27/05/2011

Balanço

A educação liberal na perspectiva global

Patti McGill Peterson
Senior associate do Institute for Higher Education Policy (IHEP), Washington DC. Foi diretora-executiva do Council for International Exchange of Scholars (CIES) e vice-presidente do Institute of International Education (IIE) de 1997 a 2007. O artigo abaixo foi publicado no periódico International Higher Education, nº 62, edição inverno de 2011 (Hemisfério Norte).

As artes liberais detêm um lugar central na história do ensino superior. Desde suas origens greco-romanas e sua incorporação no currículo das universidades medievais até o programa acadêmico do Harvard College, no século XVII, foram uma peça fundamental no ensino superior ocidental. Entretanto, no final do século XIX, a educação liberal, baseada no estudo das artes liberais, entrou em franca decadência. As forças para essa erosão também tiveram origem no Ocidente. Um novo modelo de universidade, que emergiu na Alemanha, desafiou a solidez da educação liberal ao enfatizar a pesquisa e a pós-graduação no lugar do ensino de graduação. O núcleo curricular – que em certo momento trazia uma junção estreita e compatível de cursos de línguas clássicas, literatura, história, religião, matemática e ciência básica – veria muito mais ingressantes até meados do século XX, todos reivindicando espaço em decorrência de uma crescente especialização das disciplinas acadêmicas. Clark Kerr [1] , quando foi o convidado na Godkin Lecture de 1963 [2] , afirmou que progressivamente a atividade de pesquisa ganharia prioridade, em detrimento das graduações, e que as humanidades seriam rebaixadas por causa de um maior financiamento da ciência. Kerr apontou que o resultado desse processo seria prejudicial à coerência curricular.

MANTENDO A EDUCAÇÃO LIBERAL VIVA NO OCIDENTE

As universidades não apenas testemunharam o acerto das previsões de Kerr, como também as faculdades de artes liberais, dedicadas ao ensino de graduação, foram impactadas pela departamentalização complexa do conhecimento originária das pós-graduações. Ainda assim, no ensino americano, é possível demonstrar um discurso contínuo, a partir da metade da década de 1960, sobre os currículos das graduações. A discordância sobre o conteúdo da educação liberal tornou-se uma questão central. A controvérsia foi alimentada por opinões como as do livro de E.D. Hirsh (Cultural Literacy, 1987), no qual o autor advoga um retorno a um cânone mais estreitamente definido do pensamento ocidental. Os que advertiram sobre a perda da identidade cultural, sobre estudantes iletrados e sobre a falta de rumo da educação geral foram recebidos com acusações inflamadas de elitismo, de hegemonia cultural e de certa ideia fixa curricular.

O resultado mais benéfico desses argumentos e contra-argumentos foi a formação de um consenso geral de que a graduação era importante e de que o currículo precisava ser estruturado cuidadosamente para oferecer aos estudantes amplitude e profundidade em seus programas acadêmicos.

[1] Clark Kerr foi o primeiro reitor da Universidade da Califórnia, Berkeley, exercendo o cargo de 1952 a 1958, quando tornou-se reitor de todo o sistema que compõe a Universidade da Califórnia (até 1967) . É autor, entre outros, do livro The Uses of the University, publicado em 1963. Morreu em 2003, aos 92 anos de idade

[2] Palestra anual organizada pela Escola de Governo John F. Kennedy, Harvard. A série de palestras foi inaugurada em 1903 e batizada em homenagem ao jornalista irlandês-americano Edwin L. Godkin, fundador do diário The Nation

Embora não se tenha atingido um consenso sobre exatamente qual conteúdo deveria constituir um programa de educação liberal, houve considerável concordância entre os educadores americanos sobre quais atributos deveriam ser estimulados. A Association of American Colleges and Universities, representando suas instituições filiadas, declarou que a educação liberal deveria munir os estudantes de vasto conhecimento da cultura, da ciência e da sociedade (educação geral), bem como de um estudo aprofundado numa área específica de interesse. A associação caracterizou a educação liberal como uma ferramenta para ajudar os estudantes a desenvolver senso de responsabilidade social, bem como habilidades intelectuais e práticas sólidas e transferíveis. Tais habilidades incluem a de comunicação, de análise e de resolução de problemas, além de comprovada competência para aplicar conhecimentos e habilidades a um cenário real.

