27/05/2011

Por uma universidade latino-americana

A reforma universitária de Córdoba (1918): um manifesto

José Alves de Freitas Neto - Professor do Departamento de História da Unicamp desde 2004. Possui graduação e mestrado em Filosofia e doutorado em História Social pela USP (2002). Foi coordenador de graduação em História (2006-2010) e coordena o Espaço de Apoio ao Ensino e Aprendizagem.
crédito: La Gaceta Universitaria, reprodução em http://www.reformadel18.unc.edu.ar/manifiesto.htm
Manifesto de Córdoba de 1918: Se não existe uma vinculação espiritual entre o que ensina e o que aprende, todo ensinamento é hostil e, consequentemente, infecundo

 

Pensar e construir uma universidade a partir da América Latina era um dos desafios que o movimento estudantil de Córdoba, na Argentina, defendeu em seu Manifesto de 21 de junho de 1918 [texto extraído de http://www.reformadel18.unc.edu.ar/manifiesto.htm]. A história das instituições europeias que fincaram raízes em solo americano, ainda durante o período colonial, é marcada por polêmicas relacionadas à existência de especificidades em tais instituições, em um lugar diferente de suas origens. A chamada Reforma de Córdoba é considerada um marco na história das universidades latino-americanas por ser pioneira na construção de um modelo institucional que atribuiu uma identidade e um modelo de atuação renovado no ensino superior.

A presença de universidades no mundo hispano-americano remonta às origens do domínio colonial e é um registro das heranças culturais europeias no Novo Mundo. A Real Pontifícia Universidade do México e a Universidade de São Marcos em Lima, fundadas em 1551, e a Universidade de Córdoba, em 1621, são algumas das mais antigas instituições de ensino que as Américas conheceram. Mesmo que o sentido de universidade esteja muito distante da forma como as pensamos atualmente, sua existência revela, ao menos, a preocupação de que saberes e ensinamentos tinham um lugar próprio e que as principais áreas coloniais espanholas deveriam ter seus núcleos para os conhecimentos importantes da época, como teologia, filosofia e normas jurídicas.

A título de comparação, nas colônias inglesas temos a fundação de Harvard em 1636 e de mais seis instituições de ensino superior até 1764. No âmbito da formação, os saberes não se distanciavam daqueles apresentados nas universidades católicas e também estavam atrelados à religião, a ponto dos estatutos da Universidade de Yale, de 1745, exigirem na admissão de estudantes o domínio de trechos da Bíblia em grego (KARNAL, 2007). Na área colonial da América portuguesa as universidades eram proibidas e alguns poucos colégios jesuítas funcionavam. Cursos superiores tiveram seu início apenas depois da independência do Brasil, com a abertura dos cursos de Direito em São Paulo e Olinda, em 1827, e as faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro, em 1832 (PRADO, 1999).

Um longo processo se passou desde as universidades coloniais até a Reforma de Córdoba, no início do século XX, que é o objeto de nossa análise. A concepção de universidade, o papel da educação e da instrução, as transformações científicas e a mudança das próprias sociedades servem como indícios para se pensar as estreitas vinculações entre a formação de uma elite intelectual e os processos políticos de cada país.

A UNIVERSIDADE DE CÓRDOBA E SEUS SIGNIFICADOS

Um processo de reforma universitária com alcance continental, como foi o de Córdoba, exige uma abordagem que não cometa dois equívocos. O primeiro é que ele não pode ser analisado de forma restritiva, em que apenas os aspectos acadêmicos mais imediatos possam ser listados como bandeira estudantil, desencadeando mudanças na secular universidade argentina. O outro seria, no extremo oposto, pensar a greve universitária como uma reação às questões internacionais do pós-Primeira Guerra Mundial, a crítica ao imperialismo e a situação política da Argentina que absorvia um grande número de imigrantes e que ampliava os direitos políticos por meio de uma reforma na legislação eleitoral. Entre os dois pontos há demandas imbricadas que se apresentavam antes de 1918 e que tiveram desdobramentos posteriores. Por isso, nossa opção é buscar na história universitária argentina os pontos que nos parecem mais relevantes e contextualizados para compreender os alcances do movimento cordovês.

