14/05/2012

Inovação curricular

O intercâmbio internacional de graduação nas áreas de Humanidades e Artes – um projeto piloto

Marcelo Knobel, pró-reitor de graduação da Unicamp
Gabriela Celani e Gilberto Alexandre Sobrinho, assessores da PRG (professores doutores, respectivamente dos cursos de Arquitetura e Urbanismo e de Midialogia)
No ano passado, em 2011, o governo federal lançou o programa Ciência sem Fronteiras, que se propõe a oferecer 75 mil bolsas de estudo para alunos de graduação, doutorado e pós-doutorado a realizarem parte de seus estudos no exterior. O programa também inclui a vinda de especialistas para o Brasil. Em um momento em que o país se encontra em plena condição de crescimento, mas sofre com a falta de especialistas, sobretudo nas áreas produtivas, o programa é extremamente louvável e tem o potencial de causar um grande impacto para a geração dos jovens que se encontram neste momento na universidade. Contudo, por motivos não esclarecidos pelo governo, o programa exclui sumariamente a área de Humanidades.[1] Os alunos de graduação elegíveis devem cursar carreiras nas áreas de Exatas, Biológicas e Tecnológicas, além da “indústria criativa”, que não tem uma definição específica, mas pode englobar áreas como Design, Arquitetura, Cinema e Comunicação Midiática. Áreas como Ciências Sociais, Filosofia, História e Economia são sumariamente excluídas.
 
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Visando mitigar esse desequilíbrio, a Unicamp, com o apoio financeiro do programa Santander Universidades, investiu (neste ano) 300 mil reais na realização de um intercâmbio específico para alunos de graduação, das áreas de Humanas e Artes. Dentre os mais de oitenta candidatos que se inscreveram na chamada, foram selecionados 14 alunos dos cursos de Arquitetura, Artes Cênicas, Artes Visuais, Ciências Econômicas, Ciências Sociais, Dança, Filosofia, História, Letras, Comunicação Social-Midialogia, Música e Gestão de Políticas Públicas. Os alunos foram escolhidos tendo em vista não apenas seu desempenho acadêmico e seu conhecimento da língua inglesa, mas também sua motivação e suas habilidades específicas, aferidas por meio de uma redação, de uma entrevista e de um portfólio, no caso das áreas de música e artes plásticas. O programa permitiu que esses alunos passassem o semestre de primavera na Goldsmiths College[2] durante os meses de janeiro, fevereiro e início de março de 2012, o que lhes possibilitou voltar a tempo para o semestre letivo na Unicamp, sem causar atrasos em sua integralização.
 
Por sugestão da Pró-reitoria de Graduação da Unicamp, que coordenou o programa, os alunos selecionados cursaram disciplinas que não precisavam necessariamente estar diretamente ligadas às suas carreiras. Dentre as matérias selecionadas pelos alunos estavam, por exemplo, Aesthetics of Performance, Creative London, Culture, Society and the Individual, Introduction to Creative Computing Practice, Key Debates in Media Studies, London Art Worlds, Media, Ethnicity and Nation, Drama and Transgression, Visual and Material Culture in Early Modern Europe e outros temas que raramente seriam vistos em disciplinas de graduação no Brasil, por sua grande especificidade. Além disso, foi organizado um esquema de acomodação para os alunos em casas de família, na sua maioria compostas por imigrantes de diferentes etnias, com o objetivo de expor os participantes à realidade cotidiana da sociedade londrina contemporânea.
 
Após o retorno dos estudantes ao Brasil, a equipe organizadora do projeto realizou com eles uma série de discussões sobre as lições de vida aprendidas, visando contribuir para a construção de uma postura crítica e reflexiva com relação à experiência no exterior. Essas discussões culminaram em um pequeno evento voltado para a comunidade acadêmica em que o grupo apresentou um audiovisual montado com as filmagens e fotografias feitas pelo grupo, seguido por dois debates em forma de mesas redondas, um sobre a pujante vida cultural londrina e o outro sobre a contribuição do programa para a formação teórica dos alunos dos cursos de Filosofia, História, Economia e Ciências Sociais. Nessa última discussão foi interessante, por exemplo, ouvir o aluno do curso de Ciências Sociais descrever como ele se sentiu ao notar que era o único representante do Hemisfério Sul na disciplina Views from the South: “eu era praticamente o objeto de estudo do curso, e qualquer coisa que eu dissesse era tomado como legítimo”.
 
