05/04/2013

Especial: As novas mídias e o ensino superior

Novas mídias, interatividade e a prática científica

A complexidade das formas sociais de apropriação de novas mídias suscita questionamentos sobre um excessivo otimismo quanto a seu potencial, que ignora o uso prático

Marko Monteiro
Departamento de Política Científica e Tecnológica - Unicamp
Resumo:
Este trabalho oferece uma reflexão sobre alguns aspectos centrais na compreensão das novas mídias a partir de estudos sobre cientistas e o uso de tecnologias digitais na prática científica. Além disso, busca comentar como estudos sobre novas mídias nas ciências sociais revelam a complexidade das formas de adoção dessas novas tecnologias na prática. Estudos sobre ciência, ao analisarem o uso de tecnologias digitais por cientistas, demonstram que a promessa de maior interatividade nem sempre se cumpre de forma simples. A complexidade das formas sociais de apropriação de novas mídias, como aquelas ligadas à internet, suscita também questionamentos sobre um excessivo otimismo quanto ao potencial dessas tecnologias que ignora seu uso prático e os desafios por elas colocados.
 
Introdução: complexidade e as novas tecnologias digitais
Há contemporaneamente um grande otimismo com relação ao desenvolvimento e aplicação de novas mídias digitais (internet, computadores, modelos computacionais, redes sociais, entre outras) para revolucionar negócios, a formulação e implementação de políticas, práticas gerenciais e a educação, além da própria prática científica. Pensa-se que tais tecnologias poderiam oferecer saídas inovadoras para dilemas presentes nesses campos, ou mesmo que as tecnologias promoveriam uma mudança radical do contexto social mais amplo: viveríamos agora em uma nova era de redes, de interatividade e de horizontalização das relações de comunicação, que promoveriam novas formas revolucionárias de produção de conhecimentos (Levy, 1999; Castells, 2007).
 
Ao analisar o uso de tecnologias digitais por cientistas, estudos demonstram que a promessa de maior interatividade nem sempre se cumpre de forma simples Mais especificamente, no que se refere à prática científica, há uma grande esperança depositada em tecnologias digitais para oferecer respostas antes inimagináveis, como no caso da modelagem computacional aplicada ao clima, ao desmate, à biomedicina, entre outras áreas. O uso de recursos de computação avançada, ou os mais conhecidos "supercomputadores", é tido também com potencialmente revolucionário na ciência (Hey e Trefethen, 2004; Bement Jr., 2007), tornando possível a formulação de perguntas antes impossíveis. Alguns cientistas chegam a sugerir que a computação poderia ser inclusive um "3º pilar da ciência", ao lado da teoria e da observação empírica, conforme discuto em outros trabalhos (Monteiro e Keating, 2009).
 
Mas nenhum desses discursos triunfalistas das novas tecnologias se atém à complexidade do uso e aplicação das tecnologias digitais na prática cotidiana, uma área de estudo mais relacionada à antropologia da C&T e aos chamados Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia (ESCT). Tais estudos vêm demonstrando a complexidade das práticas que, no interior do "laboratório" (Latour e Woolgar, 1997) ou sítios de produção de ciência (esses também cada vez mais diversos e complexos, e cada vez mais perpassados por tecnologias digitais), produzem novos conhecimentos a partir do uso intensivo de computadores, modelos digitais etc. (Chadarevian e Hopwood, 2004).
 
A percepção de que há essa grande complexidade mostra o perigo de nos atermos a uma visão simplificada de como funcionam as tecnologias digitais na prática, seja no quesito da interatividade, seja em outros aspectos em que ela supostamente promoveria mudanças radicais. Uma análise mais detida mostra o quão complexa é a interação entre usuários das tecnologias e os computadores, redes digitais, modelos e imagens que tornam-se cada vez mais onipresentes no nosso cotidiano. Essa complexidade, que muitos ignoram em seus argumentos, precisa ser levada em consideração ao pensarmos no que de fato muda quando utilizamos de forma intensiva tecnologias digitais em práticas educacionais.
 