A Universidade de Córdoba preservava ainda no início do século XX algumas das características do período colonial. A ligação com os jesuítas e a resistência a mudanças de procedimentos durante o período das lutas pela independência fez com que o conservadorismo fosse uma das marcas principais da Universidade e da cidade. Sobre o tema, o principal escritor argentino do século XIX, Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888), de forma anacrônica, registrou que Córdoba era uma típica cidade medieval. Se alguém quisesse conhecer algum monumento do período, estando no Novo Mundo, bastava visitar a cidade argentina com seus claustros e sua mentalidade marcada pela religiosidade católica.

Devemos considerar que o texto de Sarmiento, no clássico Facundo (1845), inseria-se no debate em torno dos discursos civilizatórios do século XIX e na oposição entre a capital e o interior. Sarmiento identificou Buenos Aires, como sendo o exemplo da civilização, e Córdoba, da barbárie que impedia a consolidação da nação. Essas dicotomias não devem ser levadas ao extremo. Entretanto, fixou-se entre os leitores da obra do futuro presidente da Argentina (1868-1874) uma descrição depreciativa sobre Córdoba e suas instituições.

Avançando mais na nossa visita, encontra-se a célebre Universidade de Córdoba, (...) e em cujos claustros sombrios oito gerações de doutores em ambos os direitos, ergotistas insignes, comentadores e casuístas passaram a sua juventude. Ouçamos o célebre deão Funes descrever o ensinamento e o espírito dessa famosa universidade, que durante dois séculos proveu uma grande parte da América de teólogos e doutores: “O curso teológico durava cinco anos e meio. A Teologia participava da corrupção dos estudos filosóficos. Aplicava-se a filosofia de Aristóteles à Teologia formando uma mistura entre o profano e o espiritual. Argumentos puramente humanos, sutilezas e sofismas enganosos, questões frívolas e impertinentes: foi isso o que veio a formar o gosto dominante dessas escolas.” (...)

Essa cidade douta não teve até hoje um teatro público, não conheceu a ópera, ainda não tem jornais, e a imprensa é uma indústria que não pôde se enraizar ali. O espírito de Córdoba até 1829 é monacal e escolástico; nos salões, a conversação gira sempre em torno das procissões, das festas dos santos, dos exames universitários, da profissão das monjas, da recepção das borlas de doutor.” (SARMIENTO, 2010: 205-206)

Segundo Sarmiento, até 1816 a Universidade desprezara conhecimentos importantes como as matemáticas, os idiomas, a Física, o direito público e a música. As mudanças deveram-se à atuação do deão Gregório Funes (1749-1829), reitor de Córdoba e partidário do movimento de independência iniciado em 1810. O que Sarmiento considerava um atraso oferecido pela Universidade tinha seu reflexo na pequena adesão dos cordoveses às lutas pela independência.

O bispo de Córdoba chegou a emitir uma Carta Pastoral condenando a mobilização estudantil que ganhava adeptos externos à Universidade Durante o estabelecimento da República, as ações que pretenderam modernizar a Universidade e afastá-la de suas características coloniais tiveram impactos reduzidos. Em nome da tradição da mais antiga instituição superior argentina e com receios políticos que respingassem na frágil República, as mudanças eram mais formais e não abalavam as estruturas vigentes, nem os métodos de ensino e de organização política. Em pleno século XIX, sob a influência de liberais ilustrados, Córdoba preservava sua tradição e resistia a grandes transformações.

Uma prática que permanecia era a cátedra vitalícia. Se, por um lado, a cátedra era uma garantia para que a docência pudesse ser exercida sem pressões externas à questão acadêmica, por outro, ela significava a perpetuação de nomes ligados à oligarquia local, sem o debate intelectual e o mérito ao qual deveria estar relacionada. As cátedras eram quase “hereditárias” e preenchidas por “ilustres” que se enraizavam na estrutura universitária em busca de prestígio político na principal cidade do interior argentino. No ensino também não se viu maiores alterações, pois os métodos preservavam aspectos dogmáticos em aulas ditadas pelos docentes e na repetição dos cursos oferecidos (TUNNERMANN BERNHEIM, 1998: 111-112).