A experiência de imersão no contexto sociocultural de grande parte das grandes referências teóricas da área de humanidades, desde economistas até filósofos e historiadores, e a possibilidade de questionar padrões e categorias estabelecidos, como a definição de quem faz parte do primeiro mundo e quem é subdesenvolvido, teve um resultado transformador para a vida desse grupo de estudantes. Além disso, os alunos tiveram contato com novas formas de ensinar e aprender, e com subáreas do conhecimento praticamente inexistentes no Brasil, como a Filosofia Analítica e a Estética da Performance.
 
Os intercambistas destacaram ainda a importância do convívio em uma universidade em que mais de 20% dos alunos são estrangeiros, um número muito superior ao de qualquer universidade brasileira. Além disso, em suas diversas saídas em grupo para realizar programas culturais e sociais, os alunos da Unicamp puderem vivenciar toda a situação de miscigenação – e muitas vezes confronto – étnico e cultural vivida atualmente na Europa e em especial em uma cidade internacional como Londres.
 
Acima de tudo o que o programa CSF, tal como foi formulado, nos mostra é que infelizmente existe no Brasil uma profunda cisão entre as ciências humanas e as ciências tecnológicas. Não se percebe que elas deveriam trabalhar juntas. Tanto pesquisadores da área tecnológica têm a ganhar com a tomada de consciência das consequências sociais da tecnologia, como pesquisadores das áreas de humanas têm a ganhar com o aprendizado sobre como se dá, efetivamente, a implantação das novas tecnologias e meios de produção. É impossível falar sobre os impactos socioambientais da tecnologia sem conhecê-la de perto.[3]
 
Dessa forma, nossas sugestões são, em primeiro lugar, que as humanidades se aproximem mais do estudo das ciências e tecnologias e, em segundo que o governo reconheça a necessidade de incluir as Humanidades no programa CSF, para que o Brasil se prepare não apenas para aumentar sua produção, mas também – o que é fundamental – para lidar com as mudanças sociais trazidas pelo crescimento econômico, evitando a simples importação de modelos de desenvolvimento sem uma maior reflexão e sem a necessária adaptação à realidade social de nosso país.


[1] De acordo com o site do programa, “As demais áreas, inclusive as Ciências Humanas e Sociais, continuam sendo atendidas normalmente pela CAPES e o CNPq, dentro do seu calendário anual.” http://www.cienciasemfronteiras.gov.br/web/csf/duvidas-frequentes Contudo, para bolsas no exterior tanto a CAPES quanto o CNPq oferecem apenas financiamento para nível de doutorado.
 
[2] Fundada em 1891, a Goldsmiths faz parte, há mais de cem anos, da Universidade de Londres, uma instituição pública dedicada ao ensino e à pesquisa. Situada em New Cross, antiga área industrial do Sudeste de Londres, e com origem nas guildas medievais dos joalheiros e ourives, a Goldsmiths foi criada para oferecer treinamento profissionalizante às classes operárias. Hoje ela oferece cursos em artes, humanidades e informática, sendo uma das escolas de maior prestígio no Reino Unido nessas áreas.
 
[3] Visando contribuir para a solução deste problema, a Unicamp desenvolve, justamente neste momento, uma proposta de um curso inovador, de graduação e pós-graduação, em Estudos Contemporâneos. Ao invés de voltar-se exclusivamente para assuntos humanísticos, como ocorre em cursos de estudos culturais pelo mundo afora,  a estrutura curricular da proposta em desenvolvimento na Unicamp reconhece a indissociabilidade entre as diferentes áreas do conhecimento, procurando contribuir para a multidisciplinaridade e para a formação geral de cidadãos críticos e bem informados.