16/04/2014

revista Ensino Superior nº 13 (abril-junho)

Projeto de lei autoriza instituições federais de ensino superior a ter fundos patrimoniais para financiar atividades de pesquisa, inovação, bolsas e infraestrutura

Ideia é recente no Brasil. Só a Poli/USP tem um fundo em pleno funcionamento, com cerca de R$ 25 milhões de patrimônio. Harvard mantém um "endowment fund" de US$ 32,2 bilhões.

Renato Pedrosa
Professor associado do Departamento de Política Científica e Tecnológica (Instituto de Geociências / Unicamp), tem se dedicado ao estudo de políticas relacionadas à Educação Superior, incluindo temas sobre transição do ensino médio à ES e equidade no acesso, incluindo ações afirmativas, sistemas de avaliação (Enem/Sinaes/Enade), o impacto da educação sobre o desenvolvimento econômico, qualidade da formação para as áeas CTEM (ciências, tecnologias, engenharias e matemática), governança e diversidade institucional da ES. Engenheiro Eletrônico pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (1978), mestre em Matemática pela Unicamp (1981) na área de Teoria de Conjuntos e PhD em Matemática pela Universidade da Califórnia - Berkeley (1988), na área de Geometria Diferencial. É membro do Conselho Editorial da revista Ensino Superior.

Colaborou Ricardo Muniz, editor da Ensino Superior
Corre no Congresso Nacional um projeto de lei (PL 4643/2012)[1] que autoriza instituições federais de ensino superior (IFES, que são as universidades federais e os institutos federais de ensino tecnológico) a desenvolverem fundos patrimoniais, com o objetivo de financiar atividades de pesquisa, incluindo o financiamento de projetos de pesquisa e de inovação, bolsas, prêmios e melhorias na infraestrutura de pesquisa e intelectual – o que poderia incluir financiar bibliotecas, assinaturas eletrônicas etc.
 
A ideia de fundos patrimoniais é recente no Brasil. Apenas a Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli/USP) tem um em pleno funcionamento, com cerca de R$ 25 milhões de patrimônio, o que certamente é muito pouco para ter impacto significativo nos investimentos da escola. Em geral, o principal de um tal fundo não pode ser utilizado, apenas o que for auferido via aplicações, financeiras ou outras.
 
Para uma base extrema de comparação, a Universidade Harvard, situada em Cambridge, EUA, que é privada sem fins de lucro, mantém um "endowment fund" de US$ 32,2 bilhões (2013). Pensando num aplicação conservadora desse montante, que renda 5% ao ano, somente desse fundo a universidade teria US$ 1,5 bilhão disponíveis para investimentos por ano, mais que os orçamentos totais da Unicamp ou da Unesp em 2013, próximo do valor do orçamento anual da USP. Praticamente todas as universidades americanas e canadenses e muitos "colleges", tanto públicos como privados, têm um fundo desse tipo[2]. O segundo maior "endowment fund" é o da Universidade Yale, de New Haven, também privada (e sem fins lucrativos), no valor de US$ 20,8 bilhões, mas o terceiro é de um sistema público, o do sistema estadual da Universidade do Texas (US$ 20,5 bilhões).
 
Os fundos são financiados basicamente por doações – como prevê o PL 4643/2010. No caso americano, as doações podem ser iniciais, na fundação da instituição, ou ao longo de sua história. No ano passado, foram doados cerca de US$ 34 bilhões a IES americanas, o que é mais do que todo o investimento público em ensino superior no Brasil, federal e estadual, que foi cerca de R$ 45 bilhões (0,9% do PIB) em 2013 (e possivelmente maior do que o investimento total, incluindo o investimento privado[3]). Há forte incentivo fiscal a essas doações (isenção de tributos aos doadores, pessoas físicas ou jurídicas).
 
Muitas vezes, nos EUA, uma universidade é fundada com um "endowment grant" inicial bastante elevado. Um caso bem conhecido é o de Stanford, universidade situada na cidade de Palo Alto[4], Califórnia, cuja fundação em 1885 se origina de uma doação de uma fazenda e depois de todos os bens[5] do senador Leland Stanford e sua esposa. O valor do "endowment fund" de Stanford é hoje o 4º maior na lista, totalizando US$ 18,7 bilhões em 2013.
 
Em janeiro, em evento realizado pela Fapesp e pela Academia Brasileira de Ciências, na sede da Fapesp[6], Rui Albuquerque, pesquisador do DPCT/IG/Unicamp e atualmente no ITA, apresentou informações sobre o tema dos fundos patrimoniais no Brasil[7], onde menciona as dificuldades existentes para se estabelecerem tais fundos em nossas universidades, e as iniciativas correntes. Citou, além do caso da Poli, outras sete instituições que estão formando fundos: Insper, FEA/USP, ITA, FGV, Mackenzie, UFRJ e Mauá. Albuquerque, em sua apresentação, observa que ainda há muitas dificuldades para a criação e manutenção desses fundos, por causa da ausência de legislação apropriada dedicada ao tema.
 
Voltando ao PL 4643/2012, citado por Albuquerque em sua apresentação, o art. 2º estabelece que os fundos a serem criados nas IFES seriam de caráter privado, sem fins lucrativos, que poderiam receber e administrar recursos provenientes de doações de pessoas físicas ou jurídicas e de outras fontes. Somente os rendimentos auferidos de investimentos poderiam ser utilizados para apoio a atividades de pesquisa e outras (art. 4º).
 