Segundo o pesquisador Carlos Tünnermann Bernheim, o sistema universitário argentino, às vésperas do movimento de 1918, era composto por três universidades nacionais (Córdoba, Buenos Aires e La Plata) e duas provinciais (Santa Fe e Tucumán). Em Córdoba, o movimento reformista ganhou corpo exatamente por contrapor-se a uma instituição mais tradicional e distante dos ideais defendidos pelos estudantes.

AS REIVINDICAÇÕES E A REFORMA

A inquietação estudantil pode ser verificada antes da eclosão do movimento de 1918. Interferências do clero em atividades acadêmicas que expunham visões diferentes das preconizadas pela Igreja, por exemplo, passaram a ser vistas como impensáveis em uma sociedade republicana. Os estudantes manifestaram, reforçando a descrição sarmientina sobre o conservadorismo do interior em contraposição à vanguarda portenha, que o espírito das lutas pela independência política, protagonizado pelos líderes de Maio de 1810, chegara a Córdoba apenas em 1918. Era como se Córdoba tivesse permanecido à margem dos intensos processos de transformação e consolidação da República argentina que duraram aproximadamente cinco décadas.

Questões pontuais como o protesto dos estudantes de Medicina contra o fechamento do internato expunham aspectos imediatos que desencadearam os atos contra a administração universitária, que alegava falta de recursos e questões “morais”. Na Faculdade de Engenharia, por ordem dos catedráticos, aumentaram as exigências para que os alunos pudessem assistir às aulas, restringindo a presença de jovens de classe média. A proposta de mudança no sistema de cátedras reuniu os estudantes das três faculdades existentes: Medicina, Engenharia e Direito. Sem serem atendidos, iniciaram uma greve geral no dia 31 de março e lançaram um manifesto à juventude argentina.

O fim da concepção da universidade como um claustro levava à liberdade para que um público amplo pudesse frequentar as aulas A administração fechou a Universidade no dia 2 de abril sem contemplar nenhuma demanda do corpo discente, como a reabertura do internato e a mudança no sistema de cátedras. Os estudantes tomaram as ruas da cidade em frequentes protestos. Em Buenos Aires foi criada a Federação Universitária Argentina (FUA), agregando os estudantes de todo país em torno das demandas expostas em Córdoba. O presidente Hipólito Yrigoyen decretou a intervenção na Universidade no dia 11 de abril de 1918.

A intervenção presidencial ocorreu, além da pressão estudantil, pela simpatia que o governo eleito em 1916 tinha entre as classes médias argentinas e como forma de romper o conservadorismo atribuído às oligarquias agrárias que assistiam à perda de poder político, após a criação da Lei Sáens Peña (1912), que estabelecia o sufrágio universal e secreto. Os estudantes da FUA encontraram o presidente para apresentar suas reivindicações e receberam o apoio do mandatário que afirmou, na ocasião, que a Argentina vivia um “tempo novo” e a “Universidade deveria nivelar-se com o estado de consciência alcançado pela República” (LUNA, 2003: 95).

O interventor nomeado, José Nicolás Matienzo, iniciou a reestruturação da Universidade, com características liberais. Em maio, a Universidade tinha um novo estatuto que alterava a imobilidade dos corpos diretivos e o caráter vitalício dos conselhos existentes nas faculdades. Foram declarados vagos os cargos de reitor e de membros do Conselho da Universidade. Os candidatos apoiados pelos estudantes obtiveram a maioria dos votos na eleição para o Conselho, ocorrida em 28 de maio. O cargo de reitor, entretanto, foi alvo de uma disputa dias depois. Três candidatos, num restrito colégio eleitoral, disputaram a Reitoria no dia 15 de junho. O resultado foi desastroso para os estudantes, que viram seu candidato Martínez Paz terminar em último lugar e assistiram à vitória do mais conservador entre os concorrentes, Antonio Nores. Muitos docentes, que não participavam dos conselhos, simpatizavam com a causa estudantil, mesmo que não atuassem de forma aberta por causa da rigidez hierárquica existente. Para os estudantes, estava claro que as mudanças recentes não estabeleceram uma democracia universitária e nem uma mudança em relação às estruturas internas de poder.