Propõe-se aqui, dessa forma, uma discussão sobre interatividade e novas tecnologias digitais, a partir do exemplo específico da prática científica. Argumenta-se aqui que o uso dessas tecnologias na ciência não facilita ou revoluciona de forma direta o trabalho científico, como supõem muitos cientistas usuários de tais estruturas. Da mesma forma que na ciência, o uso de tecnologias digitais em outros âmbitos não necessariamente facilita ou torna mais simples o trabalho interativo (uma atividade extremamente complexa por si), mas muitas vezes desloca a complexidade desse trabalho para outros âmbitos, como é o caso da interpretação dos dados gerados por computadores.
 
Se pensarmos que essa complexidade, ou as dificuldades de interação entre usuários e de interpretação de dados não desaparecem com o uso de novas tecnologias interativas, é temerário presumir que a sua aplicação na educação (ex: educação a distancia, uso intensivo de computadores em sala de aula etc.) seja uma solução mágica para uma série de problemas práticos. Pelo contrário, argumenta-se aqui que é necessário atentar para essa complexidade para de fato poder instrumentalizar tais tecnologias de formas adequadas aos fins imaginados, sejam esses fins educacionais ou científicos.
 
O uso das tecnologias na ciência não facilita ou revoluciona de forma direta o trabalho científico, como supõem muitos cientistas usuários; muitas vezes desloca a complexidade para outros âmbitos, como é o caso da interpretação dos dados gerados por computadores A discussão será feita com base numa breve análise de dois exemplos, provenientes de etnografias que realizei com cientistas que usam de forma intensiva novas tecnologias digitais. O primeiro exemplo vem de uma pesquisa com cientistas engajados na construção de um modelo computacional da dinâmica do calor em tecidos da próstata (Monteiro, 2009; Monteiro e Keating, 2009; Monteiro, 2010a); o segundo exemplo vem de uma pesquisa sobre a produção de conhecimento através do sensoriamento remoto, baseada na interpretação de imagens de satélite (Monteiro, 2010b; 2011). Em ambos os casos, vemos que há uma intensa interatividade entre cientistas e tecnologias que é imprescindível para que o conhecimento seja construído. Ao mesmo tempo, vemos que as tecnologias geram novos desafios e dificuldades, não sendo de fato fatores de "simplificação" do trabalho científico. Ao final, sugere-se formas de expandir essa discussão para além dos exemplos específicos, pensando a aplicação dessas tecnologias em outros âmbitos.
 
Interpretando imagens digitais na ciência
Há atualmente uma gama enorme de avanços tecnológicos que impactam diretamente na forma como se produz conhecimento. Tais tecnologias começam inclusive a se tornar foco das políticas científicas e tecnológicas de países como os EUA (Bement Jr., 2007), que possuem grande disponibilidade de infraestrutura computacional. O uso de imagens e modelos digitais, por exemplo, difunde-se cada vez mais em diversas especialidades: por exemplo, na produção e interpretação de imagens de ressonância magnética na ciência e como forma de diagnóstico (Van Dijk, 2005); no uso de modelos computacionais em uma gama ampla de atividades, desde climatologia, ciências ambientais e medicina, até em especialidades da engenharia e na nanociência (Chadarevian e Hopwood, 2004; Lahsen, 2005; Ihde, 2006); na produção e interpretação de imagens e modelos para analisar proteínas, nanotubos de carbono, fórmulas matemáticas e outras entidades antes invisíveis a olho nu, ou acessíveis apenas via equipamentos como microscópios de elétrons; entre muitas outras.
 
É comum que cientistas aleguem que o uso de imagens e modelos digitais simplifica o seu trabalho, trazendo ganhos de produtividade e facilitando o trabalho em equipes interdisciplinares. Em entrevistas, cientistas comentam que o uso de imagens favorece a troca entre cientistas de disciplinas diferentes, além de simplificar o trabalho de apreensão de grandes amostras de dados que são de outra forma incompreensíveis. O que se verifica na prática, no entanto, é uma grande dificuldade de apreensão das informações contidas em tais modelos e imagens, e a necessidade de intenso trabalho interpretativo em todas as etapas desse trabalho (Monteiro, 2010c).
 