Uma provisão importante do projeto está no inciso II do parágrafo 1º do art. 3º, que estabelece que os fundos "oferecem fonte regular autônoma de financiamento para o desenvolvimento de pesquisa nas instituições federais de ensino superior, sem a interveniência das autoridades responsáveis pela execução orçamentária na esfera federal". Essa cláusula parece garantir a autonomia do uso dos rendimentos do fundo sem interferência do poder central, autonomia não existente na execução do orçamento oriundo do MEC. Seria importante que especialistas em controle e auditoria de órgãos de instituições públicas avaliassem se essa autonomia está de fato garantida pelo texto legal.
 
A governança dos fundos contempla um comitê gestor de cinco membros, presidido pelo reitor (art. 2º, caput). Tendo em vista que reitores têm mandato (tipicamente de quatro anos) e estão, em geral, associados aos interesses mais imediatos da instituição, já que são escolhidos em votações internas após campanhas com forte conteúdo político de curto prazo, parece-nos que seria mais interessante que esse fundo fosse conduzido por um comitê que incluísse pessoas externas à instituição – principalmente presidido por alguém externo à instituição – com a missão de estabelecer os critérios de utilização dos fundos orientados por uma visão estratégica e de médio e longo prazo. O reitor já é responsável pela execução do orçamento anual da instituição, portanto seria importante que esse fundo fosse administrado de forma mais estável, com membros com mandatos mais longos do que os típicos quatro anos dos reitores, com origens e atividades variadas, do setor público e privado.
 
No art. 6º, estabelece-se que “A União facultará às pessoas físicas e jurídicas, a partir do ano-calendário de 2013 até o ano-calendário de 2019, a opção de deduzirem do imposto sobre a renda os valores correspondentes às doações que fizerem aos fundos patrimoniais de que trata esta Lei, observados as condições e limites estabelecidos nos arts. 7º e 8º desta Lei.” Os arts. 7º e 8º estabelecem que os limites de isenção são os mesmos daqueles previstos para doações de outros tipos (art. 12, Lei 9.250/1995). Não entendemos o motivo dessa limitação no período para que doações sejam deduzidas do IR. Será que o legislador entende que esses fundos, uma vez formados, não mais receberão aportes de novas doações? Se é isso que está previsto, certamente essa cláusula merece uma revisão.
 
O parágrafo único do art. 9º, que trata da doação de bens para os fundos, precisa ser revisado, pois sua redação não está adequada: "... Em nenhuma das hipóteses previstas no caput , o valor dos bens doados não poderá ultrapassar o seu valor de mercado". Se entendermos que o parágrafo estabelece, como deve ser, que o limite superior do valor atribuído para um bem doado é aquele de mercado, o elemento de negação em negrito, que introduz uma dupla negação na frase, em conjunção com a expressão inicial "Em nenhuma das hipóteses ..." (e, portanto, indicaria que o valor deveria ultrapassar o valor de mercado), deveria ser eliminado. Ainda em relação ao art. 9º, parece-nos que o art. 10 seria mais um parágrafo daquele artigo.
 
Uma observação final sobre o PL 4643/2012: o benefício da lei deveria se estender às instituições de ensino superior privadas comunitárias e sem fins lucrativos, que são reguladas pelo poder federal. Por exemplo, as PUCs (universidades católicas) são instituições que desenvolvem pesquisa, cujo financiamento é a finalidade principal dos fundos previstos no PL, e mereceriam a chance de também estabelecerem fundos com as isenções previstas neste projeto. Assim, a Fundação Getúlio Vargas, o Insper, o Instituto Mauá, o Instituto Mackenzie, citados por Albuquerque como interessados em desenvolver um fundo patrimonial, e todas as demais IES privadas sem fins lucrativos, também seriam beneficiados. As IES estaduais e municipais (universidades e faculdades) poderiam ter seus fundos estabelecidos em leis estaduais, mas também poderiam estar já beneficiadas por este PL, uniformizando assim o tratamento das questões fiscais e outras relativas aos fundos patrimoniais, para todas as IES públicas brasileiras.
 
Nota da Redação

A reportagem da Ensino Superior procurou fazer contato com a assessoria da deputada Bruna Furlan (PSDB-SP), autora do projeto de lei 4643, desde o início do mês de março. Feito o contato, e seguindo as orientações da assessora Carolina Gerevini, enviou por escrito em 14 de março, e novamente em 25 de março, três perguntas, as quais ainda não foram respondidas.



 
[2] Uma lista das universidades americanas e canadenses com os valores de mercado (2012/2013) dos seus "endowment funds" pode ser encontrada no link: http://www.nacubo.org/Documents/Endowment%20Files/2013NCSEEndowmentMarketValuesRevisedJan232014.pdf
 
[3] Não há estimativas precisas para o dispêndio privado em ES no Brasil, mas, baseando-se nos valores médios das prestações escolares (R$500) e o número de estudantes do sistema (5 milhões), podemos estimar que este não ultrapassou R$35 bilhões, em 2012 (ou 0,8% do PIB), descontando-se as bolsas Prouni e acrescentando-se mensalidades de pós-graduação e outras fontes (rendimentos, etc.). http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,preco-medio-da-mensalidade-de-cursos-superiores-volta-a-subir-apos-11-anos,934189,0.htm 
 
[4] O nome da fazenda doada pela família Stanford era “El Palo Alto”, dado em função de uma árvore muito alta existente na fazenda, uma variedade de sequoia (conhecida como “redwood”). Esta árvore ainda está presente no campus de Stanford.
 
[5] O texto do documento original e seus impactos legais, que incluem legislação apropriada no nível estadual, estão em http://www.stanford.edu/dept/govcr/documents/founding-grant.pdf