Os estudantes decretaram greve por tempo indeterminado. O movimento se expandiu e obteve apoio de sindicatos, políticos de esquerda e intelectuais de diferentes posições como José Ingenieros e Manuel Ugarte.

Em 21 de junho de 1918, os estudantes aprovam o importante Manifesto Liminar ou La juventud argentina de Córdoba a los hombres libres de Sudamérica. Redigido por Deodoro Roca, o documento foi assinado por Enrique Barros, Horácio Valdés, Ismael Bordabehere, alguns dos dirigentes da Federação Universitária de Córdoba (FUC), que havia sido fundada no dia 18 de maio. O documento é considerado pelos pesquisadores da história das universidades latino-americanas a principal carta de princípios apresentada até então.

O MANIFESTO DE 21 de JUNHO de 1918 1

Organizado em 15 parágrafos, o Manifesto aborda três pontos centrais que destacamos: o diagnóstico da crise vivida pela Universidade de Córdoba; a afirmação do poder de renovação da juventude e suas propostas políticas; e as reivindicações reformistas propriamente ditas.

A CRÍTICA À UNIVERSIDADE E À DOCÊNCIA

O Manifesto é contundente em sua descrição da realidade universitária. O regime era definido como anacrônico e fundado numa espécie de direito divino do professorado, que mantinha os docentes separados da realidade e distantes dos alunos. As universidades, em torno da noção de cátedra, demonstravam um “espetáculo de imobilidade senil” , “refúgio dos medíocres” e garantia de “renda dos ignorantes”. O argumento da autoridade professoral era usado para inibir e controlar. Contra esse modelo, afirmaram os estudantes: “a autoridade, em uma casa de estudantes, não se exerce mandando, mas sugerindo e amando: ensinando.”

A manutenção de regras que reforçavam a mera obediência, similar a um quartel, não tinha qualquer relação com um lugar em que se produz ciência, segundo o Manifesto. “Se não existe uma vinculação espiritual entre o que ensina e o que aprende, todo ensinamento é hostil e, consequentemente, infecundo.”

O cerne da reivindicação estudantil era em torno do exercício da autoridade universitária e a revogação de princípios que impediam, mais do que a participação na administração, o desenvolvimento acadêmico.

AS QUESTÕES POLÍTICAS E O PAPEL HISTÓRICO DOS ESTUDANTES

Se não existe uma vinculação espiritual entre o que ensina e o que aprende, todo ensinamento é hostil e, consequentemente, infecundo Na primeira frase do documento estudantil eles afirmavam ser “homens de uma República livre” que acabaram de “romper o último elo, que em pleno século XX, nos prendia à antiga dominação monárquica e monástica”. Os estudantes, na esteira da tradição argentina oitocentista que via na cidade um baluarte do conservadorismo, apresentavam-se como aqueles que redimiriam Córdoba do seu passado: “desde hoje contamos para o país uma vergonha a menos e uma liberdade a mais.”

Debelar o que classificavam como “absurda tirania” dos modelos representativos da Universidade e que servia para proteger a “falsa competência” era a bandeira dos estudantes. Para os estudantes, em Córdoba, não havia desordem por conta da ação estudantil, mas o “nascimento de uma verdadeira revolução que há de agrupar sob sua bandeira todos os homens livres do continente”.