Conforme veremos a seguir em exemplos empíricos, a análise mais detida de práticas científicas mostra o quão importantes são as práticas interativas na produção e interpretação de dados na ciência. Ao mesmo tempo, tais estudos mostram que não há uma simplificação nem facilitação do trabalho a partir da incorporação de tecnologias digitais avançadas. Argumenta-se aqui, portanto, que o idioma da simplificação não dá conta de explicar o que ocorre em práticas envolvendo tais tecnologias, e que a compreensão da complexidade dessas práticas é valiosa para que possamos de fato usar tais tecnologias para fins de interesse, seja na ciência ou em outros âmbitos.
 
Visualizações digitais de grandes conjuntos de dados tornam-se cada vez mais relevantes atualmente, seja em práticas de produção de conhecimento, seja em práticas de intervenção que dependem de previsões geradas por computador[1]. Muitos dos cientistas que fazem uso rotineiro de tais técnicas visuais pensam as imagens digitais como uma encarnação contemporânea da objetividade mecânica, antes representada por fotografias (Daston e Galison, 1990), na medida em que são geradas de uma forma automatizada.
 
No entanto, etnografias da prática científica (Goodwin, 1994; Ochs, Jacoby et al., 1994; 1996; Myers, 2008), estudos de cognição (Alač e Hutchins, 2004; Becvar, Hollan et al., 2005), estudos sociais da ciência e da tecnologia (Lynch, 2006) e estudos históricos sobre modelos computacionais (Pasveer, 2006) têm demonstrado a importância do trabalho interpretativo que é necessário para a formação de sentido sobre os dados visualizados em tais contextos. Ou seja, os dados produzidos por tais tecnologias (imagens, modelos em 3D etc.) não conseguem transmitir informações de forma simples ou direta, como muitos imaginam. Tais dados só se tornam perceptíveis a partir de um intenso trabalho interativo entre cientistas, imagens e os equipamentos envolvidos nesse trabalho, conforme discutido a seguir.
 
Se pensarmos que as dificuldades de interação entre usuários e de interpretação de dados não desaparecem com o uso de novas tecnologias interativas, é temerário presumir que a sua aplicação na educação seja uma solução mágica Uma importante inovação advinda de análises recentes da ciência, em conjunção com a discussão antropológica em geral, foi a de reinscrever a relevância da percepção incorporada (Csordas, 1990) e das interações com os objetos digitais como parte do processo de produção e apreensão de sentido. Autores vêm demonstrando, por exemplo, como cientistas fundem seus próprios corpos com os processos que buscam explicar para seus pares através de interações corporais com as visualizações (Ochs, Jacoby et al., 1994; 1996), revelando as interações entre cientistas e as inscrições por eles produzidas como processos cognitivos importantes em si mesmos (Alač e Hutchins, 2004). Mais especificamente, estudos de cientistas que pesquisam modelos de proteínas mostram o aspecto crucial do gesto na apreensão das formas e, por conseguinte, das funções das moléculas estudadas (Becvar, Hollan et al., 2005; Myers, 2007; 2008). Em todos esses estudos, o aspecto interativo da transmissão e apreensão de sentidos é chave para a análise de visualizações científicas, ampliando o escopo desses estudos para além do seu aspecto meramente visual.
 
