais autorizados e profundos pensadores da França. Seus volumes sobre a explicação das ciências, A dedução relativista e Identidade e realidade, revelam esforço de erudição e capacidade de meditação absolutamente raros. O ideal dos homens de ciência em todas as épocas, as tendências de cada escola, desde os grandes filósofos da Grécia, até os físicos relativistas atuais, foram por ele postos em evidência em um trabalho longo e penetrante. Certamente, a soma de conhecimentos por ele adquirida, a possibilidade de ter presente à memória uma tão larga massa de resultados e a necessidade essencial de seu espírito de ver além dos fatos e leis das ciências positivas os métodos empregados para descobri-los e as tentativas abortadas ou perdidas, feitas sem sucesso, tudo isso concorre para a atitude de ceticismo a que acima nos referíamos.
 
Isso dá aos que observam superficialmente o progresso da ciência uma impressão de insegurança. De quando em vez, proclama-se a falência da ciência. Mas não há aqui nenhum risco de mal entendido quando se substituem as opiniões erradas sobre os fins da ciência por uma concepção correta de uma marcha. Aliás, em um de seus volumes anteriores (A dedução relativista), Meyerson tinha apresentado idéias semelhantes, ao verificar o insucesso de todas as tentativas feitas para expor a teoria da relatividade ao alcance de todos. Quando se anunciou que Einstein havia revolucionado as concepções clássicas do espaço e do tempo, houve uma emoção muito maior nos meios não-científicos que entre os físicos de profissão. Poucas pessoas, dentre as que mais curiosas se mostravam das novas idéias, seriam capazes de dizer o que havia de essencial nas concepções clássicas do espaço e do tempo. Isso não importava. A ameaça contra esses conceitos despertava um interesse análogo ao que haveria se se propalasse que as pirâmides do Egito estavam em vésperas de desabar. Os que nunca viram as pirâmides e muito pouca probabilidade teriam de vê-las um dia sem dúvida se mostrariam mais apreensivos que os demais.
 
Diante desse anseio geral por saber como se criava a nova ordem de idéias, de todos os lados se tentou esse tour de force: expor a relatividade na linguagem mais simples compreensível à massa dos homens de instrução média. Uma revista chegou a pôr o tema em concurso. Nada foi possível fazer e, na opinião de todos, os trabalhos escritos com esse fim, inclusive o do próprio Einstein, falharam por completo. Esse insucesso, entretanto, tem sua explicação fácil. A teoria da relatividade exige, para ser compreendida, a posse de noções muito elevadas de matemática, por vezes mesmo inteiramente fora da cultura clássica dos matemáticos de profissão. É impossível, quase sempre, apresentar em linguagem profana um raciocínio que só pode ser assimilado com o auxílio de um simbolismo próprio. Meyerson soube pôr esse ponto bem em evidência. A linguagem comum, a que é utilizada para a vida de todos os dias, tem suas raízes profundas no senso comum.
 
A matemática, como a filosofia, recorre a conceitos, dependentes, em certos casos, de uma espécie de senso diferente e que assim não se adaptam às condições precárias da língua habitual. Dá-se aqui, segundo Meyerson, o que se observa em um grau muito menor com as traduções literais. A passagem de certas expressões, que correspondem à mentalidade profunda peculiar a um povo, e que representam exatamente o seu modo de sentir, não pode ser feita convenientemente para outras línguas, que se mostram assim deficientes. A tradução em linguagem vulgar de concepções matemáticas encontra diante de si uma dificuldade desse gênero, mas em proporções muito maiores. Ela terá que ser forçosamente incompleta e defeituosa. Para bem compreender a literatura de um povo, é necessário conhecer a sua língua.
 
Um dos argumentos fundamentais dos partidários do estudo do grego e do latim é mesmo esse, que a essência do pensamento dos gregos e dos romanos, formando a origem de nossa cultura, só pode ser assimilada por quem seja capaz de lê-los nos textos originais. Para bem acompanhar os raciocínios dos matemáticos, é, a fortiori, indispensável compreender a linguagem que eles empregam.
 
Sem dúvida, nesse ponto particular, o acordo não será difícil. As matemáticas e todas as questões científicas com que elas têm relações muito íntimas, como a maior parte das teorias da física e da cosmogonia, parecem condenadas a permanecerem por muito tempo ainda em um certo isolamento. Elas só serão acessíveis a certos iniciados e a certos privilegiados.
 