Os estudantes atribuíram para si um destino heroico ao defender que todos os esforços eram para produzir a “redenção espiritual das juventudes americanas”. Algumas referências parecem saídas do clássico ensaio do uruguaio José Enrique Rodó (1872-1917), Ariel, escrita em 1900. A obra percorreu a América Latina e tinha como alvo a educação dos jovens que seriam desinteressados ante um espírito pragmático e corrompido. A premissa idealista reafirmada no Manifesto tinha, à semelhança do arielismo, uma aposta na ação do indivíduo na sociedade e na história. Outra influência, igualmente perceptível e fundante no processo, foi José Ingenieros (1877-1925) que defendia ser a juventude a protagonista das transformações culturais, além de ser um árduo entusiasta de que a nacionalidade argentina estava por ser construída nos planos ético, cultural, social, econômico e filosófico e a Universidade deveria acompanhar tal debate, distanciando-se de um modelo europeu e adquirindo feições próprias.

AS DEMANDAS ESTUDANTIS

Em um único fragmento podemos identificar as imbricadas bandeiras políticas e acadêmicas dos estudantes cordoveses. Os jovens universitários se contrapunham ao “regime administrativo”, contra o “método docente” e contra “um conceito de autoridade”. O temor diante de qualquer reforma era justificado, segundo o documento, pelo receio de perder o emprego e, consequentemente, não havia espaço para qualquer inovação. Mantinha-se um ensino dogmático, com a repetição exaustiva dos mesmos textos e programas, impedindo o desenvolvimento da ciência e a introdução de “disciplinas modernas”. A estrutura administrativa e burocratizada, fechada em si mesma, não permitia a participação estudantil nas instâncias deliberativas da Universidade e ignorava seus anseios.

Contra tal tríade os estudantes de Córdoba apelavam aos estudantes de toda América do Sul para que observassem como as demandas eram similares, assim como a tarefa que se impunha de reformar as universidades a partir de uma bandeira comum: mudar os mecanismos administrativos, o ensino e a prática docente.

A CONTINUIDADE DO MOVIMENTO REFORMISTA

O impasse na Universidade de Córdoba prosseguiu pelos meses seguintes: os estudantes em greve geral e a administração querendo conter os ímpetos reformistas. O bispo de Córdoba chegou a emitir uma Carta Pastoral condenando a mobilização estudantil que ganhava adeptos externos à Universidade. No mês de julho, realizou-se o I Congresso Nacional de Estudantes Argentinos. Reunidos em Córdoba, definiram de forma mais consistente o que havia sido apresentado no Manifesto de 21 de junho. A reivindicação pode ser sintetizada nos seguintes pontos:

coparticipação dos estudantes na estrutura administrativa;
participação livre nas aulas;
periodicidade definida e professorado livre das cátedras;
caráter público das sessões e instâncias administrativas;
extensão da Universidade para além dos seus limites e difusão da cultura universitária;
assistência social aos estudantes;
autonomia universitária; universidade aberta ao povo.

Em 7 de agosto o reitor Nores renunciou. Em 9 de setembro, os estudantes tomaram a direção e o controle da Universidade e reabriram a instituição. O governo de Yrigoyen designou como interventor o próprio ministro da Educação, José Salinas, que foi recebido em outubro com apoio dos estudantes. Salinas levou a cabo o projeto de reforma universitária tal como reivindicado pelos estudantes, assegurando o triunfo do movimento universitário que se espalhou por toda América Latina e estabeleceu as bases para o funcionamento das universidades do continente.

OS LEGADOS DE CÓRDOBA

Qualquer processo histórico pode ser analisado sem pensar no imediato desdobramento de suas ações. O caso do movimento de Córdoba, entretanto, permite observar seus alcances e permanências nas universidades latino-americanas. Um dos principais nomes da história intelectual argentina, Oscar Terán, afirmou que o movimento político-estudantil iniciado em 1918 foi um “dos movimentos de alcances continentais mais exitosos em todo o século XX, ao ponto de que se teve que esperar até a Revolução Cubana para encontrar outro movimento de semelhantes proporções latinoamericanistas” (TERÁN, 44).