Construindo modelos computacionais
O primeiro exemplo abaixo revela um pouco dessa complexidade da qual falamos aqui. Nele vemos um cientista explicando oralmente o processo de processamento de imagens denominado "registro" para uma equipe com a qual trabalha num projeto científico de grande escala[2]. Ainda que a explicação verbal seja relativamente clara, ele ilustra sua apresentação com uma série de visualizações e gestos que complementam o significado do processo. Como se vê no que segue, o significado da metodologia explicada só fica mais claro para o grupo através de um processo relativamente longo de explicação envolvendo imagens, gestos e interações com as visualizações:
 
Exemplo 1: explicação do processo de registro de imagens
 
Cientista:
Primeiramente vamos, hum, quero dizer, gostaria de relembrar o que é registro de imagens. Bem, na visão computacional, quando conjuntos de dados são obtidos, por amostragem de uma mesma cena, ou, quero dizer, então, se você, se nós adquirimos os dados visuais da mesma cena, em períodos diferentes, ou se adquirimos, os dados sobre uma imagem a partir de perspectivas diferentes, então essas duas coisas estarão em coordenadas diferentes. E precisamos, o registro de imagens é o processo de, registrar ambos num mesmo sistema de coordenadas.  E é necessário pois para comparar ou integrar esses dados, hum precisamos tê-los no mesmo sistema de coordenadas.[3]
 
Enquanto explica o processo de registro de imagens oralmente, esse cientista mostra na tela um slide com exemplos visuais: uma seqüência de três imagens. As primeiras duas referem-se à mesma paisagem, mas cada imagem mostrando uma parte separada com alguma sobreposição. Para determinar os pontos de sobreposição, um código de registro é necessário. A terceira imagem (da esquerda para a direita) é o resultado do processo de registro, mostrando as duas imagens e os pontos de sobreposição com relação ao cenário que representam.
 
Enquanto fazia sua explanação oral, o cientista fica estático, falando do pódio ou de pé ao lado do mesmo, sem muito movimento corporal. Os slides contêm somente palavras e símbolos matemáticos. Ao chegar, na sequência da apresentação, no slide contendo as três imagens explicadas acima, ele caminha até a tela e começa a interagir com elas. Para ilustrar como uma imagem, a fim de ser "registrada", precisa sofrer uma rotação, ele vai diretamente à tela e movimenta sua mão de forma análoga ao movimento descrito em sua explicação.
 
O pesquisador "gira" uma das imagem usando suas mãos, depois movimenta a mão através da tela para mostrar o caráter sequencial do seu exemplo visual. A compreensão do giro sofrido pela imagem é fundamental, pois sua explicação refere-se a como as imagens, ainda que visualmente diferentes, mostram partes diversas de um mesmo cenário, e de como essa unidade pode ser recomposta matematicamente. A fim de combinar as duas imagens, um código deve computar a correta orientação da segunda imagem em relação à primeira.
 
Seu gestual sugere o movimento necessário para conseguir a combinação desejada (rotação), além de estabelecer uma relação entre as três imagens. O movimento da sua mão também demonstra que, pelo menos no exemplo em questão, as duas imagens mostram partes diferentes de uma mesma paisagem, com diferentes orientações. Ao "girar" a imagem através de seu gesto, o pesquisador transmite, de forma interativa, mais significado do que através de uma explanação oral ou do uso de um exemplo visual estático.
 
Analisando imagens de satélite
No exemplo seguinte, um outro pesquisador, da área de sensoriamento remoto, explica a incerteza inerente às imagens produzidas por satélites. A correta gestão dessa incerteza é fundamental no processo de produção de conhecimento nessa área, pois é somente através do processamento da imagem que as informações ali contidas se tornam "dados científicos" confiáveis (Monteiro, 2010b). Longe de oferecerem formas diretas de visualização do território, portanto, as imagens de satélite são conjuntos complexos de dados, que precisam de intensa interpretação antes de se tornarem "fato científico"[4]:
 
[...] eu aplico um NDVI[5] desse, o gramado era fantástico, era tão verde que você podia calibrar sensor nele. Né, é assim, homogêneo. Mas é, é uma armadilha. Então, e aí você pega um dossel[6], tem muita biomassa, por que tem tronco, você tem a estrutura das folhas, da copa das árvores, né mas você tem efeitos de sombra, você tem a luz entrando no meio desse dossel, então você vai ter uma atenuação. [...] E aí, às vezes, numa grama dessas o NDVI vai dar maior do que num lugar que tem mais biomassa. Então é uma armadilha. (ênfase minha)
 