As ciências, porém, distinguem-se umas de outras pelo modo por que elas são estudadas. Se algumas põem em trabalho as capacidades superiores do raciocínio e se para abordá-las com proveito é preciso desenvolver ao mais alto grau o poder de abstração, afastando-se, como observou Meyerson, do senso comum, outras não exigem mais do que as qualidades bem equilibradas dos homens médios. Os seus resultados podem muitas vezes ser isolados, expostos de um modo suficientemente claro, em palavras simples de uma linguagem muito próxima da linguagem cotidiana. Além disso, é indispensável distinguir aqui o trabalho do homem de ciência que porfia por descobrir fatos novos, do esforço relativamente pequeno daquele que apenas quer compreender o essencial de um fenômeno. Chegar a evidenciar fenômenos até então desconhecidos, ou demonstrar relações até então não suspeitadas de fenômenos já anteriormente descritos, é sempre tarefa complexa, ao alcance só dos espíritos preparados por dons naturais e por uma cultura especializada. Em muitos casos, porém, uma vez descobertos esses fenômenos, nenhuma dificuldade existe em expô-los.
 
As ciências naturais apresentam inúmeras questões que estão nesses casos. Mesmo algumas das grandes concepções orientadoras que se encontram na base dessas ciências podem ser explicadas com sucesso a profanos. Todo o mundo compreende em seus pontos essenciais a teoria da evolução ou a natureza microbiana das doenças infecciosas. Ao leigo não interessa, nem é necessário saber, a minúcia técnica, e sim apenas as grandes linhas essenciais de um conjunto importante de conhecimentos.
 
A utilidade de pôr o grande público a par do movimento científico tem parecido duvidosa a muitos espíritos. O receio dos perigos que oferece a “meia ciência” é uma das principais objeções levantadas.
 
Entretanto, esses perigos são mais imaginários que reais. Uma instrução popular bem orientada é feita de modo tal que não deixa dúvidas sobre a competência efetiva dos que a adquiriram. Não é difícil instruir sem deixar ilusão sobre os limites desse saber e sobre as possibilidades exatas que ele confere. Por outro lado, a vida moderna está cada vez mais dependente da ciência e cada vez mais impregnada dela. Não são só as pessoas cujas profissões reconhecidamente têm uma base científica, como a medicina ou a engenharia, que têm interesse em estar mais ou menos em permanente contato com diferentes ciências. Hoje, todas as indústrias, a agricultura e um grande número de outras profissões sofrem uma evolução rápida, devido à introdução dos métodos e processos científicos. A técnica moderna evolui para um estado racional, muito mais preciso e de rendimento muito maior. A difusão científica traria como resultado a familiaridade de todos com as coisas da ciência e, sobretudo, uma confiança proveitosa nos métodos científicos, uma consciência esclarecida dos serviços que estes podem prestar.
 
Poder-se-ia concorrer para destruir esse estado de espírito que considera o saber quase um luxo e a ciência como um domínio à parte, teórico e abstrato, sem pontos de contato com a vida real. A ciência estuda os fenômenos naturais e suas relações recíprocas, tratando de conhecer as suas leis do modo mais apropiado possível. É ela que faculta ao homem o poder de modificar um certo número de fenômenos, ou de criar as condições de aparecimento de outros, aumentando sua ação sobre o meio que o cerca. É ela que estuda o próprio homem, estabelecendo as condições ótimas em que seu organismo pode viver. A melhoria das condições de vida é, assim, uma conseqüência natural do aumento e aperfeiçoamento dos conhecimentos científicos. Em princípio, pois, uma vida complexa, cheia e bem organizada é inseparável de uma ciência adiantada e poderosa.
 
É claro que cada pessoa, mesmo se dedicando exclusivamente ao estudo, só pode adquirir competência de valor efetivo, em um campo estreito dos conhecimentos. Com a extensão da ciência, a especialização, ao menos temporária, é uma necessidade. Mas é preciso que todos, dentro dos limites possíveis, sejam esclarecidos sobre o auxílio, sobre os serviços que a ciência é capaz de prestar em todos os atos e em todos os momentos da vida comum. Essa noção que parece tão elementar aos que possuem alguma cultura científica é, entretanto, inexistente ou muito vaga, às vezes mesmo nos meios que são, sob outros pontos de vista, altamente cultivados.
 