Os Estados Unidos são vistos como um bastião da educação liberal, mas suas faculdades e universidades tiveram de reagir à crescente demanda de estudantes e de suas famílias por uma educação mais utilitária. As disciplinas das artes liberais competem com o desejo de currículos cada vez mais práticos que dão base a cursos como o de administração de empresas. Na Europa, a especialização precoce triunfou sobre a educação liberal. Muito embora existam instituições tradicionais de artes liberais, como a American University of Paris, somente nos últimos anos tem-se vislumbrado uma renovação dentro da região que deu origem às artes liberais. Neste novo cenário, a Holanda desponta como um exemplo proeminente, onde oito instituições de artes liberais foram estabelecidas dentro do sistema universitário. A Polônia hoje abriga um movimento ativo e bem-sucedido em prol da educação liberal que está ligado a suas universidades públicas e vem crescendo em prestígio. Na Alemanha, também existem instituições de artes liberais relativamente novas em Berlim e Bratislava. O European Colleges of Liberal Arts and Sciences é um consórcio fundado em resposta a esse desenvolvimento. No entanto, por uma questão de perspectiva, faz-se importante notar que essas instituições de artes liberais apenas captam uma pequena parcela dos estudantes da União Europeia.

A EDUCAÇÃO LIBERAL ALÉM DOS SEUS MANANCIAIS

Países em dificuldades com as reformas no ensino superior tendem a direcionar o oco principal aos problemas de ordem não curricular, como acessibilidade e finanças A educação liberal existe fora do seu ambiente de origem principalmente por auxílio externo, e não por esforços nacionais. Os americanos tiveram um importante papel no estabelecimento de instituições de artes liberais em países não ocidentais. Dois dos primeiros exemplos são as Universidades Americanas de Beirute (1886) e do Cairo (1919), que firmaram raízes profundas no Oriente Médio e, durante muitos anos, foram responsáveis por educar a elite regional. Recentemente, em outra onda de atividades, a National University of Singapore anunciou uma parceria com Yale para introduzir um campus de artes liberais entre as ofertas educacionais do país. A New York University estabeleceu um campus residencial de artes liberais em Abu Dhabi. Através de parcerias locais, o Brad College desenvolveu programas e instituições de artes liberais na Rússia, na Ásia Central e, recentemente, na Palestina. A Asian University for Women funciona como um posto avançado para a educação liberal em Bangladesh.

Esses e outros exemplos corroboram a conclusão de que a educação liberal está presenciando uma migração global. Para a maior parte do mundo não ocidental, incluindo os países que trazem um transplante de uma época passada, a educação liberal é, geralmente, um conceito alienígena. Por exemplo, apesar do seu próprio sucesso, a American University of Cairo teve pouca influência em trazer a educação liberal para o gigantesco sistema público de educação superior egípcio. Não obstante a força das graduações norte-americanas, em boa parte dos países em desenvolvimento, as pós-graduações e o compromisso com a pesquisa têm exercido maior atração de educadores estrangeiros. Sem qualquer razão para compreender a natureza de um bacharelado, existe pouco incentivo em perceber o papel da educação liberal e o seu componente geral de formação curricular. Além disso, as agências doadoras, como o Banco Mundial, marginalizaram ainda mais a educação liberal ao enfatizar mão de obra e estudos de mercado como elementos essenciais para o planejamento da educação superior nos países em desenvolvimento.

Países em dificuldades com as reformas no ensino superior tendem a direcionar o oco principal aos problemas de ordem não curricular, como acessibilidade e finanças A grande questão é se a educação liberal pode desenvolver-se de maneira independente e, ainda assim, estar disponível para o maior número possível de estudantes nos países em desenvolvimento. Mesmo sem uma resposta definitiva, alguns avanços notáveis estão em andamento. A China exibe um foco significativo no componente de formação geral nos cursos de graduação. A Polônia vive um cenário misto que inclui o já mencionado e vigoroso movimento da educação liberal ao lado das sobras curriculares da era soviética. A Índia e a Turquia, muito embora não se constituam como grandes repositórios da educação liberal, têm instituições que buscam combinar os fundamentos gerais da educação liberal com uma educação profissional. Um novo desenvolvimento na África do Sul guarda uma promessa. Lá, o ministro da educação superior e formação lançou uma iniciativa para fortalecer as ciências sociais e humanas. O objetivo é fortalecer a educação e a pesquisa nas artes liberais para apoiar a transformação do país após seu passado de apartheid.

Infelizmente, esses exemplos são iniciativas isoladas. Os países em dificuldades com as reformas no ensino superior tendem a direcionar o foco principal aos problemas de ordem não curricular, como acessibilidade e finanças. Os recursos limitados e uma alta demanda por matrículas prejudicam a habilidade desses países em engajar-se em reformas acadêmicas que incluam a educação liberal.

Uma reforma curricular que inclua a educação liberal vai demandar certos entendimentos fundamentais. Em primeiro lugar, o estudante e o seu desenvolvimento intelectual, em conjunto com a sua preparação para o mercado de trabalho, deverão ser objetos de interesse. Como parte desse foco, a educação no nível de bacharelado, a qualidade do seu conteúdo e a pedagogia devem ser vistas como parte importante nos sistemas de educação superior. São condições imprescindíveis. Além dos benefícios em preparar para a vida estudantes com habilidades intelectuais e futuros profissionais dinâmicos para o mercado de trabalho, a educação liberal também forma cidadãos bem informados: um aspecto crítico na construção de um país.