As tecnologias geram novos desafios e dificuldades, não sendo de fato fatores de simplificação do trabalho científico Aqui vemos o pesquisador explicando a dificuldade de interpretar a imagem de satélite, para determinar onde está a vegetação. Nesse caso, a mensuração exata da quantidade de vegetação em determinada área é um dos objetivos centrais da pesquisa, pois ela permitirá inferir dados como mudança do uso do solo (de mata para agricultura, por exemplo, ou a ocorrência de queimadas), cada vez mais fundamentais para a ciência brasileira. Nesse exemplo fica mais clara a dificuldade que existe, portanto, de conseguir "enxergar" o que uma imagem de satélite está de fato mostrando: a informação sobre vegetação não se apresenta de forma direta ou transparente, mas depende de meses de processamento e interpretação, através de cálculos e do olhar do cientista, para que os dados possam ser enfim analisados.
 
As imagens de satélite disponíveis ao pesquisador não mostram a vegetação de forma clara ou direta: em geral os dados chegam ao analista na forma de arquivos muito grandes, contendo massas de dados que precisam ser interpretados minimamente antes de começar quaisquer análises sobre solo, vegetação, calor, ou qualquer outra variável de interesse. As cores, por exemplo, são escolhidas no processo de análise, pois as imagens chegam do satélite em preto e branco. Mesmo no caso de vegetação, é comum ao analista usar o vermelho para marcar essa variável, por ser mais fácil ao olho humano perceber variações dessa cor do que no verde, cor mais comum de plantas.
 
Ao longo desse processo de interpretação solitária da imagem, o pesquisador aplica filtros, muda parâmetros de cor e textura, e produz uma imagem nova, fruto da sua interação com os dados originais advindos do satélite. Essa nova imagem depende portanto de um intenso trabalho do pesquisador que, usando seu computador, busca extrair sentido daqueles dados. Esse trabalho é quase artesanal, e representa uma tarefa antes inexistente. Em outras palavras, não é necessariamente mais simples interpretar uma imagem digital, em contraste com uma imagem analógica: a complexidade se desloca, nesse caso, para trabalhosas rotinas de processamento e interpretação de imagens, que geram imagens compreensíveis, ou seja, dados científicos.
 
Não é necessariamente mais simples interpretar uma imagem digital, em contraste com uma analógica: a complexidade se desloca para rotinas de processamento e interpretação de imagens – trabalho quase artesanal – que geram dados científicos Conclusão
Os exemplos discutidos acima colocam em evidência ao menos duas faces da questão da interatividade que interessam ao argumento aqui colocado: a primeira é a interatividade possibilitada pelas novas mídias: a interconexão entre pessoas, a interação com conteúdos digitais, a participação do usuário na produção de conteúdos, as novas formas de comunicação.
 
Além desses aspectos, coloca-se aqui um outro sentido de interatividade: aquele que diz respeito ao caráter prático da construção de sentidos a partir dessas novas tecnologias. Do ponto de vista da etnometodologia (Garfinkel, 1967), que inspirou esse trabalho, a produção de sentidos e de conhecimentos a partir de imagens digitais, modelos computacionais, computadores etc. é uma "conquista prática", ou seja, esses sentidos são o resultado emergente das interações entre os cientistas, as imagens e as tecnologias que possibilitam tais atividades.
 
As novas mídias dependem de grandes infraestruturas tecnológicas, que por sua vez condicionam as formas pelas quais tais mídias funcionam e são utilizadas por seus usuários É nesse segundo sentido de interatividade que está o foco desse trabalho: a questão da complexidade, colocada no início, diz respeito exatamente ao complexo trabalho prático necessário para que imagens digitais, modelos em 3D e outras tecnologias digitais adquiram sentido enquanto conhecimento. Assim sendo, pensa-se que essa complexidade não se restringe ao trabalho científico, mas deve ser investigada e compreendida em outros contextos onde as novas mídias e as novas tecnologias digitais estão sendo utilizadas ou pensadas como formas de atingir determinados objetivos.
 