A experiência da Primeira guerra mundial obrigou muitos intelectuais a rever o europeísmo como indicador da modernidade a ser buscada O que teria garantido a permanência da Reforma de 1918 no imaginário latino-americano? Como uma demanda tão particular, a reivindicação estudantil pela mudança no ensino e na administração, pôde ter uma repercussão tão ampla? Provavelmente nenhuma resposta a tais questões esgota as possibilidades de interpretação. Uma delas é a emergência e o reconhecimento do papel da juventude, muitos deles filhos de imigrantes, nos processos de modernização e urbanização acelerados do início do século XX. Na Argentina da década de 1910, 53% da população era urbana. As universidades latino-americanas, desde suas origens coloniais, eram os centros formadores das elites intelectuais e profissionais. A partir das mudanças do século XIX, quando as nações emergiram como unidades políticas independentes, ter universidades e, sobretudo, frequentá-las era uma forma de acesso imediato ao debate público e às funções de Estado. Qualquer reforma que indicasse maior democratização e a proposição de grandes questões da realidade podia ser lida como um fenômeno comum e apropriado por outras nações.

Outro aspecto importante foi o contexto internacional de 1918. A experiência da Primeira Guerra Mundial obrigou muitos intelectuais a rever o europeísmo como indicador da modernidade a ser buscada. Ao mesmo tempo, muitos países celebravam o primeiro centenário de suas independências políticas e ainda se perguntavam sobre qual nação que estava sendo construída. Mais do que avaliar o passado, estavam sendo propostos desafios em direção ao futuro das sociedades latino-americanas. Naquela atmosfera, as referências às questões de cada país provocaram uma redescoberta dos vizinhos: de um sentimento nacional chegava-se à condição política e econômica da América Latina. O diagnóstico de que se enfrentava um inimigo comum, o imperialismo, suscitava a aproximação entre os latino-americanos. O anti-imperialismo tornara-se uma bandeira comum nas primeiras décadas do século XX e marcou uma geração de intelectuais, como os já citados Ingenieros e Rodó, além do mexicano José Vasconcelos e do peruano José Carlos Mariátegui, para citar alguns dos mais conhecidos.

Porém, como observado no início do artigo, não devemos nos fiar exclusivamente nas explicações do contexto geral, fazendo com que se percam as especificidades de um processo, nem observar apenas o aspecto mais particular que limite o alcance da compreensão do movimento de Córdoba em 1918.

No que tange à particularidade desta publicação sobre Ensino Superior é inegável que a Reforma sinalizou alguns aspectos que podem ser remontados a partir das declarações e da vasta bibliografia que se dedicou a analisar aquele processo. Dentre os aspectos destacamos: a defesa da autonomia universitária; a mudança no processo de ensino e de docência e a democratização da universidade, tanto em sua gestão como na garantia da permanência de estudantes de todos os grupos sociais.

A experiência dos estudantes de Córdoba contra a interferência do clero e dos setores mais reacionários implicava a defesa do princípio da autonomia, que em outros países, e por diversas vezes ao longo dos anos seguintes, foi utilizada contra as pressões governamentais. A defesa da autonomia foi parte das declarações de movimentos estudantis que se seguiram ao Manifesto de 21 de junho de 1918 em vários países, como México, Uruguai, Chile, Brasil e Peru. A autonomia tinha que existir como uma bandeira em meio a um limite tênue entre o ataque às cátedras e ao ensino universitário vigente e a afirmação da liberdade universitária para sua reorganização. Portanto, a autonomia não era uma bandeira simples, posto que se articulava com demandas como a inserção social da Universidade e mecanismos de controle das instâncias administrativas por parte de estudantes, professores e funcionários.

As mudanças no ensino propostas pelos estudantes foram das mais significativas. A Universidade de Córdoba e as demais universidades que se reinventaram no século XX tiveram de alterar práticas e regulamentos para evitar o encastelamento e o enrijecimento da estrutura docente. A proposição de cátedras livres, da livre participação, ou, mais adequadamente, livre matrícula nas disciplinas eram medidas complementares. A liberdade de oferecimento de cursos e disciplinas externos às cátedras tradicionais, por professores que nem integravam o quadro universitário, era uma forma de fraturar a rigidez das cátedras. O estudante podia optar entre disciplinas a serem cursadas e, consequentemente, os docentes tinham de se desdobrar em sua atividade para atrair os estudantes. Olhando de forma distante, poderia parecer um concurso de popularidade entre profissionais, mas não se tratava disso. O rigor continuava existindo, mas o que se pretendia confrontar era a “mediocridade” descrita pelo Manifesto e impulsionar a renovação dos métodos e conteúdos de ensino.

