25/07/2014

International Higher Education

Burocracia e cultura do compadrio na China minam estratégia do país para atrair de volta seus maiores talentos

Qiang Zha
Professor associado da Faculdade de Educação, York University, Toronto, Canadá. E-mail: qzha@edu.yorku.ca
Shi Yigong
Na última década, a China parece ter tomado posição firme na corrida global por talentos. Após o bem conhecido "Programa Mil Talentos" (incluindo um "Programa Mil Jovens Talentos" e outro "Programa Mil Talentos Estrangeiros"), para atrair de volta cérebros chineses expatriados, o governo chinês lançou recentemente um "Programa Dez Mil Talentos". Esse programa, ao contrário do primeiro, foca nos pesquisadores que estão na China e compromete-se a selecionar e apoiar 10 mil acadêmicos líderes nos próximos dez anos nas áreas de ciências, engenharia e ciências sociais, entre os quais os top 100 serão encorajados a colocar como meta pessoal a conquista de prêmios Nobel. Assim, a China agora explicitamente elevou sua ambição ao padrão de uma líder em inovação, confiando cada vez mais na capacidade nacional (do país e que permanece no país).
 
De fato, o "Programa Mil Talentos" realmente não atendeu às expectativas. Até o momento, os grandes cérebros que lecionam e pesquisam no estrangeiro não retornaram à China em larga escala. Entre os repatriados, os que têm doutorado, mestrado e bacharelado mostram uma estranha relação de 1:8:1. A maioria dos que voltaram, portanto, é composta por aqueles que passaram pouco tempo no exterior, em busca de um título de mestre. Estatísticas apontam que mais de 1,5 milhão de acadêmicos e estudantes chineses permanecem no exterior. Por que a estratégia mundial de recuperação de talentos da China (famosa por salários atraentes, pacotes generosos de benefícios para acomodação e outros incentivos financeiros) não produziu os resultados esperados?
 
O "Programa Dez Mil Talentos" foca nos que estão na China e compromete-se a selecionar e apoiar 10 mil acadêmicos líderes nos próximos dez anos, entre os quais os top 100 serão encorajados a colocar como meta pessoal a conquista de prêmios NobelPerspectivas
A adoção dos pontos de vista do capital humano, cultural e social pode oferecer uma interpretação perspicaz desse cenário intrigante. Por exemplo, um impulso que inspira estudiosos e alunos chineses a voltar à China pode ser a lógica do “capital humano”, que põe ênfase no conhecimento técnico e tangível obtido por educação e formação variada. Aparentemente, os expatriados chineses sentem que são em grande medida tratados como capital nos países-hospedeiros e vêm poucas oportunidades para realizar seu capital cultural e social naquele contexto específico. Então, iniciativas como o "Programa Mil Talentos" fornecem o contrapeso equivalente? Não necessariamente, considerando que também são baseados, a princípio, na lógica do capital humano. Muitos expatriados podem detectar melhores chances de desfrutar, voltando para a China, de seu capital cultural – distinto do “capital humano”, um conhecimento implícito adquirido com a tradição cultural e o ambiente, e que muitas vezes define um status mais elevado na sociedade. No entanto, quando se trata de realizar o capital social, vão descobrir que também há "tetos" na China.
 
A moderna conceituação de capital social atribui mais importância à livre escolha individual, a fim de criar uma sociedade mais coesa. No contexto social chinês, no entanto, o capital social está intimamente ligado ao conceito de guanxi – redes personalizadas de influência, em particular ligações com burocratas poderosos. Nesse sentido, a maioria dos repatriados não desfruta de uma vantagem, mas sim sofre desvantagem, dada sua separação espacial da China (por algumas décadas, em alguns casos). Isso é particularmente verdadeiro nos últimos anos, nos quais o modelo chinês de desenvolvimento tem mostrado alguns aspectos bem-sucedidos (a China se eleva rapidamente como a segunda maior economia do mundo) e ganha confiança (o país deve superar os Estados Unidos e se tornar a nação mais rica do mundo em torno de 2020). Contra esse pano de fundo, dificilmente as políticas e as práticas que sustentam tais características chinesas estariam abertas à transformação por ideias e ou pessoas de fora.
 