A vulgarização científica bem conduzida tem, pois, por fim real, mais esclarecer do que instruir minuciosamente sobre esse ou aquele ponto em particular. Mantendo constantemente a maioria das inteligências em contato com a ciência, ela virá criar um estado de espírito mais receptivo e mais apto a compreender. Ela se destina mais a preparar uma mentalidade coletiva, do que realmente a difundir conhecimentos isolados. No dia em que a maioria dos homens estiver impregnada da verdadeira significação dos fins da ciência e tiver compreendido um pouco da essência dos métodos científicos e, em um passo mais adiantado ainda, souber se aproveitar um pouco das vantagens que a cultura científica confere, pela precisão que empresta ao raciocínio e pelo respeito à verdade, além de outras qualidades morais que desenvolve, a humanidade terá dado um grande passo.
 
A utilidade da vulgarização científica, assim praticada, não me parece, pois, discutível. É fato que alguns inconvenientes podem resultar de uma difusão larga da ciência. Muitas vezes criam-se mal entendidos penosos. A ciência progride e evolui constantemente. Os conhecimentos alargam-se e modificam-se. A um conhecimento com um determinado grau de aproximação substitui-se outro mais aproximado ainda, quando o aperfeiçoamento da técnica de pesquisa o permite. As descobertas de fatos novos obrigam a modificar as concepções gerais orientadoras do pensamento. Isso tudo dá aos que observam superficialmente o progresso da ciência uma impressão de instabilidade, de insegurança, por vezes desalentadora. De quando em vez, em altos brados, proclama-se a falência da ciência, e talvez disso tudo pudesse resultar um certo descrédito. Não há aqui, porém, nenhum risco de mal entendido quando tudo isso é claramente definido e quando se substituem as opiniões erradas sobre os fins da ciência por uma concepção sadia e correta de uma marcha e dos seus objetivos.
 
A ciência, por seu lado, só tem a lucrar com uma vulgarização bem feita. Suas necessidades são cada vez maiores e se, na maioria dos países, elas são desprezadas e a cultura da ciência sofre um atraso considerável, isso é bem um indício que as classes dirigentes e os povos, em geral, estão longe de bem julgar esses problemas. Quando se trata de questões simples, em que as relações de causa e efeito são bem evidentes e ao alcance de todos, as dificuldades desaparecem. Oswaldo Cruz mostrou que o conhecimento das leis científicas exatas sobre a transmissão da febre amarela é indispensável para a exterminação dessa doença. Não lhe foi difícil obter em seguida meios para um grande instituto de pesquisas sobre patologia experimental. Ninguém discutiu essa utilidade, tão brilhante havia sido a demonstração, que, por força das circunstâncias, era essencialmente popular. Quando se trata, porém, de relações menos imediatas entre os progressos científicos e o bem de toda a coletividade, as dificuldades crescem. É lícito, entretanto, esperar que aqui como no outro caso se trate exclusivamente de uma questão de compreensão geral, e essa compreensão só pode vir depois de uma larga difusão de conhecimentos científicos.
 
Essa difusão pode também exercer um papel importante no despertar de novas vocações. O contato constante com as coisas da ciência aguça a curiosidade e revela tendências que poderiam de outro modo permanecer para sempre ocultas. Meyerson nos diz duas palavras sobre as dificuldades da vulgarização e sobre a forma especial de talento que precisam ter os vulgarizadores. Nesse ponto estamos de acordo. Nem sempre o grande gênio inventivo ou a excepcional capacidade de homem de ciência pura se casam com a forma de inteligência mais adequada para o trabalho de vulgarização. Este requer uma grande capacidade de clareza, a possibilidade de despertar o interesse e de aplainar as dificuldades, que não se obtém sem esforço e paciência. É preciso não esquecer, porém, que esse esforço pode ser vantajoso mesmo para o grande sábio. Lord Kelvin declarou uma vez que o preparo de suas conferências populares muito concorria para o aperfeiçoamento de suas concepções. Como se vê, apesar do pessimismo de E. Meyerson, a tarefa de uma vulgarização científica mais intensa e bem orientada seria digna de tentar muitas inteligências, que se aplicariam, assim, a um trabalho útil e proveitoso.