Como vimos acima, não há apreensão direta de informação através de imagens digitais: essa apreensão depende de um trabalhoso processo interpretativo, que ocorre através de interações entre cientistas, imagens e as máquinas que utilizam para produzir e processar imagens. Esse trabalho interpretativo é mais que visual: ele envolve fala, gestos e interações que são indissociáveis das imagens no curso do trabalho. Dessa forma, grande parte do trabalho de grupos de cientistas usuários dessas novas tecnologias é gasto com tais tarefas interpretativas, o que invalida a hipótese de que elas simplificam o trabalho científico.
 
Por conseguinte, seria ingênuo achar que a aplicação de novas tecnologias digitais, internet, imagens, modelos em 3D, entre outras inovações, seria menos complexo em outros âmbitos. A partir de estudos etnográficos como os acima citados, há que se considerar novas formas de compreensão dessas novas tecnologias digitais que não ignore seu caráter prático, localizado e contextual. Dessa forma, podemos fazer mais do que construir análises mais sofisticadas dessas tecnologias, o que em si já seria um bom ganho; podemos inclusive melhor pensar e refletir sobre as formas de aplicação e uso dessas tecnologias, além de formas de acompanhamento e avaliação que revelem mais sobre os sucessos e fracassos dessas aplicações.
 
Os condicionantes colocados por tais infraestruturas materiais não podem ser ignorados nas análises das novas mídias ou de novas tecnologias digitais As novas mídias, de forma geral, dependem de grandes infraestruturas tecnológicas (computadores, satélites, máquinas de ressonância, redes de transmissão de dados etc.), que por sua vez condicionam as formas pelas quais tais mídias funcionam, são aplicadas e são utilizadas por seus usuários. Outro aspecto da interatividade é pensar, assim, os condicionantes colocados por tais infraestruturas materiais, que nunca podem ser ignorados nas nossas análises das novas mídias ou de novas tecnologias digitais.
 
Refletir sobre tais problemas é mais do que um importante exercício acadêmico e mais do que um grande desafio das ciências sociais contemporâneas. Entender de forma mais sofisticada como funcionam as novas mídias na prática ilumina de forma mais completa o alcance e limites de tais tecnologias, em um momento em que há grande investimento por parte de governos, empresas e usuários individuais no uso dessas infraestruturas. Se conseguirmos reimaginar as maneiras de analisar essas novas mídias, a partir das práticas pelas quais são utilizadas e tornadas úteis em diversos contextos, podemos instrumentalizá-las de formas menos ingênuas, atentando para o seu caráter sempre local, prático e contextualizado
 
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[1] Exemplos desse tipo de relação prática entre modelos e intervenção na realidade incluem desde previsões climáticas, que afetam a elaboração de políticas ambientais, até previsões de susceptibilidade a doenças a partir de análises bioinformáticas, que influenciam o tratamento de doenças e a elaboração de remédios.
 
[2] Para uma análise mais detalhada desse projeto, ver Monteiro e Keating, 2009.
 
[3] "So first of all let’s, uh, I mean, I want to review, uh, that, what is image registration So in computer vision, when sets of data acquired by, sampling the same scene, or, I mean, so, if you, if we acquire image data of the same scene, at different times, or if we acquire, the data about an image, about the same image from different perspectives, then these two things will be in different coordinate systems. And we need, the image registration is a process of, registering both of them onto a same coordinate system. " (nota: todas as traduções são do autor)
 
[4] Para uma discussão mais detalhada dessa pesquisa sobre sensoriamento remoto, ver Monteiro, 2010a.
 
[5] NDVI: normalized difference vegetation index, um indicador gráfico usado na análise de imagens de satélite para determinar se mostram ou não vegetação.
 
[6] Dossel é o estrato superior de florestas; portanto, abaixo de um dossel há sempre muita vegetação e, portanto, muita biomasa, conforme explica o cientista.