No contexto chinês, o capital social está intimamente ligado ao conceito de guanxi – redes personalizadas de influência, em particular ligações com burocratas poderososOs casos de Rao e Shi revelam um paradoxo
Dois cientistas proeminentes que foram repatriados são Rao Yi e Shi Yigong. Rao Yi era professor de neurologia da Universidade de Northwestern, nos Estados Unidos. Voltou à Universidade de Pequim em 2007, para assumir o cargo de reitor da Faculdade de Ciências da Vida. Shi Yigong era professor na Universidade de Princeton (na cátedra Warner-Lambert/Parke-Davis). Em 2008, renunciou ao seu cargo em Princeton para seguir carreira na Universidade de Tsinghua, como dean de Ciência da Vida. Ambos são considerados os maiores prêmios do "Programa de Mil Talentos".
 
Pelo visto tanto Rao Yi quanto Shi Yigong não se prepararam para voltar à China como “meros” pesquisadores. Em vez disso, querem fazer diferença e melhorar a cultura de pesquisa e a educação universitária na China, utilizando para tanto de seu capital social. Isso é evidente em suas respostas às perguntas a respeito de por que optaram por voltar, bem como em seus próprios escritos. Em um artigo de coautoria, publicado em 2010 na revista Science, Shi e Rao afirmam abertamente que a atual cultura de pesquisa da China "desperdiça recursos, corrompe o espírito e frustra a inovação". Especificamente, citaram a abordagem burocrática para decidir financiamento de pesquisa como algo que "sufoca a inovação e deixa claro para todos que as conexões com os burocratas e alguns cientistas poderosos são fundamentais". Afirmaram abertamente que “para obter financiamentos de maior monta, todos sabem que fazer uma boa pesquisa não é tão importante quanto fofocar com burocratas poderosos e seus especialistas favoritos". Ambos se disseram frustrados ao observar que essa precária cultura de pesquisa "permeia até as mentes daqueles que acabaram de voltar do exterior, que rapidamente se adaptam ao ambiente local e perpetuam a cultura perniciosa", e apelaram por uma reforma significativa, a fim de construir uma cultura saudável de pesquisa.
 
Como Shi e Rao ficaram incomodados ao testemunhar que muitos colegas optam por ficar em silêncio em face de uma tal cultura doentia por medo de se engajar numa batalha perdida, eles próprios tornaram-se vítimas de sua guerra contra a cultura acadêmica perniciosa. Depois de duas tentativas frustradas consecutivas, Rao anunciou que iria boicotar o concurso por uma bolsa da Academia Chinesa de Ciências, enquanto Shi ainda aguarda o resultado de seu segundo pedido. Se repatriados proeminentes como Rao e Shi sofrem com a vulnerabilidade do seu capital social perante uma cultura de pesquisa corrupta, como talentos domésticos selecionados pelo "Programa Dez Mil Talentos" poderiam ser capazes de quebrá-la?
 
Nos casos de Rao e Shi, seu capital cultural parece estar alienado como uma ferramenta de publicidade do governo. Apesar de sua luta contra a burocracia, são frequentemente citados como parte do sucesso do "Programa Mil Talentos". Nos casos de muitos outros, seu capital social é mais assimilado à cultura de pesquisa atual na China, que por sua vez leva-os a tornarem-se os chamados "egoístas elegantes". Em suma, sem a reforma geral do atual sistema e cultura de pesquisa na China, não será fácil para iniciativas como o "Programa Mil Talentos" ou o "Programa Dez Mil Talentos" realizarem seus objetivos. Por último, mas não menos importante, uma mensagem também pode ser enviada aos sistemas ocidentais que foram absorvendo a maioria dos talentos globais. Se não for dada a devida atenção ao capital cultural e social dos talentos globais, arma-se uma crise em que a posição ímã desses sistemas será abalada.
 
Nota: Em 19 de dezembro de 2013, Shi Yigong foi nomeado membro da Academia Chinesa de Ciências, após sua eleição à Academia Nacional de Ciências dos EUA e à Academia Americana de Artes e Ciências, em abril de 2013.