Ignorar os eventos de 1918, por outro lado, é perpetuar o desconhecimento da história das universidades latino- americanas e seus esforços para adquirir um caminho próprio e legítimo Outro dado importante, nesse mesmo aspecto, era a abertura das disciplinas para a assistência livre. O fim da concepção da universidade como um claustro levava à liberdade para que um público amplo pudesse frequentar as aulas. Era uma forma de corresponder às demandas de inserção social da universidade, ao mesmo tempo em que os saberes não deveriam ficar restritos aos círculos acadêmicos. Parece-me ser este um dos pontos mais inquietantes da proposta de Córdoba, pois em muitos países latino-americanos a Universidade foi quase o monopólio da produção e circulação de conhecimentos. Dessa forma, a abertura à participação externa seja como estudantes ou como docentes que não estejam vinculados por laços empregatícios é um desafio difícil de ser superado em muitas instituições nos dias atuais.

Por fim, a bandeira da democratização da universidade na gestão e na permanência dos estudantes. Em Córdoba reivindicava-se a participação de estudantes, graduados e professores na gestão. As experiências concretas e a reforma na legislação argentina asseguraram a participação estudantil em Córdoba e, posteriormente, em diferentes níveis nas universidades latino-americanas. O ponto dissonante, no caso argentino, foi que ao longo das décadas o pressuposto de que há uma comunidade educativa em que todos os membros, independentemente de suas posições políticas, religiosas ou ideológicas, compartilham um conjunto de valores e uma lógica de funcionamento com a finalidade de produzir e transmitir conhecimento, foi perdendo significado. Tal conclusão foi exposta numa mesa-redonda ocorrida em Buenos Aires em setembro de 2000 que reuniu a historiadora Hilda Sábato, o reitor da Universidade Nacional de General Sarmiento, José Luís Coraggio e o decano da Universidade de Buenos Aires, Guillermo Etcheverry (Punto de Vista, 68). Assim, muitas vezes, o resultado tem sido a sensação de que “não se caminha para nenhum lado”, pois o modelo estruturado em 1918 e revisto pós-ditadura, em 1984, preservava a ideia de comunidade e de consenso que pudesse ser obtido. As tensões na vida universitária, como se observa, são parte da própria lógica de funcionamento de um espaço de produção e circulação de conhecimento.

Córdoba, no seu momento mais estruturado e politizado, denunciou uma situação e empreendeu esforços para mudar. Olhar para 1918 em busca de lições a serem extraídas é negar a própria dinâmica que propuseram seus integrantes: é quase um exercício de monumentalização que enaltece um passado vibrante enquanto se vivencia um presente pouco desafiador. Ignorar os eventos de 1918, por outro lado, é perpetuar o desconhecimento da história das universidades latino-americanas e seus esforços para adquirir um caminho próprio e legítimo. Entre uma e outra postura, há que seguir questionando e projetando uma universidade que esteja conectada a seu tempo, expresse suas pluralidades e contradições, nem tema pelo futuro que seus próprios agentes já estejam construindo.

FUNES, Patricia. Salvar la nación: intelectuales, cultura y política em los años veinte latinoamericanos. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2006.

KARNAL, Leandro. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. S. Paulo: Contexto, 2007;

LUNA, Félix. Los conflictos en la Argentina próspera (1890-1937). Buenos Aires: Planeta, 2003.

PRADO, Maria Lígia Coelho. América Latina: tramas, telas e textos. São Paulo/Bauru: Edusp/Edusc, 1999.

REVISTA PUNTO DE VISTA. Ano XXIII, número 68. Buenos Aires: dezembro de 2000.

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SARMIENTO, Domingo F. Facundo, ou civilização e barbárie. S. Paulo: Cosac Naif, 2010. [1845].

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